O KARMANN-GHIA - Antonia Marchesin Gonçalves

 



O KARMANN-GHIA

Antonia Marchesin Gonçalves

 

                Alguns anos atrás, meu marido Luiz realizou o sonho de comprar uma propriedade na sua cidade natal, em Cafelândia, onde ele montou a empresa de beneficiar e armazenar café e com isso conheci mais a cidade e as pessoas. Sendo uma área muito grande dentro da cidade, inclui uma casa, após pequena reforma, podemos toda vez que lá vamos ter a tranquilidade de unirmos o útil ao agradável, ou seja, o trabalho com conforto de casa própria, pois a cidade fica a 400 km de São Paulo.

                Nas férias meu neto mais velho Bruno costumava passar uns dias conosco, numa dessas idas, passeávamos pelo centrinho da cidade e ele me chamou atenção para um carro esportivo vermelho parado em frente à loja de calçados. Curiosos, vimos que se tratava de um Karmann-Ghia antigo bem detonado, por dentro e por fora, o banco do motorista com um buraco enorme chegamos a comentar como alguém consegue sentar e guiar, imagine a falta de conservação. Em casa, no jantar a conversa versou o tempo todo sobre o carro, meu marido logo se interessou e resolveu no dia seguinte falar com o nosso gerente e por ser nascido e morador da cidade conhecia todo mundo.

                Revelou ser do dono da loja onde o carro ficava estacionado, um casal já com certa idade,  não tinham condições de restaurar e ainda o usavam todos os dias, tamanho amor pelo veículo. Desde 1971 o carro fazia parte da vida deles, único dono. No dia seguinte mostrei a ele e sugeri que fizesse uma oferta de compra e que através do nosso gerente intermediasse a negociação.

 

                Foram várias tentativas. Durante dois anos eles resistiram em vender, quando fecharam a loja devido o avanço da idade e problemas de saúde, aceitaram vendê-lo. Ao chegarmos à cidade após todo esse tempo, recebemos a notícia, querem falar com o senhor. Meu marido junto com o nosso gerente Luizinho, coincidência tem o mesmo nome, foram à casa do casal. Eles não esquecem a emoção que os donos se encontravam, prostrados disseram: Esse carro deu-nos muita alegria e orgulho, foi realização de um sonho tê-lo adquirido, fizemos lindas viagens com ele, lagrimas surgiam em seus olhos, só nos prometa que o senhor vai cuidar bem dele.

                Com a promessa feita, o carro veio com vários assessórios junto, sinal de que tinham a intenção de restaurá-lo. Com o início da restauração descobriu-se que a cor original era amarela-gema, através da internet conseguimos comprar peças originais e refizemos a parte dos estofados. Todos os dias nosso funcionário liga o carro e quando lá vamos, fazemos um passeio pela cidade e periferia é obrigatório, chegamos a ir almoçar na cidade vizinha de Lins várias vezes e chama atenção dos clientes que muitos pedem para tirar fotos.

                Ainda faltam algumas coisas para serem feitas, mas meu marido logo que puder quer trazer-lo para São Paulo para participar do clube de colecionadores, continuar restaurando para ter o direito da placa preta, que simboliza que todo ele com peças originais participando em Campos de Jordão e outras cidades serranas desfilando junto com outros poucos autênticos que seus donos têm orgulho em ter.

                Os antigos donos já faleceram, mas tiveram a certeza de nosso carinho com o seu bem querido.

AS GERAÇÕES DE UM CASACO DE INVERNO - Antonia Marchesin Gonçalves

 


AS GERAÇÕES DE UM CASACO DE INVERNO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

                Uma viagem traumática a nossa vinda para o Brasil!  Vinte e dois dias no navio, minha mãe sozinha com os três filhos, pois papai já tinha vindo dois anos e meio antes, após guerra. Eu, a do meio, dos três passei todo o tempo com enjoos, mal conseguia comer, vivia mais a base de maçã. Muitas coisas aconteceram nessa viagem, mas contarei em outra oportunidade.            

                Minha mãe não tinha idéia do que iria encontrar, nada sabia, nem da temperatura, nem o tamanho da cidade. Dizia ela que se não viesse papai iria formar outra família, era bonito e já havia montado uma empresa de construção com sócios em São Paulo, no bairro de Pinheiros. Ao desembarcar em Santos assustou-se pensou que estivesse na África, pois ela nunca tinha visto uma pessoa de cor negra. Os estivadores todos sem camisa, suados e carregando as bagagens, tudo muito movimentado e falavam aos gritos.

