O
Crime Compensa
José Vicente Jardim de Camargo
A noite já ia madrugada adentro quando
um berreiro de palavrões e lamurias rompe o silêncio:
— Cabra
safado, vai ter o que merece! - diz um.
— Vem
desgraçado que te mando pro mesmo lugar! - replica o outro.
— Parem
com isso! Socorro! Ajudem! - intervém voz feminina.
O tilintar das lâminas que se golpeiam
sobrepõem-se aos gritos cada vez mais rancorosos:
— Te
mando pro inferno!
— Vem,
que um já foi, tu segues logo!
— Parem!
Separem!
No terreiro, dois cabras se atracam
vibrando suas peixeiras com golpes violentos, que refletem ao luar o brilho das
lâminas afiadas.
Com gestos rápidos, desviando-se dos
golpes mortais, caminham em direção ao
barranco do rio que delimita o terreiro.
O mais forte avança contra o adversário
e, no momento de desferir o golpe mortal, este, esquivando-se se desequilibra,
tropeça e de um pulo, cai no rio.
Afunda... Emerge mais adiante... Submerge
novamente para não mais aparecer...
De águas revoltas, mais caudalosas que
o normal, dado a estação chuvosa, o rio segue seu curso rumo ao mar distante.
Dos que miram do terreiro a cena, sabedores
dos perigos das águas traiçoeiras naquele local de rodamoinhos, ouvem-se opiniões
divididas:
— Coitado
do peão, não merecia! Parecia ser boa gente! Bem que avisei pra ele não se meter
com esse cabra do Diabão, bom de faca e vingativo que nem cascavel!
— Bem
feito, cara de fora não mete o bedelho onde não é chamado! Diabão é cabra macho,
não leva desaforo pra casa!
Valdinéia, com o soluço preso na
garganta, balbucia:
— Morreu
por mim, lavando minha honra. Amor assim só o primeiro mesmo. Lhe disse que o
capanga de Zé Bento, metido a valentão e grudado no dono que nem sarna de
cachorro, não o deixaria sair vivo dessa. Mas não se conformou com meu destino.
Nem me reconheceu, com esses ossos salientes que nem bezerra chupada por
morcego. Aí seu ódio por Zé Bento aumentou. Disse que tinha de terminar o que
viera fazer. Só a peixeira lhe acalmaria a raiva.
Da janela da hospedaria em frente ao
terreiro, Jeremias, ainda atordoado pelo sono interrompido, olhos arregalados,
tendo calafrios no corpo só em lembrar as cenas de vida e morte presenciadas a
pouco, recorda do dia anterior quando estava a caminho da vila.
Vinha com sua tropa de mulas, trazendo
mercadorias pro armazém do Zé Bento. Numa ribanceira emparelha com um andarilho
de trouxa nas costas e peixeira na cintura que vai logo, como costume pra essas
bandas, puxando conversa:
— Venho
de longe, do acampamento da represa do Rio Madeira, obra grande, trem de muito
dinheiro já gasto e muito mais a se gastar, ônibus fretado pros peões em
licença, mas só anda no asfalto, chão de terra é no pé dois mesmo.
Sem receber resposta, continua:
— Vou
indo pra Vila do Jupiá, visitar a Valdinéia com quem tive um caso ainda menina
em flor, primeiro amor, mas depois que larguei a roça que só dava desgosto e
fui pra obra, ela conheceu um mascate metido a besta. De mercadoria mesmo ele
só se interessava pelas meninas virgens, que enganava com agrados que elas mais
apreciam: água de cheiro, pó de arroz, esmalte e batom dos bem vermelho, cremes
pra deixar cabelo liso e esconder manchas de sarampo e pragas. Quando a mãe tá distraída
lavando roupa na beira do rio e o pai no duro da roça ou doidão na pinga, vai
ele cobrar os regalos dados e promessas de muitos outros em troca de caricias e
agarra-agarra no meio do milharal. Depois do trabalho feito, se perde no
estradão pra não mais voltar. Vai a procura de nova clientela em outros rincões.
Motivado por ter um ouvinte atento,
continua:
— Quando
o pai soube do infortúnio, amaldiçoou a filha e, pra não ter o assunto se
alastrando de boca em boca e contaminar a filha mais nova, a enxotou de casa
com ameaça de morte se retornasse. Quando recebi recado contando o sucedido,
roguei praga e jurei que enfiaria a peixeira no bucho desse cabra safado. Mais tarde soube que Valdinéia, depois de
passar de mão em mão e não ter mais onde cair, foi atrás do mascate que já tava
de armazém e puteiro montado em Jataí e aí ficou. Mas sabe como é, primeiro
amor nunca se esquece, arde no peito com a lembrança. Depois da folga volto pro
acampamento, pra essas bandas não volto mais não, muita miséria, povo sofrido. Infância
passada no cabo da enxada, nada de escola, brincadeiras. Lápis e caderno só
conheci mesmo foi no canteiro de obra, curso obrigatório de ler e escrever, pra
entender e assinar o contrato e o pagamento da semana. Minha vontade é ir pro
sul, ganhar dinheiro, abrir negócio próprio.
