A
FUGA
Jeremias
Moreira
O
café da manhã era servido após a missa, obrigatória a todos, e que acontecia às
seis e meia. As aulas começavam as oito. Dessa forma, sobrava em torno de
trinta minutos para uma espécie de primeiro recreio. Assim começava a rotina no
Colégio São José, na pequena cidade de Engenheiro Schmidt. A instituição era
administrada por padres espanhóis da Congregação de Santo Agostinho.
Havia,
entre os alunos, uma hierarquia tácita de que os do quarto ano gozavam de
privilégios sobre os demais. Depois era a vez do pessoal do terceiro ano, em
seguida, a do segundo e, por último, a do primeiro. E, quem estava abaixo era
apelidado, pejorativamente, de “escolinha” do pessoal das hierarquias superiores.
Assim os alunos do terceiro ano eram “escolinha” do pessoal do quarto; os do
segundo, “escolinha” do pessoal do terceiro e do quarto; e os do primeiro, “escolinha”
de todos. Essa hierarquia era exercida em qualquer acontecimento, principalmente
nas filas para o refeitório. Quem entrava primeiro escolhia o que havia de
melhor, embora não houvesse diferença no que era servido. Mas, havia a sensação
de que os demais ficavam com as sobras.
Por
dois anos seguidos Alexandre, o Alê, não conseguiu ser aprovado no exame de
admissão ao Ginásio Estadual de Taquaritinga, sua cidade. Ninguém percebeu que
ele portava certo grau de dislexia e, por isso, cometia muitos erros de
ortografia. O exame de português era eliminatório, então ele ficava reprovado
por isso. Alê era o filho temporão de uma prole de cinco. O histórico escolar
dos demais era brilhante. Sempre estiveram entre os melhores de suas classes.
Mas, esse caçula, em se tratando de estudos, acumulara todas as falhas que os
outros não tiveram. Desanimado com o filho, seu Osório achou que a solução
seria mandá-lo para um internato. O Colégio São José foi o escolhido. Se o Alexandre
fosse um garoto de porte físico normal deveria ter o tamanho dos meninos do
segundo ano, que tinham sua idade. Mas, ele era um garoto avantajado. Aos doze
anos, aparentava quatorze. Por isso foi designado para o dormitório dos maiores
e, no refeitório, a sentar-se a mesa dos alunos do terceiro ano. Como ele era “escolinha”
de todas as outras séries, segundo a hierarquia, era sempre o último a chegar.
Acessava-se
o refeitório por um extenso corredor. Os alunos formavam duas filas e caminhavam
rentes a cada uma das paredes. Baluarte da ordem, sempre um padre postava-se
entre as filas. Rebelado por ser sempre o último, às vezes, quando o padre
estava de costas, Alê ultrapassava alguns meninos e ganhava posições. Ninguém
reagia por medo do padre.
Nessa manhã friorenta, esse papel coube ao padre Luciano,
que se virou bem no momento em que Alê executava a costumeira manobra. O padre manteve-se impassível até que Alexandre
o alcançasse. Então, o puxou pelo casaco, o tirou da fila, deu-lhe um forte tapa
no rosto e o mandou para fora. Surpreso e humilhado com a brutalidade do padre,
Alê pôs-se a chorar. Enquanto voltava em sentido contrário e era observado
pelos colegas, sua dor transformava-se em revolta. Quando atravessou a porta e
encontrou-se sozinho no pátio já não chorava mais. Sentia ódio. Lembrou-se de que
as sete e quarenta havia um trem com destino à São Paulo, que passava em Taquaritinga.
Determinado, saltou o muro e correu para a estação. No trajeto ouviu o apito que
anunciava a partida do trem. Acelerou a corrida e ultrapassou a plataforma da
estação com o comboio já em movimento. Emparelhou-se à porta do último vagão e
deu um salto para agarrar-se ao corrimão. O forte impulso levou seu corpo para
frente e o fez bater com o rosto no corrimão da porta. Machucou um dente, que se pôs a sangrar. Toda sua manobra
foi acompanhada pelo pessoal da segunda classe, que olhava pela janela e torcia
por ele. Alguns foram até a plataforma do vagão ajudá-lo e dar-lhe as boas
vindas. Foi afetuosamente acolhido por
essas pessoas que tinham um jeito estranho de falar.
O vagão todo era ocupado por nordestinos que
migravam para São Paulo. Era gente muito simples. Famílias inteiras, casais,
crianças e idosos que deixavam para trás um sistema feudal, opressor e estavam em
busca da esperança. Alê contou o acontecido. Estranharam. Os padres que
conheciam não agiam assim. Ao contrário lutavam por eles. Às vezes até
enfrentando senhores de terras. Perceberam pelas roupas que Alê era de outra
classe social, mesmo assim o acolheram. Convidaram-no para o carteado. Jogavam baralho
para passar o tempo. Nesse instante Alê lembrou-se de que estava sem um tostão.
No estado de revolta não pensou no dinheiro. Preocupou-se com o guarda
ferroviário, pois não tinha passagem e nem como pagar. Armaram um estratagema e
cada vez que o fiscal passava picotando as passagens, escondiam Alê. Enquanto
jogava, ele ouviu muitas histórias de vida. A exploração do trabalho, a seca e a
fome era comum a todos elas.
Pouco
depois que Alexandre saiu do refeitório o padre Luciano foi busca-lo. Não o
encontrou em lugar algum. Deduziu que fugira. Imediatamente acionou dois serventes.
Na estação souberam de um garoto que saltara para o trem em movimento e, por
pouco, não caíra nos trilhos. Só podia ser o Alexandre, deduziram. A notícia de
sua fuga se espalhou pelo Colégio. Os alunos comentavam gabando sua coragem. De
uma rodinha para outra seu feito crescia. O assunto chegou ao padre superior,
que se preocupou com um eventual litígio.
Era um assunto grave que precisava ser tratado imediatamente e com habilidade: -- “E,
se o garoto não alcançasse a porta e caísse sob o trem? Em que situação ficaria
o Colégio?” – preocuparam-se! Ligaram para Osório, o pai, em Taquaritinga! Ele
comprou a versão contada pelos padres e foi esperar Alexandre com a decisão de
levá-lo de volta no trem que passava, uma hora depois, em sentido contrário.
Alexandre
desceu do trem agradecido àquela gente sofrida, que já ouvira chamada,
pejorativamente, de cabeça chata, e que, naquele momento, fora tão solidária a
ele. Para a compreensão de um menino de doze anos, essa viagem se tornou uma
aula sobre o contraste social do país. Quando pisou na estação de Taquaritinga,
certamente, estava mais maduro. Viu surpreso o pai, que o esperava. Leu em sua
expressão o veredito de culpa. Tentou
falar, mas o pai o impediu. Disse apenas que voltariam. Essa seria sua última
chance. Se não tomasse jeito, ele que cuidasse da vida!
Chegaram
a Engenheiro Schimdt no meio da tarde. A viagem de volta foi um grande
sofrimento para Alexandre. Seu pai não falou com ele durante todo tempo. No
entanto, no Colégio o clima foi outro. Foi recebido com cordialidade pelos
padres, que minimizaram o ocorrido.
Com
Alê, seu pai manteve a frieza. Quando partiu, sua fala foi mais uma reprimenda
do que despedida. Com o coração na mão, Alê viu o pai se afastar. Angustiado, voltou
para o pátio.
Foi
entusiasticamente recebido por todos! Na ovação, não existia “escolinha”! Sentiu
em cada um dos colegas, um olhar de respeito!
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