                A sorte que logo avistou meu pai, agarrando as nossas mãos com força. Em suas bagagens, além de nossas roupas serem diferentes dos daqui, lindas camisolas longas de seda pura e rendas maravilhosas, conjuntos típicos da época, anos cinquenta, chegamos em cinquenta e um, blusas de seda e um casaco de pura lã preto estilo militar, que chegava até os pés. Com emoção e lágrimas nos olhos conta que a família toda foi se despedir em Genova e que a irmã mais velha tirou o seu colar de perolas que tinha e o colocou em minha mãe como lembrança, todos eram contra que ela viesse, tenho o colar até hoje.

                Mas, voltando ao casaco preto, aqui foi pouco usado por ela, o inverno sendo mais ameno que na Itália, ele foi ficando no armário, não tinha coragem de se desfazer dele, a moda mudava e o casaco ficava. Desde mocinha eu sempre tinha ideias criativas para as minhas roupas, ela as costurava, mas eu sempre punha um detalhe diferenciado. Quando comecei a trabalhar no Banco, não podia usar calças compridas, eram saias, meias de nylon, nem sandálias se usavam.

                Mexendo no armário de mamãe descobri o tal casacão e dei a ideia de reformá-lo para usar para trabalhar. Apesar de relutar gostou, mas ela não saberia lidar com a tal reforma, resolvemos encontrar uma boa costureira, que por sinal costurou por anos para mim, inclusive meu vestido de noiva, aceitava sempre as minhas sugestões. Eram os anos sessenta, transformei num casaco curto até os joelhos transpassado, com quatro botões e para dar mais leveza comprei tecido de lã xadrez branco e preto e forramos os botões e a gola estilo paletó também desse tecido, ficou muito chique.

                Ao me casar foi para o meu armário. Anos mais tarde após a quarta gravidez já não me cabia mais, mas não me desfiz dele. Passados alguns anos, a minha filha caçula adolescente se encantou com o casaco e passou a usar fazendo muito sucesso. Quando se casou com chileno, meu genro e lá mora, levou o casaco com ela, magra até hoje como eu era, mesmo com dois filhos, acredito que ainda faz parte do seu armário o querido casaco.

               

O primeiro trem. - Sergio Dalla Vecchia




Apesar de o Sérgio ter enviado REUNIÃO DE NATAL para o Natal de 2021, encontrei nos meus guardados O PRIMEIRO TREM, texto tão delicado, tão doce sobre o Natal, que o Sergio escreveu há algum tempo, e gostaria de replicá-lo aqui no blog.

Faço com esta postagem a minha homenagem ao irmão gêmeo do Sérgio.



O primeiro trem.

Sergio Dalla Vecchia


Era Natal.

A família toda estava reunida na sala de estar do sobrado da Rua Luiz Góes.

Eu e meus três irmãos estávamos muito ansiosos, pois já era quase meia noite e o Papai Noel estava pra chegar trazendo os nossos presentes.

O Eduardo, o mais velho havia pedido uma bicicleta Monark aro vinte e seis, pois já tinha mais de quinze anos e se achava o “adulto”.

O Pérsio, meu irmão gêmeo esperava uma nova bola de basquete. A bola velha já estava com os gomos gastos e vários deles sem couro. Ela até que aguentou muito, pois havia uma cesta no quintal e aconteciam diariamente inúmeros rachas. O mais interessante é que no jogo de vinte e um, no qual participam apenas dois jogadores o resultado era sempre alternado, ora era eu o vencedor ora meu irmão gêmeo. Havia lógica nisso, pois éramos idênticos, na aparência, peso e altura. Assim ganhava sempre quem estava com mais garra. A diferença era sempre de uma cesta.

O irmão caçula pediu um velocípede, que era um triciclo muito em moda na época.

Eu pedi um trem elétrico da ATMA. Era uma miniatura do famoso trem de passageiros que fazia a rota São Paulo / Barretos.

A noite estava estrelada dignificando da importância da data do nascimento de Jesus.

Por fim as esperadas doze badaladas do relógio antigo ressoaram pela sala toda como prenúncio de felicidade e alegria.

