Um espírito inquieto demais - Ledice Pereira

 



Um espírito inquieto demais

Ledice Pereira

 

Giulia não se conformava com sua morte prematura. Pretendia ainda fazer tanta coisa, engravidar, voltar a estudar, trabalhar na área que havia escolhido. Aquilo era muita provação. Não podia aceitar. Aquele purgatório era um inferno. Ali não tinha voz, ninguém lhe dava atenção. Já havia marcado audiência com o superior e até agora nada!

Já se passara três meses que chegara ali, sem perceber o que havia acontecido. Só se lembrava de estar no lugar errado na hora errada quando todo aquele tiroteio começara. Maldita a hora em que resolvera ir procurar aquela vidente. Ela morava tão longe, no subúrbio do Rio. O pior é que nem chegou lá. Quando estava perto, ouviu aqueles estalos e não conseguiu identificar o que era. De repente, era gente correndo pra todo lado, se abaixando entre os carros. Demorou a entender. Sentiu como se tivesse levado uma chicotada, ainda viu um buraco no vidro do carro e não viu mais nada.

Tinha uns flashs de alguém que a carregou pra algum lugar... um monte de gente olhando... gente de branco... uma dificuldade para respirar.

Até que chegou ali, naquele lugar inóspito, sem ninguém conhecido. Um povo sem vida, desanimado, que não queria nem conversar. Custou a acreditar que tinha morrido. Então morrer é isso? Que coisa mais sem graça?

— Oi gritou – gente boa, não quero continuar aqui não. Quero voltar, quem mandou fazer isso comigo?

O que devia ser o chefe do lugar, encarou-a, mandando que ela parasse de gritar. Estava incomodando as outras almas que estavam tentando se purificar para subirem aos céus e ela, em vez de fazer o mesmo, havia infringido todas as normas.

— A senhora não leu o regulamento quando chegou aqui?

 Ela não havia lido nada. Era uma rebelde sem causa. Tentou explicar:

— Seu anjo, ou o que quer que o senhor seja, me desculpe, mas eu não estava preparada para vir pra cá. Olha pra mim, acha que eu tenho idade pra estar aqui. Fiz 33 o mês passado. Tenho a vida pela frente! O senhor já está bem velhinho, pela sua barba posso avaliar, então não tem mais o que fazer na terra, tem mais é que se conformar de ter este cargo importante, mas e eu? O que vou fazer o resto da vida?

O “anjo” percebeu que ela seria um eterno problema, não só pra ele, mas pra todos que procuravam a paz naquele lugar escuro e, digamos, desagradável.

Resolveu marcar uma assembleia com os veteranos do lugar, para juntos resolverem o que poderia ser feito. Aguentar aquele blá, blá, blá daquela malfadada recém moribunda, por longos anos, seria infernal para todos. Ninguém ali merecia passar por esse dissabor.

Levaram o assunto para o superior. O velho matusalém não gostava muito de se envolver em assuntos polêmicos, mas dessa vez era imperioso que desse seu aval, concordando com o veredito a que haviam chegado em deliberação.

— Que tal, excelência, devolvermos a criatura para o seu habitat, já que tantos transtornos nos tem causado?

O velho coçou a cabeça branca. Nunca havia tido que decidir coisa de tal alcance. Teria que pensar muito a respeito.

O destino de Giulia estava em suas mãos. Era muita responsabilidade! Poderia até ser destituído do cargo que conquistara às custas de muito sacrifício. Não podia, de uma hora pra outra, ser enviado para arder no fogo do inferno...

 



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