O XAROPE MILAGROSO - Antonia Marchesin Gonçalvs

 



O XAROPE MILAGROSO

Antonia Marchesin Gonçalvs

 

 

                Desde criança Joana demonstrava impaciência. As mamadas eram difíceis, não tinha paciência de esperar o seio, berrava como um bezerro desmamado. Foi preciso introduzir rapidamente a mamadeira na vida alimentar dela, e só com mamadeira que resolveu. Em termos... Pois, com o início da alimentação sólida ela voltou a ter compulsão e as colheradas tinham que ser seguidas, sem dar tempo de esfriar. A solução era já levar a comida morna senão o prato ia para o chão, tamanha impaciência.

Sua mãe, coitada, associava ao gênio difícil se desdobrando ao máximo que podia, quando crescer vai melhorar, pensava. Já o pai era a favor de umas boas lambadas com a vara de marmelo para curá-la da impaciência.

                Mas não, Joana é sinônimo de problemas, na escola começou a demonstrar impaciência com tudo durante as aulas. Levantava-se e ia embora se os professores fossem calmos demais para dar as aulas, tamborilando os dedos da mão na carteira, balançava as pernas o tempo todo, irritando a todos. Começava aí a via sacra da mãe dela. Toda semana era chamada pelo orientador, sendo aconselhada a procurar um especialista.

E ela foi até no melhor boticário do lugar, pois ela ouviu uma vizinha comentar sobre o xarope do farmacêutico Thomas, dizendo ela ser milagroso, mas tão milagroso que até curou seu marido um mentiroso contumaz.

Foi aí que Neuza, mãe de Joana, contou o seu problema ao farmacêutico. Thomas com toda a calma falou que estudaria o problema e faria a receita de acordo com a patologia de Joana. Dois dias depois telefonou avisando que estava pronto o xarope. Importante, disse ele, tomar apenas uma colher três vezes ao dia, não mais.

Uma semana depois, Neuza voltou à farmácia, estava desesperada. Contou que quando ela percebeu o efeito positivo do xarope, que o remédio acalmava Joana, animou-se, e deu-lhe o dobro da dose.

O efeito foi de tirar o fôlego, Dr. Thomas! No começo ela levantava da cama sem pôr os pés no chão, o que já era incompreensível. Mas, depois, ao invés de andar, para nosso espanto, ela flutuava entre os cômodos da casa.  A coisa foi tão surreal, mas tão assustadora, que tive que acorrentá-la para não sair voando para o quintal! Ah, isso é muito triste. O que eu faço agora?

                O farmacêutico deu-lhe uma baita bronca. Preciso trabalhar um antídoto, dona Neuza, disse ele com dedo em riste.  Isso não será possível do dia para a noite. E, vai lhe sair muito caro...

A louca ou um olhar diferente - Ises A. Abrahamsohn




A louca ou um olhar diferente

Ises A. Abrahamsohn

 

Os artistas da trupe de comediantes tinham se apresentado todos os dias da semana nas cidades do Norte. Hoje era domingo, dia do Senhor. No sábado a peça foi encenada em Lamego. Grande sucesso. O prefeito, entusiasmado, convidara todos para um lauto almoço na sua quinta. Agora, empanturrados, os atores roncavam à sombra do pequeno olival. Porém nem todos dormiam. Antônio tinha percebido durante o almoço os olhares interessados que as jovens e, principalmente  Carolina, filha do prefeito lhe lançavam. Belíssima rapariga aliás. Alta, braços e pernas torneados, pele alvíssima, cabelos negros e olhos de um azul profundo herdados de algum celta que se estabeleceu no norte de Portugal. Não desgrudava os olhos de Antônio. Também...  Não era de se estranhar. O jovem ator de aspecto cigano  chamara a atenção de todos, homens e mulheres  durante o espetáculo. Rosto afilado, de tez morena, cabelos revoltos  presos na nuca por um despreocupado cordão negro. Porém o que atraía as pessoas eram os expressivos olhos castanhos que desprendiam chispas verdes a depender do interesse do ator. Antônio deitara-se afastado dos demais protegendo o rosto por um enorme chapéu de palha. Estava acordado e percebeu Carolina atrás  de uma árvore a espreitá-lo. Resolveu ignorá-la e continuou com o rosto coberto fingindo dormir. A jovem se aproximou e ao inclinar-se  falou baixinho:

Venha comigo que lhe farei uma surpresa.

Antônio, curioso seguiu a rapariga até o galpão de madeira. Ao ser aberta a pesada porta, Antônio na semiobscuridade, pôde ver os fardos de feno e ferramentas do celeiro. Viu quando ela baixou a tramela de madeira trancando a porta do lado de dentro.