Em seguida ouvimos a voz do meu pai lá do andar de baixo:

 O Papai Noel esteve por aqui e deixou alguns presentes, desçam aqui, venham ver que como são lindos!

A tática dos meus pais era essa, enquanto éramos distraídos na sala, pela minha mãe, meu pai descia e abria uma pequena sala que seria uma futura adega e que servia como guarda volumes deles, pois só eles tinham a chave.

Meus irmãos e eu descemos a escada voando e fomos direto para a adega e pronto! Lá estavam os nossos queridos presentes.

A bicicleta Monark do Eduardo era linda com os para-lamas na cor vinho e os cromados reluzentes!

A bola de basquete do Pérsio era de couro marrom, com gomos muito bem costurados e tinha aquele cheirinho de couro novo que todos nós apreciamos.

O caçula montou no seu velocípede de imediato e já deu umas voltas externando toda a sua alegria, com um lindo sorriso e brilhos nos olhos.

Enfim o meu presente. Lá estava a grande caixa de papelão que na sua tampa estampava uma gravura da composição do trem dos meus sonhos.

Após todos abrirem os embrulhos, subimos para cearmos. Os brinquedos foram vistos, apalpados e cheirados, mas para brincar mesmo só no dia seguinte. Essa era a regra lá de casa.

Todos à mesa e meu pai dizia algumas palavras de agradecimento ao menino Jesus pela fartura daquela refeição, pelo bom ano, pela nossa saúde e pela prosperidade. Daí sim iniciávamos a ceia.

Após muitas conversas e de barriga cheia, o sono surgiu de repente e nós crianças fomos todos cambaleando para as nossas camas. Desmaiamos de sono!

O dia amanheceu aflito, e eu desci desesperado para montar o meu trem elétrico.

Escolhi um lugar seguro embaixo da escada que era ideal para se montar os trilhos.

Assim fui montando um a um os segmentos de trilhos, até que o circuito composto de duas retas e duas curvas de 180º graus se formou. Agora faltava ligar o transformador e pronto.

A energia elétrica estava ligada e a locomotiva já podia se mover, bastava apenas colocá-la nos trilhos.

Na sequência montei o cenário, que consistia de uma estação ferroviária e uma casa de fazenda com miniaturas de vacas, cavalos etc.

Enfim, tudo pronto. Peguei a locomotiva de dentro da caixa e a instalei nos trilhos.

Meu Deus, que imponência! Era a réplica de uma locomotiva elétrica “GE A1A- A1A” e estava nas minhas mãos! 100t de peso e quase 20 metros de comprimento!

Ela era na cor azul e tinha a marca da Companhia Paulista de Estradas de Ferro “CP” em branco. Igualzinha a verdadeira.

Sim, eu sabia, pois viajei várias vezes nesse trem quando ia para Barretos, cidade onde nasceu o meu pai.

Cuidadosamente, coloquei-a nos trilhos. Acionei a alavanca de avante no transformador e pronto. Lá foi minha locomotiva desfilando pelos trilhos. Eu estava maravilhado! Eu me deitava com a cabeça junto aos trilhos e a admirava com meu próprio zoom a passagem dela quase raspando no meu rosto.

Após algumas voltas parei a GE na estação e fui pegando um a um dos cinco vagões que formavam a composição:

O do correio, o restaurante, o Pullman, o de primeira classe e o de segunda classe. Todos na cor azul e o teto em prata. Fui colocando-os nos trilhos, sentindo, admirando e recordando minhas viagens.

Finalmente, a composição estava completa, todos os vagões engatados à locomotiva e tudo pronto para iniciar a viagem inaugural do meu trem! Só minha!

Assim a composição partiu. Eu me posicionei deitado junto aos trilhos, extasiado com a passagem de cada vagão junto ao meu rosto.

O vagão Pullman com suas poltronas giratórias, o restaurante com suas mesinhas ornadas cada uma com o seu abajur, o de primeira classe com seus bancos estofados na cor vinho e o da segunda classe com bancos revestidos de palhinha.

Assim, o trem passava e por vezes eu era acordado por alguém, pois havia dormido embalado pelo som dos trilhos emitido pelas rodas passando pelas suas emendas: tetreque-tetreque, tetreque-tetreque... E viajando, viajando ...


