Seria cômico se não fosse trágico - Ledice Pereira

 







 Protagonista, recebe a notícia da morte de alguém muito querido. Atordoado, acidentalmente, comparece ao funeral ou velório errado. 

 

Seria cômico se não fosse trágico

Ledice Pereira

 


Silvia abriu a porta afobada. O telefone tocava insistentemente. Ao atendê-lo, a ligação caiu. Não reconheceu o número. Julgou não ser nada importante. Dirigiu-se para o quarto de vestir. Precisava desfazer a mala, que tinha roupas do fim de semana na praia, pois viajaria, após o almoço, a trabalho. Seria uma longa semana de reuniões. Testa franzida, procurava escolher roupas práticas, mas executivas que combinassem entre si. Não pretendia levar tanta coisa assim.

Conseguira o estágio no escritório de advocacia, exigência da Universidade de Direito, para que pudesse formar-se no ano seguinte. Ali, aprendera muita coisa que a Universidade não ensinava e ela procurava ser bastante eficiente. Talvez depois, conseguisse ser contratada.

O telefone tocou novamente. Correu a atendê-lo. Imaginou que seria sua mãe.

— Oi - falou, displicentemente, já constatando tratar-se de seu chefe.

— Desculpe, Dr. Mário, pensei que fosse minha mãe.

O chefe não costumava ligar, muito menos num domingo à noite. A voz grave indicava que algo sério acontecera.

— Algum problema, doutor?

É, Silvia, mudança de planos. Teremos que adiar sua viagem. Faleceu a mãe do Dr. Renato e você terá que nos representar no velório.

Dr. Renato Marconi de Toledo era o chefão. Homem empertigado que mal olhava para os funcionários. Parecia ter o rei na barriga.

— O cara sempre me ignorou. Por que logo eu, terei que representar o escritório todo? — Falou com seus botões.

Torceu o nariz, dirigindo-se para a cozinha. Quando era contrariada, sentia necessidade de comer alguma coisa. A mala ficou lá, entreaberta sem que ela desse continuidade às arrumações.

Andou de um lado ao outro do pequeno apartamento, bufando. Fumou uns três cigarros seguidos. Os olhos pareciam querer saltar da cavidade ocular.

O velório de dona Celine seria das oito da manhã até às treze horas e trinta minutos. O chefe havia pedido que ela ficasse até o fim.

No dia seguinte, mesmo contrariada, vestiu-se discretamente e dirigiu-se ao cemitério no Morumbi em São Paulo. Não conhecia muito bem aquela região. Procurou o nome Celine na listagem que constava na entrada, havia Celina Toledo, não teve dúvidas, o chefe devia ter se enganado com a vogal.

Não havia quase ninguém. Além da filha, bastante desolada, que procurou acalmar e confortar, apenas uma senhora, que vestia um jaleco, e lhe foi apresentada como enfermeira. Deu graças a Deus, de não encontrar o chefão. Ficou a um canto apenas observando. Tudo muito simples.

 Estranhou que a coroa de flores que o chefe providenciara ainda não houvesse chegado. Tentou ligar para ele. Deduziu que, àquela hora, ele devia estar viajando de avião.

Em dado momento, a jovem, um pouco mais tranquila, convidou-a para tomar um café.

Resolveu aceitar.

Ficou sabendo que a jovem não tinha mais ninguém. Deixara a cidadezinha onde moravam no Ceará, para que a mãe se submetesse a um tratamento em São Paulo.

Aos poucos, a ficha caiu. Estava no velório errado. O pior é que passava das onze horas e tinha pouco tempo. Despediu-se, alegando ter horário para voltar ao trabalho.

O chefe havia falado claro: Cemitério Getsêmani no Morumbi. Ela ficara tão indignada de ser escalada para a função, que só guardou que era no Morumbi.

— Quando ele souber, vai ficar furioso comigo e é capaz de me mandar embora.

Colocou no waze e arrancou o carro. Não podia ser muito longe dali. O waze indicava 3,9 km. Uns quinze minutos. Acelerou.

O cemitério estava lotado. Custou a encontrar uma vaga. Dirigiu-se à sala indicada na entrada. Havia gente saindo pelo ladrão. Ninguém conhecido, a não ser ele, o chefão. Mesmo naquela situação, empertigado. Atravessou a multidão, pedindo desculpas, até conseguir chegar até ele.

O homem não lhe deu a menor atenção. Parecia nem saber quem ela era. Acho que jamais a havia notado.

Achou melhor explicar que havia ido ao cemitério errado. Ele sequer a ouviu. Estava muito preocupado em atender a todos.

Observou que a coroa estava ali, imponente, que não havia emoção entre as pessoas presentes, nem mesmo no dito cujo. Afinal era a mãe dele.

— Meu Deus, que frieza!

Em rodinhas, as pessoas conversavam e sorriam, parecendo estar se confraternizando. Ficou num canto, pensando que talvez tivesse sido melhor ficar no outro velório, tão vazio, mas tão cheio de sentimento.

O celular tocou. Seu chefe perguntava se deu tudo certo.

— Sim senhor. Aqui está tudo certo. As flores chegaram e estão lindas.

Fique tranquilo. Tudo nos conformes.

Ainda bem que, por telefone, o chefe nem percebeu sua ironia.

 

 

  

 

 

 

 

                                                                      

 

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