O rapaz permaneceu parado olhando em volta, à espera, ainda curioso do que ela iria lhe mostrar. Carolina colou seu corpo ao de Antônio e começou a beijá-lo freneticamente. Os braços dela apertavam-lhe as costas descendo até as nádegas. Surpreendido,  o rapaz de um repelão se soltou e recuou alguns metros.  A moça o alcançou e empurrou-o até ele cair sobre um monte de feno. Levantando o vestido de verão lançou-se sobre Antônio puxando a calça para baixo. Carolina era uma pessoa vigorosa, quase da sua altura e forte, mais forte ainda tomada pela paixão. Antônio deu-lhe um safanão empurrando-a para o lado.

Pare com isso, menina. Não estou para isso.

A garota o olhou sem compreender. Nunca lhe acontecera antes. Nunca fora rejeitada pelos rapazes do lugar. Aproximou-se de novo. Antônio a  empurrou com força até ela cair de costas, imóvel.  O rapaz tentava abrir a tranca para escapar e ouviu o ruído atrás de si. Carolina empunhava uma pesada pá para golpeá-lo. Acertou a madeira da porta enquanto Antônio esbaforido corria em busca de socorro. Chegou até a cozinha da casa senhorial. Os empregados logo entenderam.

É  louca  a menina, comentaram. Já aconteceu antes. Tão linda. Não pode ver homem jovem que ataca. Já lá vamos para conte-la e dar lhe um calmante.


PORTA - Sergio Dalla Vecchia

 



PORTA

Sergio Dalla Vecchia

 

P ara

O lhar

R ude

T enho

A mor

 

Quando combinei letras da palavra porta, a inspiração surgiu do reconhecimento da professora Alcione.

No comando de uma escola noturna para alfabetização de adultos, ela jamais perdeu a paciência, por mais rudimentares fossem os olhares e atos daqueles alunos carentes do saber.

O amor prevalecia sempre.

Paciência, paciência ...

Com essa didática divina, ela conseguiu o milagre de extrair das entranhas desses maduros arrojados um largo sorriso, latente por toda uma vida.

Felississimos conquistaram nada mais nada menos que a chave da imensa porta da literatura.

A Cartomante | Análise Literária - Brasil Escola



Machado de Assis

A CARTOMANTE

HAMLET observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois.

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

- Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

- A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:

- Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

 

O Massa - Suzana da Cunha Lima

 



O Massa

Suzana da Cunha Lima

 

Massa era o apelido de um inglês grandão, mais de 1,90, corpulento, habilidoso e com grande senso de humor. Bem jovem ainda, havia lutado na Primeira Guerra Mundial e se destacado bastante. Vinha de família camponesa, mas já estava saturado daquela vidinha sem graça no campo, entre ovelhas e feno, respirando monotonia. Como gostara da experiência em campo de batalha, resolveu fazer carreira nas Forças Armadas e conhecer outros lugares e outras experiências.

Em 1939 a Europa viu-se mergulhada outra vez no turbilhão de uma guerra global e após a ocupação de grande parte da Europa pelas tropas alemãs, ficou claro que somente uma invasão em grandes proporções conseguiria devolver as terras europeias aos seus legítimos donos.  Nestas alturas, os alemães sabiam que ia haveria a invasão, mas não sabiam onde nem quando. Era um dos segredos mais bem guardados da época.  O comando aliado achou por bem espalhar inúmeras pistas falsas. Uma delas era fazer crer que a invasão seria dar pela Sicília. Treinariam um soldado carregando documentos secretos e aí é que entraria o Massa, que se apresentou como voluntário.  Era uma missão quase suicida, muito perigosa.   Fizeram um rápido treinamento. Entre os preparativos estava a colocação em seus dentes um chip com a localização da invasão: Sicília. E em outro dente, uma cápsula de veneno, caso não aguentasse a tortura.  Ele ia saltar de paraquedas na Itália e fazer chegar à resistência os novos planos de desembarque.  Mal chegou ao chão foi capturado.  Levado para o acampamento dos nazistas, foi torturado e recebeu tanto soco que acabou sem dentes.  E aí observaram dois dentes diferentes, ocos. Um continha veneno e outro a palavra Sicília. E com isso nas mãos, já iam matá-lo quando o médico chefe não permitiu.  

- Mandem avisar que há um novo plano de desembarque em curso e deve ser pela Sicília.  Só pode ser verdade, pelo tanto que ele aguentou e nem tomou o veneno. Olhe o tamanho do homem, gente. Deve ser coronel, pelo menos. Eu vou colocar dentes novos nele, cuidar dos ferimentos e depois extrair mais informações úteis para nossa guerra. 