Reunião de Natal - Sérgio Dalla Vecchia

 


Reunião de Natal

Sérgio Dalla Vecchia

 

No feriado de 12 de outubro, dia de Nossa Senhora de Aparecida, estava eu no notebook arrumando arquivos, racionalizando e deletando muitos, foi quando abri o de fotos. Se fosse um armário estaria empoeirado. Mas não! Sem poeira, intactos desde quando foram salvos. Pastas de viagens, festas, família e tantas outras. Como o clima do feriado era propicio à reflexão, fui induzido a abrir uma pasta do Natal de 2008.

Ao iniciar o desfile de fotos, senti a certeza de que o tempo não para nem para respirar. Lá estavam todos os familiares reunidos na grande sala do apartamento da minha querida mãe. Matriarca animada que sempre reuniu todos, ao menos uma vez ao ano. Não aceitava ausências.

Cada foto me flechava com alegria, os bisnetos, netos, filhos e noras da figura ímpar de minha mãe. O sorriso comandava a festa, primos e primas abraçados, cunhadas em prosa descontraída, meus irmãos e eu contando as novidades do ano, animados com uma boa dose de whisky.

Feliz, revivia aquele momento como se lá estivesse, até que me deparei com a foto do meu irmão gêmeo vestido de papai Noel, faces coradas esbanjando saúde, enquanto distribuía presentes para a criançada. Abrindo mais fotos, achei uma linda, mamãe junto com duas noras sorridentes.

Do nada a mente ficou confusa, o sentimento alegre desapareceu, surgindo tristeza e olhos marejados. Pensei com meus botões, esqueça, é a vida. Determinados frutos da árvore genealógica, por sua doçura caem antes do ponto. A sabia natureza precisa equilibrar o terroir com os seus bons fluidos e por isso os atrai para seus braços.

Estava quase conformado, quando lembrei do Papai Noel!

Quem será o Papai Noel neste Natal, que meu irmão fazia tão bem?

Meus botões logo responderam com certo constrangimento:

Neste ano ele não poderá comparecer, pois sua mãe programou uma grande festa no céu.

E até agora você não foi convidado.


PROCURANDO O NATAL - Oswaldo U. Lopes

 


PROCURANDO O NATAL

Oswaldo U. Lopes

 

            Quando se procura pelo Natal nos Evangelhos, pouco se vai encontrar. Já o presépio tem local, data e autor (Greccio, 1223, São Francisco). O Santo queria ensinar aos camponeses como fora o nascimento de Jesus. No entanto, as figuras que usou, são mais do que as encontradas nas Escrituras. Muitas provem de tradições orais e histórias populares que rodeiam o nascimento do Salvador. O certo é que o nascimento se deu em Belém durante o censo determinado pelos romanos.

            Ciente da falta de informações, resolvi procurá-las eu mesmo entrevistando alguns dos personagens que presenciaram o nascimento de Cristo. Assim procurei o galo que me informou:

— Naquela noite fazia frio e eu estava quieto no meu poleiro, quando vindo da manjedoura uma luz intensa brilhou. Achei que já era dia e cantei. Anos mais tarde eu estava em Jerusalém, quando o Cristo me olhou firme, tão firme que tornei a cantar, Pedro acabara de negar Jesus por três vezes. Dai em diante resolvi permanecer quieto em silêncio.

            Como sabemos, os pastores foram avisados por um enviado celeste e foram adorar Jesus. Procurei Daniel, um deles, que me contou:

— Naquela noite guardávamos nossos rebanhos, quando nos apareceu um anjo e nos convidou a ir até a cidade para festejar o nascimento do Salvador. Fomos, com nossas ovelhas, e encontramos o menino numa manjedoura. Brilhava tão intensamente que ficamos ofuscados. Nos ajoelhamos e demos graças a Deus porque vimos o nascimento do Messias. Nossas ovelhas baliam com extrema alegria como se soubessem que nascera o Salvador que tanto falaria delas.

            O próximo que procurei foi Baltazar, um dos reis magos, companheiro de Melchior e Gaspar. Ele tinha a pele escura e era de notável porte físico e beleza. Ele me falou:

— Percebemos no céu uma estrela guia e resolvemos segui-la, procurando o Rei dos Judeus. Achamo-Lo quando já tinha nascido e O encontramos no colo de sua mãe, Maria. Oferecemos ouro, porque Ele era Rei, incenso porque era Sacerdote e mirra, porque era Homem.  Eu levava a mirra, porque aos de pele escura, como eu, muitas vezes é negada a condição humana.

