A segunda bala perdida
Por um período morei no bairro Bela
Vista, mais precisamente no Bixiga, região de São Paulo muito movimentada de
dia e de noite. Sempre me lembro de uma senhora que ficava na janela do primeiro
andar de um predinho antigo observando tudo o que se passava na rua. Todos a
conheciam de vista, inclusive eu, que nunca guardei nomes e já nem os perguntava
mais, e apenas a apelidei de Dona Florinda, em referência à personagem do programa
do Chaves que também usava um lenço na cabeça.
Ela dava palpite em tudo que acontecia
lá embaixo e sempre acabava por puxar papo ou, menos frequentemente, briga com
alguém. Se bem que era total insensatez de quem se atrevesse a brigar com Dona
Florinda, depois disso a única solução seria não passar mais por ali e não dar
brecha para continuar a desavença. Ela se recolhia tarde, depois das 22 horas, sempre
que o caminhão do lixo entrava na rua, vindo lá da Brigadeiro Luiz Antônio. Dizendo
que não gostava do barulho dele fechava a veneziana com força, como se quisesse
ofender o caminhão ou avisar a todos que acabara seu expediente.
Num dia qualquer, que eu estava voltando
do trabalho, parei para perguntar-lhe sobre a origem de uma perfuração que
havia na veneziana de sua janela e ela me pareceu muito feliz em poder contar.
Disse que a inquilina anterior havia saído do imóvel por conta do tal incidente:
uma bala perdida. Riu-se da medrosa porque considerava que quando era chegada a
hora da pessoa não tinha o que a salvasse, se não, não havia bala que a
acertasse. Adicionou mais alguns detalhes à história e gargalhou gostosamente ao
final, como sempre fazia, e quando me despedi continuou a resmungar a mesma história
na esperança de um outro transeunte ouvir e puxar papo.
Bastante tempo depois, estranhei quando
vi a janela fechada. Ninguém sabia o motivo e passei a observar mais atentamente:
o sumiço de Dona Florinda foi definitivo. Intrigada, parei para observar o
lugar que ela ficava e percebi que agora havia duas perfurações na janela. Nunca
soube se ela havia se ferido, passado dessa para melhor ou simplesmente se
mudado. Nem tive certeza de que foi uma segunda bala perdida que a tirou de lá
e lamentei que o predinho não tivesse um porteiro para me informar. Senti falta
dos resmungos e principalmente das gargalhadas, mas com o tempo me acostumei. Lembrei
do que ela me disse sobre a hora de cada um e, do fundo do coração, desejei que
não tivesse chegado a hora dela.
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