Assim foi feito e o Massa reagiu bem, ficou quase bom.  Aí, quando deu uma chance ele tratou de fugir. Quase perto do acampamento dos aliados, foi capturado por uns seis jovens e assustados soldados.  Custou a se livrar deles e se identificar como inglês, ou seja aliado.  Assim mesmo foi levado ao acampamento e teve que se explicar ao comandante local.  Custaram a acreditar que sua dentadura não fosse natural e que sua história fosse real.   

Não ficou sabendo se o falso desembarque na Sicília ajudou no esforço de guerra, mas soube das tremendas dificuldades enfrentadas pelos aliados na praia Omaha.  Ainda quis ir para o palco dos combates, mas nunca se recuperou totalmente de seus ferimentos e foi levado de volta para a Inglaterra.  Até morrer contava a história da Sicília sempre acrescentando coisas novas, e morreu contente, convencido de que tinha contribuído muito para despistar o verdadeiro local para o desembarque dos aliados, na famosa operação Overlord.

A RESPONSABILIDADE DOMÉSTICA CABEÀ MULHER ? - Maria Amélia Favale

 




A RESPONSABILIDADE DOMÉSTICA CABEÀ MULHER ?

Maria Amélia Favale

 

É difícil saber qual é a melhor maneira de aproveitar o tempo, mesmo porque precisa haver tempo livre para ser aproveitado.

Admito que as pessoas criativas sempre encontram um jeito de saber o que é mais importante, e descartam o que consideram não é.

Uma viagem, um jantar com amigos, um final de semana no clube, um curso novo... Para qualquer atividade seria inevitável remanejar às necessidades da agenda doméstica.

Não me refiro às necessidades prementes do dia a dia. Estas tarefas são obrigatórias, têm que ser feitas, são necessárias.

Mas me refiro ao que está intrínseco na responsabilidade da dona de casa, tarefas das quais ela não consegue se desvencilhar, para as quais foi nomeada e não há substituição.  Por exemplo, a dona de casa é que deve fazer ou dar ordens para o preparo do almoço. O marido que chega faminto e depois de comer quer descansar um pouco antes de voltar ao trabalho, cabe à mulher auxiliá-lo. O dia ainda corre para outras tarefas que não competem à cozinha apenas, são compras, roupas, educação, e família...

E no caso da mulher que trabalha fora, então! A responsabilidade é dobrada, além da alimentação de ambos, há as necessidades rotineiras, que também são importantes e não podem ser desprezadas.

De qualquer maneira, a mulher, de uma maneira geral, está sempre preocupada com que é, desde sempre, considerado de sua responsabilidade.

Há, para algumas mulheres, uma maneira de viver em paz com esses encargos tão infinitos, é ter alguém que coopere, contratar uma secretária em casa que faça por ela os afazeres domésticos. E dessa maneira o tempo dela poderia ser aproveitado com outras tarefas das quais ela goste mais. Se assim for, podemos dizer que o marido passou a colaborar com as obrigações do lar. Afinal, a conta vai caber a ele.

 

A HISTÓRIA DENTRO DA HISTÓRIA - Suzana da Cunha Lima

 




A HISTÓRIA DENTRO DA HISTÓRIA

Suzana da Cunha Lima

 

Cenário  magnífico naquele belo dia de verão em Copacabana. Porém Elias só tinha olhos para a bela moça ruiva que o seduzia com o olhar e com seu balanceio indo para o mar. “Se esta ruivinha me quiser, pensava, caso com ela.” Divagava como todo rapaz novo diante de uma bela mulher. E embora seus pensamentos voassem em direção a ela, com todas suas saborosas implicações, sentia-se inquieto com a situação do país e principalmente com a do mundo, onde a Segunda Guerra já entrava no seu terceiro ano na Europa. Agora havia um ator novo e de peso naquele cenário: Os Estados Unidos haviam entrado em cena, furiosos pelo ataque dos japoneses a Pearl Harbour, em dezembro do ano anterior.

Ele pressentia que, cedo ou tarde o Brasil ia ser forçado a tomar uma posição neste conflito, e sair de sua confortável neutralidade, pois um país do continente americano havia sido atacado por uma nação extracontinental, o que obrigava o Brasil a cumprir os compromissos assinados na Carta do Atlântico, alinhando-se ao mesmo.