            Continuei minha busca e me lembrei dos animais que aqueceram o menino com sua presença. Não achei o boi, mas achei o jumento que me contou:

— Naquela noite algo estranho ocorreu no estábulo, estávamos eu e o boi quietos no nosso canto quando a mulher chegou. Grávida, não tendo outro lugar onde ficar, deu a luz ali mesmo e envolveu o Menino em faixas e O colocou na manjedoura, próximo de nós. Estava frio e nos aproximamos para aquecê-los com nosso calor e sopro. Eles depois foram embora e só voltei a vê-Lo, anos depois em Jerusalém, quando, já velho, O vi, montado em meu neto, entrar gloriosamente na cidade sagrada.

            E a mãe, mulher incrível, forte e cheia de vigor como reagia a tudo isso?

Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração. (Lucas 2 – 19).

O JOVEM BIÓLOGO AVENTUREIRO - Antonia Marchesin Gonçalves

 


O JOVEM BIÓLOGO AVENTUREIRO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

                Desde pequeno Alberto gostava que seus pais contassem historias sobre lugares pelo mundo. Por eles serem professores de geografia e história o incentivavam-no aos livros dessas áreas. Adolescente, já pesquisava sobre os pontos geográficos mais pitorescos do planeta. Numa dessas deparou-se com a pequena cidade de Étretat com apenas 407 km, pela sua paisagem à beira do Canal da Mancha. O que mais o encantou foram, as falésias que cercam a região de Cotê d’Albâtre, na Normandia. O encantaram, a ponto de ter fixado a ideia de que na idade adulta iria visitar ao vivo tamanha beleza da natureza. Paredões rochosos esculpidos pelo mar, que encantou grandes pintores impressionistas e a ele.

                 Apenas formado em Biologia foi poupando de sua mesada até ter a quantia suficiente para fazer a tão sonhada viagem. Comprou passagens para o cruzeiro cujo roteiro incluía tal parada. No navio fez amizade com vários passageiros, mas nem todos tinham o mesmo interesse pela tal cidade e suas falésias. No decorrer da viagem, ele estudou o máximo que podia a respeito, sabia que só podiam descer quando a maré estava baixa, onde podiam andar pelos arcos e visitar as praias.

                Ao avistar do convés as falésias, a emoção tomou conta dele, principalmente aquela visão que parecia um mamute com a tromba dentro do mar como se bebesse água, indescritível. Desceu junto com todos munido com sua mochila nas costas. Andou junto com o guia e outros passageiros e quando foram chamados para voltar ao navio, ele como já havia premeditado, se escondeu decidido a não voltar. Ficou escondido durante uma hora até ver o navio que já estava em alto mar, e saiu. Sabia que tinha poucas horas até a maré subir.

                Prevenido na mochila levara lanterna, uma machadinha de escalar, corda, algumas barras de cereais e água. Perto do horário da maré alta, tentou achar algum paredão que pudesse escalar, localizou um canto e subiu, só que a sua parca inexperiência não permitiu que chegasse até ao topo, e a chance de ter que ficar a noite ali era grande. A sorte que ele encontrou um recorte na pedra mais largo, assim ele conseguiria ficar sentado, não se importou com o desconforto, tamanha felicidade de estar ali realizando o um sonho. No fim da tarde, ainda claro a fome chegou e comeu uma barra para enganar o estomago. Vai ser uma noite longa e não posso dormir e nem descer, pois a maré já subiu, pensava.

                Ainda calmo, quando escureceu ligou a lanterna, o silêncio dominava na total escuridão e a única coisa que ouvia eram as ondas que batiam com forças nas escarpas das falésias. Nas primeiras horas ele só curtia a vista, a fúria das ondas, o luar refletido no mar, estava inebriado. À certa hora porem começou a ventar muito, com rajadas fortes que o assustou e para piorar o sono chegara, de tempos em tempos percebia que cochilava. Pensou bastante se dormisse cairia com certeza e se afogaria. Pegou a machadinha e usou de toda a sua força limitada pelo pouco espaço, fincando-a firme na rocha, com a corda amarrada nela, enrolou a outra ponta nele e com vários nós, assim se cair ficaria pendurado, quando amanhecesse continuaria a subida ou desceria.

