Sangue e areia - Oswaldo Romano


SANGUE E AREIA
QUASE UMA FICÇÃO
OSWALDO ROMANO 
                                                                           
            Montando bonecos de neve, Manuel Vidrie, menino de onze anos, com eles brincava. Homem é homem, falava seu pai na língua da Catalunha, a Catalã, hoje moradores de Palma de Maiorca.

            Da neve fazia também uns pássaros, queria que voassem, apreciava suas obras, mas logo as destruía.  Sempre terminava fazendo bonecos de touros. Sua escultura destacava-se entre as dos companheiros. Aprimoradas e estilo agressivo, um desafio a sua vontade de toureá-las. Era o que aprontava enfiando a calça nas meias que iam até o joelho, um chapéu ajeitado e uma espada, nada mais que uma vareta.

            Acompanhando seu pai, era constante suas idas à arena, onde vibrava mesmo antes de começar o espetáculo. Sabia o nome e a destreza dos toureiros do dia. Qual fazenda havia preparado e fornecido os touros. Citava como os bons, os de Salamanca.

            Mencionava orgulhoso o criador Eduardo. Eduardo selecionava os animais e fornecia os bois considerados prontos para um melhor espetáculo. Homens à cavalo, treinados, irritavam o rebanho marcando os mais agressivos, as próximas vítimas.

            Menosprezando o toureiro infeliz, o povo o alcunha de frouxo, domador de vaca velha. Injustiça porque, controlado pelas autoridades, nenhum boi poderia ter mais que cinco anos.

            Manuel com 17 anos tinha frequência permanente no Curro, tanto sua esperança e fazia treinamentos as escondidas. Chamado pelos amigos que previam seu futuro de Don Manuel, enaltecia seus conhecimentos. Conseguiu aproximar-se de Don Leopoldo que o levou ao Eduardo, o consagrado Eduardo Miura. Miura o  treinou, levando-o a Praça dos Touros.

            O poderoso e agressivo touro Miura, consagrou seu nome forte tornando-se ícone da fabrica de carros Lamborghine. Em homenagem a esses animais, foi criado seu invejável  brasão. Achando uma descoberta, a Lamborghine deu aos seus carros o nome dos famosos touros: Urraco, Miura, Diablo, o Revertón, este o touro bravíssimo que matou o valente Felix Gusman. Revertón está entre os cinco carros, mais caros do mundo.

            Manuel, toureiro experiente, sabia quando o touro procedia de oportunas fazendas. Lá treinavam indevidamente os animais com o uso das capas. Prática não recomendável. Touro aprende, tem memória e de fato na arena, avança perigosamente sobre o toureiro, e não sobre a capa que já o enganou durante todo treinamento. São vermelhas, com oposto amarelo, não porque atacam essa cor, e sim para esconder o sangue. Os empregados das fazendas usam qualquer cor de roupa. Sabem que ataque a cor vermelha é lenda, há muito, é sabido que os touros são daltônicos.

            Aos acordes das trombetas, por muitos anos Don Manuel acompanhou a ovação do povo, que aguardava sua entrada na arena. Antes de entrar, ajoelha-se no altar, pede a proteção da  Santa Macarena, e com profundo sentimento implora que Nossa Senhora do Pilar lhe acompanhe. Nunca deixou de sentir o frio que antecipava o perigo. Entrava orando, recebia nova ovação, puxava o folego mostrava a espada descarregando o medo também sentido por heróis.

             Liderando o cortejo de apresentação davam a volta no grande picadeiro. Don Manuel perdia o olhar no além, imaginando lances para  os próximos momentos do espetáculo, arrancar olés.

            Regressa na arena quando a fera já sangrando por picadas de lanças, espetadas por coloridas banderillas, e com o clamor da plateia estava mais furiosa. Depois de deixar o animal zonzo, sangrando e cansado, Don Manuel dando as costas à fera, só ouve o urro da plateia, e sente o sopro ofegante da vítima riscando o chão. A fera esta exausta, mas não acabada.

            Seus Hermanos de jornada, Paco Bautista, Carlos Escobar - o Franscuelo, Don Leopoldo,  abrigados no curro, espécie de coxia, vibravam e já certos do sucesso, saíram, sacaram seus lenços brancos e antecipando pediam a orelha. Pois só faltava ele se virar e na nuca cravar a espada, acabando com o sofrimento do Néo, um touro valente.

            Mas como tudo que é perigoso tem um risco, nessa corrida Don Manuel Vidrie, no último momento é atingido pelos chifres do sofrido Néo. Néo filho do velho Miura, levanta o toureiro,  que é jogado pelos ares e despenca na areia dura da arena, sangrava pela boca. Seu desejo era ver a reação do seu povo, queria ver a multidão. Ela estava assombrada e de pé. Tentou, mas não conseguiu, sua cabeça caiu.

            Os médicos fizeram de tudo para reanima-lo. Esgotadas todas as tentativas, puseram-se de pé. Fizeram o sinal da cruz, deram-se as mãos. O povo entendeu, seu ídolo morreu.

            Surge no alto das arquibancadas dois pistões distantes entre eles, revezavam-se mandando profundas mensagens fúnebres de Chopin. O povo calado sentia entrar nas profundezas da alma, aquele arrepio conhecido e misterioso.

Os turistas que normalmente torcem pelo touro, iam saindo, pouco acreditando  no que viam. Olhos vermelhos, aturdidos, lágrimas, indecisos. Tarde, muito tarde para arrependimentos. Levariam para casa uma imagem inesperada, um marco inopinado que os fariam repensar. Repensar por ter assistido e participado da morte de um ser humano, quando procuravam as delicias do lazer. Viram por um instante o outro lado da vida, a morte imprevista para testar o nosso comportamento. Junto a alegria, ao canto, um triste desencanto.

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