Já desde fevereiro daquele ano, muitas embarcações brasileiras estavam sendo torpedeadas por supostos submarinos alemães e italianos e o presidente Roosevelt iniciara sua política de boa vizinhança, que se resumia a promessas de incentivos econômicos, temperada com ameaças veladas.    Diante das pressões diplomáticas que o deixariam isolado no continente americano, o Brasil afinal, cedeu e declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista, em agosto de 1942, permitindo a instalação de bases aeronavais ao longo de sua costa norte-nordeste e ganhando o financiamento para construção da Cia Siderúrgica Nacional.

Esta era a situação naquele ano de 1942, onde tantos e importantes eventos ocorreram. Mas naquele momento, e naquela bela tarde, onde o sol se punha, tão linda e lentamente, os pensamentos de Elias se balançavam como um pêndulo, entre os cabelos chamejantes de Solange e a possibilidade real de ser chamado a combater. Era radiotelegrafista de profissão, e dos bons.

Optou para viver aquele momento da conquista e, apesar da timidez, resolveu abordar a moça, enquanto ainda era dono de seu destino.  Depois, quem sabe, perguntava a si mesmo, guerra era o imponderável, tanto se podia sair vivo como morto.  Portanto, não ia perder a menina sem antes tentar conquistá-la.

Não foi tão difícil como lhe parecera à primeira vista. Solange já estava interessada nele e juntos iniciaram um romance fora dos padrões da época. Ela morava com tios bem idosos e a família dele havia se dispersado no interior de Mato Grosso, para onde ele nunca mais voltou.

Foi um amor tórrido e inconsequente, sem os freios da família para mostrar as consequências deste procedimento, principalmente diante da ameaça real de uma guerra. Como era fácil de prever, Solange engravidou em poucos meses.  Ela lhe deu a notícia no dia mesmo em que ele foi convocado.  Olharam-se atônitos nessa hora e lastimaram aquela guerra distante que haveria de separá-los. Foi uma despedida difícil e dolorosa para ambos. Talvez apenas naquele instante eles tomaram consciência do tamanho do sentimento que os unia e quão pesada ia ser a separação.

Enquanto muitos convocados faziam seu treinamento no Brasil, Elias foi enviado imediatamente para a Inglaterra, para treinamento especial em criptografia.  Tornou-se um dos melhores nesta área e, portanto, muito valioso. Enquanto era promovido e muito prestigiado, era ao mesmo tempo um prisioneiro, pois não podia sair daquele feio prédio cinzento às margens do Tâmisa. Parece que seu trabalho era não apenas sigiloso, mas muito importante para o desfecho do conflito. E os ingleses não queriam se arriscar a que descobrissem onde ele estava.

Enquanto isso Solange teve sua criança, uma menina ruivinha como ela.  Seus tios morreram num acidente de ônibus, e ela ficou só, naquela casa grande sem calor e amor e, distante do homem que amava.

Elias enviava muitas cartas para ela, porém passavam por uma severa censura tanto na quantidade quanto no teor e ainda tinham a trabalheira de enviá-las com carimbo da Espanha ou Portugal, países neutros.  Da mesma maneira acontecia o que vinha do Brasil. Só após muitos crivos de segurança é que ele as recebia.

 Isso o deixava muito nervoso e estava a pique de fugir dali.  Mas sabia que o dinheiro que ganhava ia ser importante para criação de sua filha e possivelmente não chegaria com vida nem na primeira esquina. Seus conhecimentos eram valiosos demais para caírem em outras mãos.

No entanto, ele não desistia da ideia de voltar para o Brasil e usou de muitos estratagemas, nem todos razoáveis. Sabia que os combatentes feridos voltavam às pátrias de origem e imaginou um meio de entrar na linha de frente e se ferir de modo que o recambiassem para sua pátria. Que doce ilusão!  Foi falando com um e outro oficial mais graduado até que conseguiu autorização para ir para a França, ajudar a Resistência francesa na decodificação das mensagens nazistas, desesperadas diante da iminência da perda da França com severas perdas em todas as frentes. Quem sabe lá, conseguiria quebrar uma perna ou braço, algo que o invalidasse para a guerra? E assim viu-se saltando de paraquedas na Normandia, no dia D, seis de junho de 1944.

Não foi nem simples nem fácil, na verdade foi uma péssima decisão.  Na descida quebrou um braço e foi, aos trancos e barrancos, buscar socorro com alguma patrulha que por ali estivesse.  Procurou primeiro seu grupo, mas ele tinha sido disperso pelos ventos e não estava interessado num brasileiro que não sabia sequer empunhar um fuzil.  Foi engatinhando pelos matos, se escondendo como podia, gemendo de dor e de frio, lamentando a enorme tolice que fizera.

