TODO INÍCIO AGUARDA UM FIM - Oswaldo Romano

         

TODO INÍCIO AGUARDA UM FIM
                                               UMA TRISTE BRINCADEIRA LITERÁRIA
Oswaldo Romano

         Simples, quando se inicia alguma coisa, é porque se tem em mente o meio e pensado no fim.

         Novamente simples porque no processo mental, a Brincadeira Literária apresenta características metafóricas do personagem escolhido. Ao fazê-lo, de antemão conhecemos seu poder, e com ele o caminho da sua existência.

         Meu protagonista se impõe nas áreas frias. Com sua força, sua defesa afasta todo perigo que se aproxima, é imponente, muito forte.

         Vamos lhe dar um nome, Kuri ou Curi. Apelido ou não será a protagonista desta história.

         As construções no Brasil dependiam muito da mata quando ainda a mais importante ferramenta conseguida pelos nativos era o machado. O machado e o facão foram os primeiros e principais objetos de troca com os aborígines. Os invasores conseguiram obter madeiras em quantidade, barato e facilmente. Os europeus esclarecidos da sua época subjugavam os índios, inocentes, enganados de que a serventia da madeira era para aquecimento, assim desvalorizava o produto. Na verdade foi o inicio da devastação da nossa floresta.

         Vamos ouvir a protagonista.

         — Eu forte como sou, fui menos visada e difícil de ser tombada. Os machados derrubavam as arvores do Pau Brasil, consideradas nobres, para a alegria dos traficantes da nossa madeira. Esse assalto durou muitos anos quando algumas autoridades acordando da sua letargia iniciou um basta. Esse basta era relativo porque amigos da corte negociavam, eram corrompidos e atendidos.

II
         Continuou por centenas de anos o descalabro dessa ceifa.

         Com matas à vontade, portugueses, franceses, ingleses, holandeses, faziam o escambo da madeira com os índios Tamoios, sempre em conluio com a compromissada Feitoria Imperial.
         A famosa nau francesa Bretoa retirou da região de Laguna, Cabo Frio, poucos anos após o descobrimento do Brasil, segundo vários relatos, um total de cinco mil toras do Pau Brasil. Talvez seja exagero para viagens de uma só nau, porem é considerado certo que o interesse pela madeira, se sobrepunha as retiradas de especiarias da África, e quantia muito maior, pelas diversas naus, foram levadas.

         A resina extraída do Pau Brasil dava uma tintura especial aos tecidos finos, superior à madeira chamada Brazil que tiravam da Asia. A nossa madeira rendia mais. Prevaleceu o nome, não é coincidência. D. Pedro II entrou atrasado na defesa da nossa  flora. As serras maiores que consistem em robustas lâminas, dentes travados de três a cinco centímetros, tamanho médio de dois metros, cabo de madeira de ambos os lados, e operada por homens, um em cada ponta, cheios de músculos, foram usadas logo depois, junto aos primitivos machados. Eram os antigos traçadores, e os desafios dos gurrupiões. Aperfeiçoavam-se as armas dos desmatamentos.

         O plantio da cana e do café, foi beneficiado com a chegada dessas grandes serras manuais, incentivadoras do abate. No Brasil, foi dado o merecido e grande valor para essa madeira, levando o escritor Oswald de Andrade a trata-la como o mais importante símbolo brasileiro. Lançou o “Manifesto Pau Brasil”, exaltando a consciência nacional, para os brasileiros permanecerem atentos quando esquecidos.


III

         Os latifundiários não se deram por satisfeitos. Comandando o trabalho executado pelos escravos e brancos, a produção da devastação era considerada lenta. Queriam mais, e mais. Notícias de uma máquina a vapor que utilizaria a madeira descartada como combustível encheu-os de esperança, mas nessa altura o Pau-Brasil já estava quase todo sacrificado. Alcançavam um mundo de progresso, mas teriam que atacar outras madeiras, como fizeram.

         Foi o início do abandono das “rodas d’água”. As geniais que alimentavam as fazendas como uma dádiva de Deus, usando o precioso líquido para um gratuito funcionamento. Os entusiastas abobalhados viram nascer, o motor a explosão. Recebidos com reservas porque o petróleo era importado, custava. Correias moviam maquinas rápidas para retalhar os troncos. Usavam os motores chamados “cabeça quente”. Um maçarico manual aquecia seu cabeçote. Todo esse progresso se encaixava com o propósito de continuar os desmatamentos. A beleza da roda d’água foi virando decoração.

         Eu pensava que, com a brutal derrubada do Pau Brasil ficassem satisfeitos e eu estaria livre dessa selvageria. Dominava com meu porte aquela floresta. Entre elas eu tinha o maior tronco e era a mais alta. Eu mesma descartava os galhos baixos evitando escalarem e me desbastarem.