                Foi a noite mais torturante que passou A certa altura as pernas doíam com câimbras, tentava levantar, mas o espaço era curto, entre um cochilo e outro, acordava assustado, com dor e frio, esquecera de levar uma pequena manta, e na sua empolgação não lembrou do fogo que seria primordial. Ao amanhecer comeu outra barra, bebeu água e constatou que a maré estava baixando. Esperou baixar totalmente e resolveu não mais continuar a subida e sim descer à espera da chegada do navio com novos turistas, no mesmo horário.

                Teve muita dificuldade em descer, pois o corpo estava travado e com câimbras contínuas devido a posição que permanecera a noite toda.

                Quando viu o navio chegar não imaginou o alivio que sentia, o guia o reconheceu e foi direto para a enfermaria. Hidratado e medicado teve a certeza de que não basta gostar de aventuras, jamais aventurar-se sozinho e ter todas as informações necessárias, coordenadas para o sucesso delas, era o que acabara de apreender.        

Pacifico com a ajuda de Deus, imagine sem... - Oswaldo U. Lopes

 


Pacifico com a ajuda de Deus, imagine sem...

Oswaldo U. Lopes

 

         Pacifico que pelo nome não se ache, era ainda mais pacifico do que fazia supor o pronunciado no batismo. Daí o susto, a surpresa, o inimaginável, quando o desconhecido se aproximou e sem sutileza sapecou o convite inesperado:

— Minha proposta é simples, você vai se tornar um milionário, mas tem de sair para uma viagem do jeito que está, com essa roupa e o dinheiro que tiver.

         Pacifico nem titubeou em recusar a oferta, tem cada maluco neste mundo, onde já se viu? Era melhor ter visto, não devia recusar assim sem mais. Virou as costas e foi-se...

         Foi-se para ser assaltado na outra esquina e ficar sem o pouco dinheiro que tinha. Tentou parar um ônibus e explicar porque estava sem dinheiro para a passagem. Ouviu a porta fechando e escutou uma praga: “Me aparece cada uma, vagabundo”.

         Seguiu a pé, pensando só me falta chover. Olhou para o céu e viu a chuva vindo, lembrou-se do seu Osório, mas não tinha a verve de Noel e o dinheiro não estava com o bicheiro, mas com o assaltante.

         Molhado, suado, enojado, cansado de ser Pacifico pensou em procurar uma saída, alguém que tivesse piedade dele. Afinal fora lá que nascera, em Piedade.

         Nossa Senhora da Piedade, o menino pacifico, Pacifico até no nome, seguindo a procissão, aquela mulher tristonha com lágrimas escorrendo no rosto, será que teria piedade dele nesse momento tão sofrido? Silêncio total, a da Piedade devia estar ocupada com outras tarefas.

         O que mais poderia dar errado? Molhado, sem dinheiro, sujo, com frio, continuou caminhando e, escorregou caindo com o traseiro numa poça de lama.

         Não podia reclamar, devia mesmo agradecer a da Piedade, não sentiu nenhum osso quebrado, nenhuma dor nos braços e pernas. O fundilho estava sujo e enlameado e na ponta do rabo doía um pouco. Considerando o que vinha acontecendo era até pouco, quase conseguiu pensar que estava com sorte. Foi um mau pensamento, pois ai surgiu o cachorrão que se aproximou e começou a lamber seu rosto com aquela língua enorme que parecia uma lixa.

         Sentiu-se cansado, perdido, ferrado, vitima de todos os “f” que conseguia lembrar. Levantou-se, fez cosquinha no cachorro e foi caminhando, não aguentava mais, viu um cantinho da calçada com grama e deitou- se ali mesmo, molhado com molhado, o cão junto.

         Em silêncio, ficou rezando pedindo que o mundo acabasse, mas nem nisso foi atendido, o mundo não só não acabou como continuou a girar.

O BAR DO JUCA - Suzana da Cunha Lima

 



O BAR DO JUCA

Suzana da Cunha Lima

 

Juca tomava conta daquele bar há muitos anos.  Tinha uma habilidade invulgar de misturar bebidas e batizava seus drinks com os nomes mais exóticos e picantes: garganta profunda, decote ousado, veneno mortal e por aí ia.