Nunca tinha visto uma guerra de perto e ficou horrorizado com tanto sangue, gritos, mutilações e pelo barulho infernal das bombas e canhões. 

Bateu o medo. O medo horrível de acabar morrendo em terra estrangeira, sem nem saber bem por que estava lutando.  Pior, morrer sem ver sua filhinha e conseguir voltar para sua pátria e seu amor.  

Os jornais noticiaram aquele desembarque como uma incursão ao inferno.  Milhares de homens se esgueirando pelas praias, as casamatas alemãs cuspindo fogo e morte, o céu pontilhado das luzes mortíferas das bombas.

Porém Solange, em sua casinha abrigada no Brasil, só tomou conhecimento do horror daquele dia, ao receber uma carta do Comando Militar, aquela temida carta que as mulheres dos combatentes se aterrorizavam só em pensar e que começava sempre com “Lamentamos...

Sua contribuição para o esforço de guerra, como se dizia, foi ter que criar sua filha e enfrentar a vida sozinha. 

 

A BALANÇA DA FELICIDADE - Suzana da Cunha Lima

 



A BALANÇA DA FELICIDADE

Suzana da Cunha Lima

 

Estava extremamente desgostosa consigo mesma. Segunda-feira é dia de se começar algo, pensou. Foi para a aula de Pilates a pé, descendo a ladeirinha animada, para queimar os excessos do final de semana.

Quando retornou, esbaforida do duplo esforço, deu o almoço para o filho e a cunhada que tinha ido visitá-la. Muita risada, comida boa e sobremesa feita em casa: cidra com coco.  Resistiu ao doce. Depois que eles se foram, resolveu arrumar o armário. Metade da roupa já não usava mais. Engordara alguns bons quilos nos últimos meses, tinha pouca coisa agora que lhe servisse.  Olhou desolada a montanha de roupas imprestáveis em cima da cama, terríveis juízes da derrocada de sua silhueta.

- Como deixei isso acontecer, pensou, ficando com raiva dela própria pelo relaxamento.

Nem quis subir na balança. Vou ficar com vontade de bater em mim mesma.  Mas, tinha que viver sua vida com aquela outra pessoa que se apossara de si, antes tão esbelta e faceira.

Não teve mais ânimo de remexer as gavetas.  Fica para o outro dia, pensou.  Subir a ladeira duas vezes já lhe tinha levado o fôlego e amor-próprio.

Será que não há nenhuma pílula milagrosa que derreta para sempre o pneu que arranjei em volta de minha linda cinturinha?   Sabia que não havia.  Pensou no procedimento da bolsa no estômago.  Já estava pensando seriamente nisso há algum tempo.  Vou comer pouco, quer queira ou não.  Aí o estômago diminui e a vontade de comer também.

Não houve médico que quisesse fazer a tal cirurgia.  Era muito nova e nem tantos quilos a mais possuía. É questão de força de vontade – diziam – coma mais vezes e pouco. E faça exercício, tome um pouco de sol.  Preencha seu tempo para não pensar em comer, e tudo ficará bem.

Mas não ficou.  Ao estacionar o carro, baqueou, ainda sentada. Um AVC!  Felizmente, o vizinho de vaga notou algo errado com ela, com a cabeça caída ao volante.

Foi um corre-corre!  Quem veio primeiro foi o filho que morava próximo, Providenciou a ambulância e só de lá informou aos irmãos e ao marido;

Quinze dias de coma, não sabiam se ela voltaria e, se voltasse, quais seriam as sequelas.  Mas ela voltou.  Abriu os olhos, e viu o marido ao lado da cama, cochilando. O relógio marcava três da tarde. O que tinha havido? Desconfiou que estivesse num hospital, mas o que fazia ali?

Mexeu mãos, braços e pernas. Será que me acidentei, pensou?  Tudo em ordem.  Estava com um braço no soro, nada mais.  Passou a mão no rosto, não tinha bandagens, não doía. 

Seja lá o que for, pensou – estou inteira, que bom! O marido acordou com o barulho dela se remexendo e deu um largo sorriso ao vê-la de olhos abertos, olhando para ele interrogativamente.

- Ah, meu bem, que bom que acordou!  Belo susto nos deu.  Como está se sentindo agora?

- Beleza, amor.  O que aconteceu? O que faço aqui?

- Você teve um AVC no carro, na garagem. Ainda bem que o vizinho de vaga notou algo errado e alertou a portaria que pediu uma ambulância. Foi isso. Mas agora você já acordou e parece muito bem.  Vou chamar o médico para lhe dar alta. Vamos para casa!