         Olhava com tristeza e desgosto aqueles monstros barulhentos com esteiras de aço, ou enormes pneus, enfurecidos, expelindo fumaça preta, derrubando o que tinham pela frente. Eram árvores baixas, minhas companheiras há tanto tempo.

         Injustiças daqueles monstros que não bastasse um, dois ligados entre si por resistente corrente, distanciados trinta, quarenta metros, avançavam arrancando e expondo a raiz de tudo que encontravam entre eles. Era lamentável ver aquilo.

         Nossas árvores rangiam, um doloroso choro, um longo e profundo grito nos tombamentos e os galhos arrancados no avanço da criminosa corrente, jaziam inertes.
         Eu de cerne rígido, um grande corpo, era respeitada pelos monstros.

         Éramos tantas que resolveram nos abandonar e irem atrás de outras áreas, com matas mais frágeis. Ficamos por muitos anos senhoras da mata, nos chamavam de manchas verdes.

IV

         Tínhamos respeitável personalidade, nosso tronco chega a mais de dois metros de circunferência. Dominamos na altura com nossos trinta, quarenta metros. Resistimos no tempo as grandes modificações climáticas da terra desde a última glaciação.

         Importante alimento dos primitivos homens que disputavam o consumo entre animais e aves. Índios que conseguiam subir em nosso pé, não alcançavam as frutas. São geradas nas pontas dos finos galhos, protegidas por um buquê de espinhosas folhas. Disputavam os frutos com aves como a gralha, que no local escondiam as sementes, ou enormes bandos de maritacas, papagaios, tucanos, bugios, os graciosos esquilos e muitos outros.

         Os índios, no uso da sua inteligência, usavam flechas especiais em seus arcos para acertar o receptáculo e assim derrubar as sementes. Indefesos os pequenos animais que comiam as do chão, eram alvo dos predadores maiores, e os indígenas na defesa do sustento, além da colheita dos frutos abatiam os famintos caititus, a delicia das suas festivas carnes assadas.

         Éramos tantas árvores que na época dos nossos frutos a mata alterava todo seu comportamento.

                  Exagero ou não, sou tida como mais saborosa que a castanha da Europa. Tudo que se faz com aquela, pode-se fazer comigo. Nossa mata é chamada pelos silvícolas com uma só palavra: Curitiba.

V
         — Mas os homens encontraram no meu tronco, repito, um másculo tronco, uma incrível dificuldade de retalhar-me. Só conseguiram quando descobriram as ferramentas criadas para o domínio das primas, as Sequoias Americanas. Os homens e suas novas máquinas encontraram-me pronta, limpa para o corte. Despida para a extração da resina que cria o alcatrão, óleos, breu, terebintina e me culpo envolvendo-me como uma das matérias primas para a fabricação dos pneus. Estes fazem parte da família dos monstros mecânicos que arrasam nossa mata.

As remanescentes da região sul alimenta não só os homens, como os homens estocam para alimentar seus porcos e outros mamíferos no inverno.

         Tombada, fiquei à mercê das novas serras que em fração de tempo sou transformada em pedaços. Fui vencida, mas contínuo muito útil, embora sofrida. Embarcadas em vagões e carretas, fui negociada para a revenda de materiais, cai numa tal Romano, de São Paulo. Comi muita poeira na estrada, tomei chuva, fiquei manchada, via ainda sangrar meu cerne. Empilharam-nos num grande armazém. Pensei que ali descansaria. Mas não. Em pouco tempo desgarradas, fragilizadas, fomos sendo vendidas.

         Quero que todos saibam quem sou eu. Pedaços de uma imponente árvore, rainha das matas do sul, das serras Paulistas aos montes do Arauco Chileno, a inspiração do meu nome: Sou a Curi, mais conhecida como ARAUCÁRIA. Transformada em tábuas, pontaletes, mourões, sarrafos, ainda sou eu. Deixei muitas serragens para traz, e imensos campos devastados.

         Eu, antes da transformação... Como era útil!

O mais simples era alimentar fogueiras com meus ramos que caiam quando secos, aquecendo e afastando animais perigosos.

         Inventaram fornalhas, vieram as caldeiras revolucionando com seu vapor um mundo de movimentos. Triste lembrança! Mas isso foi só o começo.