Sem se darem conta do tempo passando,
se aproximam ao anoitecer do armazém do Zé Bento, único no lugarejo isolado do vale
do Jataí.
O tilintar das garrafas de pinga,
batendo umas às outras no lombo das mulas, anuncia a chegada da tropa.
Zé Bento aguarda, bronqueado pela
demora das mercadorias que trazem o lucro ao negócio: farinha, carne seca, sal,
açúcar e lógico a pinga malvada de produção local e qualidade duvidosa.
Nem percebe o peão que, sorrateiro,
vai em direção a luzinha vermelha nos fundos do armazém que denuncia a
finalidade do ambiente.
Jeremias, depois das promessas de não
mais atrasos, se dirige a hospedaria, louco por um prato de farinha com tacos
de carne de bode, sua iguaria preferida.
O Peão procura, na tênue iluminação,
por Valdinéia, sem êxito. Procurando a porta de saída, sente um aperto no
braço. Virando-se encara uma mulher semidesfigurada, quase sem dentes, olheiras
profundas que murmura no seu ouvido:
— Tião,
sou eu! Não me reconhece?
Sem acreditar no que vê, o peão
estonteia, sente um tremor frio lhe percorrer o corpo.
— Vamos
pro quarto - diz Valdinéia arrastando-o.
Ao vê-lo pálido, ela lhe dá um copo de
pinga lamentando:
— O
destino me reservou esta vida, não tenho mais vontade nem coragem de mudar. O
que me consola é de ter conhecido o amor contigo.
Tião, sentindo o bem da pinga lhe
recuperando as forças, responde:
— Não
te lastimes, tua vida sofrida será vingada. Com isso quero que te animes e
procures reencontrar motivos de viver, talvez com tua irmã, que com certeza não
te vai negar abrigo.
Com a mão firme na peixeira, rancor já
estampado no rosto, faz menção de sair. Valdinéia o segura:
— Não
faz isso Tião. Zé Bento tem capanga experiente, de faca afiada que não desgruda
de cima.
— Mas
eu tenho o ódio no peito que me duplica as forças. Depois padinho Cícero é protetor
de quem defende as boas causas, cumpre seu dever - diz Tião saindo rápido para não esfriar a
raiva que sente.
Ao chegar ao bar da frente, se
infiltra entre os tropeiros que chegaram para o pernoite. O tinir de copos e
garrafas se mescla com o vozerio contando os acontecidos do dia: fraqueza dos
animais sobrecarregados de peso; picadas de cobra, aranha e escorpiões
amoitados na mata rasteira; temporais e ventanias repentinas. O falatório e a
fila pro jogo de bilhar aumentam na mesma proporção do consumo de aguardente...
O ápice da noite se dá com o inicio do
forró com as mulheres damas vindo da parte de trás do armazém.
E é neste instante que Tião, de corpo
e mãos firmes, se encosta em
Zé Bento :
— Tu
não me conheces, cabra da peste, mas ajo em nome de Valdinéia que tu
desgraçaste - E lhe atravessa o ventre com a peixeira companheira.
Prontamente lhe pula encima Diabão, já
empunhando o temível facão, afiado diariamente com lima fina e óleo de pequi.
É um corre-corre geral em direção ao
terreiro em frente, dentre eles Valdinéia, que aos gritos pede auxilio para
apartar a peleja mortal.
Dia seguinte, povo todo da vila se
aglomera em frente ao armazém pro velório de Zé Bento. Diz que diz geral sobre
o ocorrido na madrugada. Uns relatam o triste destino do peão desconhecido e
sua valentia em enfrentar Diabão.
Outros a macheza deste e o merecido do forasteiro.
Jeremias, já a caminho do próximo
destino, devaneia... Surpreso ainda da atitude do andarilho que conhecera na
véspera e das poderosas forças que residem no interior das pessoas e que se
ocultam em aparências inocentes.
Súbito um barulho na mata lhe chama a
atenção. Mão já desliza pro 38 que leva escondido na algibeira da sela. Sucuri
ou onça pintada, pensa rápido, lembrando de histórias contadas.
— Alto
lá companheiro! - Grita o aparecido de braços estendidos e sorriso no
rosto.
— Você?
Como pode? É assombração! - contesta Jeremias se benzendo de olhos assustados.
— Que
nada companheiro, estou vivinho da silva e feliz! De alma leve e livre de vinganças
prometidas - responde Tião. Já se imaginando sentado numa das montarias sem
carga e assim poder recuperar os esforços feitos na travessia do rio de
correntezas muito mais bravas do que imaginava.
— Minha
vitória de estar aqui vivo, é o segredo que não contei pra ninguém. Na obra do
Madeira fiz curso de mergulho pra inspeção da barragem submersa e desde então
sou mergulhador profissional. Coisa que por aqui ninguém sabe o que é!
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