A enfermeira ajudou-a a se vestir enquanto o médico assinava a alta com um monte de recomendações.

Quando se olhou no espelho, assustou-se com a cara abatida, meio chupada.

- Meu Deus, o que é isso? Pareço uma velha.

- Que velha que nada – animou-a o marido.  - O que está é bem enxuta.  Veja que o vestido está solto, você emagreceu muito nestes quinze dias.

- Nossa, é mesmo! Quase gritou de contentamento. Valeu mesmo! Vamos para casa meu bem, quero ver quantos vestidos agora me servem.

Ele riu, contente e aliviado, observou ela colocar um batom e escovar a cabeleira. Parecia uma mocinha.

Ela não cabia de tanta felicidade.  O médico deu-lhe alta com um monte de recomendações e remédios, mas ela não se importou nem um pouco.

Chegaram em casa felizes. O marido tinha providenciado comida chinesa, que ela adorava e um bom vinho, para festejar sua volta.

Mas, inacreditavelmente, ela estava completamente sem apetite.

E assim os dias se seguiram, ela totalmente inapetente, e se sentindo cada vez mais fraca. Teve que ir algumas vezes tomar soro e, se submeteu a alimentação endovenosa.

Estava magrinha sim, até bonita, mas fraca e sem vontade de fazer nada.

E agora? O que será que vale mais na vida?

O que vai pesar mais na balança da felicidade?

CARANDIRU, ME AGUARDE! - Suzana da Cunha Lima

 


CARANDIRU, ME AGUARDE!

Suzana da Cunha Lima

 

Estava dando uma arrumação no meu escritório. Era tanto papel que creio haver ali celulose suficiente para formar uma floresta inteira. E o pior é que eu me distraia, lendo cartas antigas, velhos textos e papeizinhos com informações ou notícias totalmente obsoletas.

No meio daquilo tudo, uma carta muito engraçada que meu irmão, que mora em Pipa-RN, me enviou há tempos, quando eu estava numa fúria concurseira, à busca de emprego como se eu fosse arrimo de família.

Ele teve conhecimento que eu tinha passado num concurso para Agente Penitenciário para servir no Presídio de Carandiru.

“Mana, fiquei tão orgulhoso quando soube que minha irmã preferida ia trabalhar em Carandiru, prestando toda sua experiência em ouvir e aconselhar (habilidades suas totalmente desconhecidas pela família) aqueles excluídos de uma sociedade cruel e elitista, encarcerados por motivos fúteis. 

Já informei a todos os amigos de sua nobre missão e eles estão loucos para passar alguns bilhetinhos de consolo para nossos infelizes presos, muitos deles longe da família e de suas bases políticas, sem acesso aos meios de comunicação, direito inalienável de todo cidadão. É de conhecimento geral como é fraco o sinal de celular nestas prisões obsoletas e nossos guardas estão inflacionando as propinas para facilitarem o uso de seus equipamentos de longa distância.

Só estou curioso em saber o que você andou fazendo para convencer o brucutu de seu marido a expor sua linda mulherzinha aos olhares cobiçosos de nossos presidiários que podem ser tudo, mas não estão mortos nem capados.  Ainda não levou nenhuma cantada?

Minha mulher já me deu um aviso aqui que estou menosprezando sua grande vitória, o que é uma enorme injustiça: sabemos a imensa dificuldade em se passar nestes concursos: cinco vagas por candidato!  E todos ansiosos pela aposentadoria integral e o prestígio que esta profissão confere.

De modos que termino esta com o coração estourando de orgulho e desejando, de coração, que esta experiência única, caso permaneça viva e saudável (os primeiros reféns são os agentes penitenciários) pelo menos forneça subsídios para o próximo livro ou acabe com suas ilusões românticas sobre esta raça de predadores que de humanos não tem nada. E isso não se aprende em Faculdade.

Com muito amor, seu irmão.

Bom, nesta mesma ocasião eu havia passado num concurso para Diretora de Creche, que achei mais apropriado enfrentar.  Creio que nunca saberei o que é exercer minha profissão atrás dos muros de uma prisão, e  espero que jamais, lá dentro, como detenta.

A PERIGOSA MARTINA - Antonia Marchesin Gonçalves

 

A PERIGOSA MARTINA

Antonia Marchesin Gonçalves

 

 

                Conheci Martina numa festa de aniversário de minha amiga Francisca. Fran, minha amiga, havia feito muitos comentários favoráveis sobre Martina. Estava encantada com a desenvoltura, inteligência e solidariedade dela. Mas, a minha primeira impressão, não gostei. Gosto de gente que ao falar olha nos olhos, não era o caso, conversava atenta em todo ambiente, com olhar perspicaz fotografando os integrantes da festa e ao mesmo tempo demonstrando interesse nos convidados.