Também era muito conhecido pela maneira com que tratava seus fregueses costumeiros, sempre dando seus pitacos e levantando a moral de todos que encostavam a barriga no seu balcão com ar sorumbático. Um psicólogo de plantão.

— É mulher, dizia. E tem muita mulher no mundo, mas os caras cismam de ficar com quem não os quer. Pode? – E lá vinha um conselho, uma observação ou uma piadinha, a maioria das vezes com um fundo hilário, porque dizia que não se deve dar confiança nem espaço para tristeza. – Espanta ela, xô!   E o freguês ainda ganhava um brinde, golinho de sua última invenção alcoólica.

“— Larga de mão esta mulher, mano. Só vive de pondo cornos, já viu que não serve mesmo. Olha a Bia que está sempre de olho comprido para você. Bonitinha e trabalha, viu? Não é nenhum encosto.” 

“— Cara, foi a algum velório? Não me diga que voltou para Carol. Tu não tem jeito mesmo, não é? Olhe, experimente minha última invenção, especial para você. Venenosa:  O primeiro gole é de graça.”

Até o dia em que ele foi trabalhar arrasado: a mulher tinha lhe dado um fora homérico, jogado suas coisas na rua e batido a porta em sua cara.

E agora? Quem ia consolar o Juca? Todos ficaram desolados, sem saber o que fazer. Até que o Zezinho foi atrás do balcão e preparou uma batidinha com limão bem ardido e foi consolar o amigo.

— Tem muita mulher no mundo, Juca. Olhe em volta, a Bia continua lá.  Tome um golinho desta invenção minha. Garanto que vai passar.

O verdadeiro espírito do Natal - ANTONIA MARCHESIN GONÇALVES

 


O verdadeiro espírito do Natal 

ANTONIA MARCHESIN GONÇALVES

 

                Minha amiga Sonia sempre foi amorosa, adolescente ajudava as pessoas de rua, atormentava a mãe até conseguir um agasalho ou prato de comida. Crescemos juntas, na época ela era vizinha de casa, eu admirava a sua vontade em ajudar todos. No Natal era quando mais ela demonstrava a sua solidariedade e amor com os mais desfavorecidos, dizia sempre que ser injusto tantos brinquedos para alguns e nada para outros. O sonho dela era fazer um Natal farto para as crianças do orfanato.

                Começou a frequentar e ajudar vários orfanatos até casar. Seu marido tinha o mesmo conceito de ajuda aos mais pobres e se davam muito bem. Já com dois filhos, faziam as visitas quinzenais aos orfanatos, quando um dia no orfanato que mais ajudavam, tiveram a surpresa da vinda de três irmãos, dois meninos e uma menina, dez, oito e seis anos. Desnutridos e se aconchegando um no outro, medrosos e desconfiados. Foi amor à primeira vista. Sonia, Ernesto levaram os filhos às visitas para incentivarem a se doarem também, se encantaram com os irmãos.

                Ficaram sabendo que o pai havia morrido de alcoolismo e a mãe os deixou lá dizendo que fossem dados para adoção, ia sumir no mundo, assim contaram. Com a autorização da entidade levaram os três para casa, me ligou contando toda feliz e completando que passariam o Natal com sua família. Sempre no Natal eu levava lembrancinhas para a família, desta vez ela pediu que não levasse nada para eles e sim para os irmãos, pois precisavam de tudo e me mandou a foto deles, bonitos a menina tinha os olhos verdes, mas as expressões eram de tristeza. Os preparativos para o Natal estavam a todo o vapor, chegou a contratar um Papai Noel profissional, para que o espírito natalino ajudasse a transformar aqueles corações. O mais importante foi terem contado a história do nascimento de Jesus. À medida que armavam o presépio foram contando a realidade do Natal, ensinando que o maior homenageado no Natal era Jesus que veio para nos salvar. Contou que nasceu num estábulo de animais protegido por eles quem o aqueciam e o universo o recebeu com muitas estrelas cadentes, anunciando a sua chegada, como se o céu tivesse em festa. A família foi à missa, voltaram e encontraram o Papai Noel já na porta à espera, fui junto e não me contive de emoção quando os vi ganhando presentes da mão do Papai Noel. Os olhinhos brilhavam igual às estrelas, foi lindo. Lógico que Sonia e a família conseguiram adotar os três, dando educação amor e carinho familiar.

                Esse para mim é o verdadeiro espírito de Natal.