         Do vendedor de material, eu em forma de tábuas e outros cortes, fui levada para o centro da cidade, local em que seria levantado um grande prédio. Chamam-nos de andaimes. Muitas tabuas circundavam essa construção. Fomos seriamente judiadas. Deitadas, muitos pregos foram cravados, nos tornaram imobilizadas. Suportando resíduos de cal, cimento, reboco e areia, éramos pisoteadas por enormes sapatões. Na chuva virávamos uma lama escorregadia. Bem diferente da alegria dos meus galhos da copa, regendo suas folhas molhadas naquela distante floresta.        Balançavam dançando suas pinhas, pra lá, pra cá. Agora, do barreiro que é formado por cima de mim, escorre aguas sujas entre nossas frestas. Momento difícil, muito triste, vejo-me soltando lágrimas melosas, doentias.

VI

         O prédio subia, subia, nós acompanhávamos, chegou mesmo a passar os quarenta metros, altura que eu orgulhosamente ostentava naquela mata.

         Nascia o desconhecimento do nosso futuro. Uma enorme preocupação: Que seria de nós depois? Subiria até as nuvens? Claro que não, muito embora na montanha em que vivi abraçava as parecidas com algodão, nuvens que me roçavam muitas e muitas vezes. Banhavam meus galhos deixando nas folhas uma delicada nevoa. Ficavam gotas brilhantes, reluzentes ao sol, semelhantes a pequenas pedras preciosas.

         Ultimamente tenho sofrido violentos estragos na vida. Agora não gostaria de ser queimada, como vi acontecer por aqui. Depois de dar tanta contribuição, ter sido tão elogiada, ter matado tanta fome, e com minha forte estatura defendido tantas outras menores, não, não vai ser justo.

         Já estão retirando as madeiras, desmontam os andaimes, nos jogam no chão, pisoteiam, escuto:

         — Tirem logo estas sujeiras daqui. O paisagista vai começar o jardim...

         — Nossa! Chamou minha atenção. Eu não podia me recompor, que pena. Eu plantada no meio desse canteiro, com o porte que ostentava, não quero ser convencida, mas eu seria a grande atração. Não seria mais os animais me disputando, e sim a gente me admirando e os meninos catando meus pinhões, para comer ou para vender.

         Eu sabia que não podíamos ficar tempo ali, no barro prejudicando o planejamento do festejado e esquisito paisagista. Dias depois vieram e nos carregaram. Fomos vendidas novamente. Andamos, saímos da cidade e horas depois nosso caminhão embrenhou-se por um longo campo, nascia um novo animo, eu estarrecida não acreditava no que via. Uma montanha, mancha da mata, um rio e muito boi num enorme pasto. Com certeza fruto de um daqueles desmatamentos.

         Lindos animais, muitos incrivelmente sadios ficam numa área menor, selecionados pelos homens de chapéus abados. Justamente ai é que eu fui usada. Agora depois da minha via-sacra, foram muitos os percalços, nem tudo posso contar no estado em que me encontro.

VII

         Faço parte de uma cerca vasada composta de cinco taboas pregadas na horizontal, ela isola uma área onde o melhor gado é confinado. Falam que se chama seleção. Estou próxima da saída e assisto o embarque dos bois destinados aos luxuosos caminhões fechados, dizem, para um glorioso passeio. Glorioso, bonito e merecido, para um lugar muito mais limpo, higienizados. Falam até que ao chegarem tomam um demorado banho.
         Deve ser muito bom porque, nunca nenhum voltou. São merecedores. São grandes, lindo porte, couro delicadamente revestido, pelagem reluzente. Olhei bem para eles: São semelhantes aos animais pré-históricos. São muitos, pesados, bonitos, porém sua estatura não condiz com os demais bichos que conheço. As fêmeas são meigas, tem um olhar embevecido, geram “bebês” como as mulheres. Elas os alimentarão também com seu leite, e com carinhos lambe-os no crescimento.

         Pelo número de pregos que recebi, aqui devo permanecer por muito tempo. Sou uma das tabuas que impede a fuga desses animais, mais uma prova da minha resistência. Vivi na mata do fogo, suportei o maior frio, a maior tempestade com raios e trovões, o mais violento vento. Enfrentei as máquinas monstros, mas nem tudo é perene.
         Fui ou não fui uma valente e robusta?

         Fiz ou não fiz por merecer? Durante as centenas de anos da minha vida, aprendi aceitar o dia a dia sempre com energia, e não vai ser agora que vou dar-me por vencida. Ainda resisto, tenho folego, embora guarde uma sentida mágoa dos monstros, das serras, dos homens e muitas saudades da minha floresta.
      
Os homens com chapéus abados e uma lança pontuda na mão, trepados na minha cerca, esperam os animais para conduzi-los nos luxuosos caminhões. Fumam muito, e jogam os palitos do fósforo, a minha frente. - São os menores paus que já vi extraídos do meu grande porte.


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