                Fran havia me contado que tinha emprestado certa quantia em dinheiro à Martina, que dizia que tinha a mãe dependente com problemas de saúde e que não havia ninguém para ajudá-la. Perguntei quanto ela ficou de devolver, disse-me que não tinham combinado nada a respeito. Fui embora, dois dias depois me liga Martina sem eu ter dado o meu telefone, disse aos prantos que sua mãe tinha tido uma crise e não tinha a quem recorrer e se lembrou de mim, tomando a liberdade de me ligar, seria um empréstimo emergencial para levar a mãe em um especialista.

                Pensei comigo, rápida no gatilho. Respondi que me encontrava em dificuldades financeiras e não tinha como ajudá-la. Ela como boa de conversa, com todas as técnicas de convencimento. Chorou e fez um belo drama de comover até os mais céticos, não sei como consegui me manter irredutível. Percebendo ela que não tinha como me convencer, mudou de tática com conversas amenas, tentando demonstrar interesse pelos meus problemas. Ao desligar o telefone senti na hora o perigo que era ela. Liguei para Fran para contar o episódio dando-lhe uma chamada por ter dado o meu telefone. Tentei alertá-la que tomasse cuidado sentia que tinha algo errado com Martina.

                Fiquei sem notícias por quinze dias até que Fran me ligou nervosa falava sem parar. Contou que Martina ia todos os dias na casa dela para tomar café da manhã, com total cara de ressaca e sempre chorosa, dizia que havia passado a noite acordada por causa da mãe, indo lá tinha um alento para respirar e dia sim e não, pedia mais algum. Minha amiga não sabia como se livrar dessa situação totalmente constrangedora. Ao perguntar se ela sabia onde morava disse-me que não tinha a menor ideia. No dia seguinte hora do café da manhã com desculpa que estava por perto e tentar tirar algumas informações.

                Ela me vendo demonstrou surpresa, na hora e rapidamente fez a encenação com o rosto de cansaço e chorosa, eu fingindo interesse, comecei a perguntar onde morava, com quem ficava a mãe de dia quando trabalhava, intercalando as perguntas no meio de nossa conversa. Percebi o desconforto em responder, mas consegui saber o seu sobrenome e o bairro. Pesquisei na internet e descobri a rua em que morava.

                Chegando lá, me surpreendeu o local, uma rua só de casas classe média, tranquila, como rua do interior, vizinhos conversando no portão, outros regando o jardim. Estacionei meu carro e abordei o grupo de senhoras conversando no portão, disse que procurava casa para alugar e no meio da conversa citei que havia conhecido Martina que elogiara muito o bairro. Foi só falar o nome dela e a reação das senhoras foi de indignação e uma delas mais revoltada falou-me que não confiasse de jeito nenhum nela, pois havia tirado dinheiro de todos que conhecia na região até poupança das aposentadas. Sendo viciada em jogo de carteado clandestino passando a noite jogando, perdendo tudo que os pais haviam construído.

                Os pais morreram de desgosto, os vizinhos eram os que davam conforto e ajuda. Voltando para casa não me conformava como alguém tão bonita deixou-se envolver no vício a ponto de enganar a todos, vivendo uma vida dupla, o quão difícil deveria ser. Liguei para Fran e contei tudo ficando chocada, aconselhei minha amiga a sair um tempo de SP sem avisar Martina que lógico iria encontrar novas vítimas.

 

TOUROS NA REPÚBLICA - Sergio Dalla Vecchia

 


TOUROS NA REPÚBLICA

Sergio Dalla Vecchia

 

Rufam os tambores, clarinetes sopram agudos, a plateia ansiosa emana burburinhos aguardando a abertura do portão, eis que de repente é aberto e das sombras surge o touro! Desvairado, chifres em riste, adentra na Grande Arena de Touros da Praça da República, Centro de São Paulo. Era uma tarde de Domingo, 10 da janeiro de 1902.

Gritando olé à cada passada de capa do toureiro, lá estava Julinho eufórico em meio a plateia.

Esse prenome foi registrado por seu pai, em homenagem ao famoso escritor da época, Júlio Verne. O diminutivo ficou por conta do carinho.

O pai era devorador contumaz dos livros de ficção daquele autor. A pequena estante de livros, no sobrado onde pai e filho residiam, suportava heroicamente o peso de tantas arrojadas aventuras.

Volta ao Mundo em 80 dias, Viagem ao Centro da Terra e Vinte Mil Léguas Submarinas eram os destaques entre tantos outros.

O gosto pelas touradas, Julinho não sabia muito bem o porquê, talvez por ser única atração às tardes de domingo, ou pela expectativa inversa do touro ferir o toureiro. Questionava sobre a carnificina apresentada, que por vezes muito o incomodava.

Mesmo assim pela índole humana do digladiar, ele garantia que esse espetáculo em algumas partes do mundo avançaria para outro século.

Julinho, com entusiasmo do pai e pelos livros a disposição, acabou por lê-los, quase todos.

Sabia que Júlio Verne tinha 74 anos nessa tarde de touros, pois nasceu no ano de 1828 na França.

Quando leu Vinte Mil Léguas Submarinas, entrou como tripulante no submarino Náutilus, sob comando do engenheiro construtor capitão Nemo, para navegarem milhares de léguas submersos nos oceanos, sem qualquer interação com o mundo da superfície. Autossustentáveis, viviam com o que o mar fornecia. Alimentação, matéria prima para produção de eletricidade para a locomoção do bólido e até tecido para confecção de escafandros .Assim navegavam e por casualidade receberam à bordo o professor  Aronnax e saíram à caça do maior narval do mundo, que havia destroçado dezenas de navios.

Já com A Viagem ao Centro da Terra, juntou-se ao prof. Lindenbrock, o sobrinho Axel e navegaram em uma jangada improvisada por mares desconhecidos em um mundo paralelo subterrâneo, onde havia vida, fauna e flora exuberantes. Iniciaram a aventura penetrando no vulcão glacial Sneffels na Islândia até chegarem, após muitos sobressaltos, no vulcão Strompoli na Sicília, onde foram cuspidos, por uma explosão, de volta à superfície, após terem percorrido mais de cinco mil quilômetros nesse mundo, até então desconhecido.

Mas na leitura da Volta ao Mundo em 80 dias foi a que mais se divertiu.

Acompanhou paripassu a façanha do sr. Fogg na aposta de vinte mil libras que fechou com seus colegas de clube em Londres. Incrédulos na façanha de contornar o  mundo em apenas oitenta dias, com data e hora marcadas para o retorno.

Iniciaram a aposta embarcando em um trem para o sul da Europa, de lá, um vapor para Suez na África. De Suez para Bombaim, oeste da Índia. De Bombaim outra estrada de ferro para Calcutá na costa leste indiana. Nesse trecho, apavoraram-se com um grande imprevisto. A ferrovia estava inacabada!. Com muita astúcia e improvisação conseguiram viajar pela Selva e chegar enfim a Calcutá. Por mar, de lá partiram para Hong Kong. Em Hong Kong navegaram em outro navio para Yokohama no Japão, e de lá, outro transatlântico com destino São Francisco, Estados Unidos.

Em San Francisco subiram no  trem da  ferrovia transcontinental que cortava os EUA de oeste a leste e chegam inteiros em Nova Iorque. Daí, rumo Inglaterra!

Após inúmeras peripécias nos hilários oitenta dias pelo mundo afora, desde índios, elefantes, mandado de prisão, casamento, ritual indígena e tantas outras, conseguiram chegar sãos e salvos à Londres.

Finalmente, respeitando a pontualidade britânica, Fogg, garboso, foi receber suas  merecidas 20 mil libras no salão nobre do clube, conforme havia prometido, diante dos boquiabertos colegas incrédulos.

Assim era Julinho, vivia intensamente como parceiro dos personagens, com bravura e otimismo, acreditava na ficção como se real a fosse.

O conteúdo dos livros fazia seu mundo virtual, tornando-o vidente perante seus amigos, onde dominava a conversa contando histórias mirabolantes e previsões para o mundo.

Previa ele que no futuro haveria submarinos com grande autonomia navegando pelos mares com combustível produzido do núcleo de certos átomos. E o primeiro seria fabricado na América e seria batizado de USS NÁUTILUS!

Dizia também que os cientistas penetrariam na cratera de vulcões com roupas e equipamentos especiais e descobririam segredos da formação da terra.

Haveria aeronaves com velocidade até seis vezes a do som. Se poderia chegar em qualquer parte do mundo em apenas uma hora. Essa nave seria construída na China com nome de Starry Sky 2.

Teve até a insensatez de prever que um vírus iria paralisar o mundo e matar milhares de pessoas, mesmo com todos os avanços tecnológicos, mudando conceitos, a medicina, economia, religião e até a esquecida fraternidade.

Ele realmente vivia em um mundo paralelo!