Amigo Vicente - Oswaldo Romano





AMIGO VICENTE
Oswaldo Romano

         Foram muitas as trilhas que fizemos juntos. Mas jamais me esqueci daquela vez em que você  empurrando-me, escorreguei nas pedras da cachoeira, raspei todo traseiro e ofendeu também o meu dianteiro. Meu calção rasgou, ficou estraçalhado. Subi pelas pedras tentando esconder as coisas, mais preocupado com meu traseiro de fora. Você lá em cima nas pedras morria de rir. Fui visto por todos que estavam banhando-se, e não posso esquecer as sarcásticas risadas. Apontavam o dedo e gritavam: Olha, olha!

          Essas palavras bombam até hoje em meus ouvidos. Não era ocasião para briga porque éramos sós, eu e você. No momento tudo que fiz foi xingá-lo.  

         Aquilo ficou entalado na garganta, só pude expedi-lo quando lhe aprontei esta que conto com ajuda do meu amigo cacique Tuiuta. Com este meu depoimento em público, espero por fim as nossas vinganças. 

Foi assim:

         — Passando por Paraty, encontrei o índio Tuiuta  que tem sua aldeia perto do Vale Louco, justo no percurso da nossa programada caminhada, que seria no dia seguinte. Tuiuta trabalhou meses para mim na nova casa que fiz em Paraty. É um artista trançando tiras e fazendo misérias com  bambu. Fez esteiras de fechamento dos balcões e cobertura de sapé. Paguei bem, ficou um amigo de verdade. Foi uma felicidade encontrá-lo. Caiu como uma luva. Estava ai minha oportunidade. Dei voltas para oferecer uma festa na sua aldeia. Já havia dado outra. Sabia que com festa para seu povo, ele vibrava, era tudo que gostava. Não seria tão fácil. Em troca, impus algo fácil para seu grupo. As condições eram as seguintes: No transcorrer das festividades, você vai treinar seu pessoal e ninguém poderá falar nada em  português, só na sua língua, o Guarany.

         — Isso já é nossa lei, quando festa, né.

         — Você deve arranjar uns homens que serão seus algozes.

         — Que é isso?

         — São homens que se fazem de maus, ou com cara de bravos.    — Você vai sequestrar um amigo meu...

         — No, não, não, Tuiuta não faz isso. Tuiuta conhece cadeia, não?

         — Espera eu falar Tuiuta. É uma importante desforra, uma brincadeira que quero fazer com meu amigo. Tudo mentira, uma festa...

         — Ele sabe que é mentira?

         — Não.

         — Tuiuta tá fora, né.

         — No fim ele vai saber, índio medroso.

         — Bom, bom, e depois.

         — Vai ser assim: Eu e ele devemos passar pela sua trilha em direção a cachoeira. Lá vamos encontrar mais dois amigos. Na ora da partida eu não vou. Alego uma forte dor na perna, fico sentado, gemendo, ou coisa assim. Ele vai passar sozinho naquela estreita trilha do mato que corta o caminho. Tuiuta vai sequestrá-lo, e levá-lo para a aldeia.

         — Pora!!!

         — Agora vem o melhor Tuiuta. Você sabe brincar. Você vai acusá-lo de ter sido quem roubou uma jovem índia desaparecida.

         — Pora!!!

Foi assim que preparei meu amigo pro resto da brincadeira, oferecendo uma grande festa. Eu sou, diria, padrinho, de uma sua filha, a Jacira, batizada  nas aguas da cachoeira. Tuiuta acredita em mim. Já aprontamos uma com o delegado, imagina!!! Com o amigo vai ser mais fácil.
Chegou o dia.

         — Tuiuta aborda meu amigo e aos gritos o leva com as mãos amarradas.

         — Se correr, diz, índio atacar você com o tacape.

*
         — Agora eu vou contar a história que fizemos acontecer, do jeito que Tuiuta entendeu, obedecendo minhas instruções:

— Chegando do sequestro,  colocou Vicente sentado num toco. Aguarda escurecer. Enquanto isso seus homens começam a preparar uma fogueira, na verdade era parte da festa com comes e bebes que ofereci. Os companheiros do Tuiuta mostram cara feia, raiva. Ele apela para os índios que dele tomavam conta. Diz-se inocente. Os índios só deviam falar:

Tuiuta, chefe. Tuiuta, chefe pendurar você.

Um índio sai do mato quase nu, como os demais, cheios de penas, um cocar de chifres, carrega mais lenha. Acende a fogueira. O Vicente, meu amigo, começou suar frio e tremer. Saem da OCA, índios, índias, descalços, seminus, elas sobre nos peitos grossos colares com aplicação de dentes de javalis e sinos. Batiam um pau no chão, numa estrondosa gritaria e põem-se a dançar em volta da fogueira. Numa palavra de ordem, levantavam as mãos pro céu, e no bafo gritavam  pra o rei Tupã.  Noite, o prisioneiro estava realmente assustado e apela: Quero o chefe, cadê o chefe.

—  Chefe Tuiuta vem logo. Onde está índia roubada? Se tem que falar. Chefe Tuiuta pendurar você.

Eu estava dentro da tenda, paramentado, pintavam-me com Urucum, já com enorme cocar na cabeça, saía de penas, cavanhaque de pelo de cavalo. Recebi o sinal combinado. Sai batendo o tacape no chão e uivando como faziam os índios. Dava voltas na fogueira, momento em que conforme acertado, jogaram uma porção de pólvora no fogo. Gente, até eu assustei! Subiu  enormes línguas de fogo e uma nuvem de fumaça escondia quase todos. Aproveitei o fumacê parando em frente do Vicente, nem eu me conhecia daquele jeito, estico a mão em direção dos seus cabelos, quase tapando seus olhos e um cara pintado que me acompanhou, diz com voz de porco gordo:

—  Tuiuta vai vestir você para nossa festa. Tuiuta pinta você.

 Eu do lado só rezingava. Ele continuava. Eu rezingava, rezingava.  

— Você virar no espeto - dizia.

Saí de lado sem que me visse, na surdina, entrei na Oca. Deixei-o sofrendo lá com o cara pintada.

         Meu amigo Vicente, adoidado não acreditava no que acontecia. Olha em volta, procura atordoado. Só vê um cachorro deitado, um leitão amarrado que seria a alegria da festa, e os índios bebendo na cuia e dando pulinhos em volta do fogo. Gritam palavras de ordem. A festança já estava animada. Um índio punha-se ao seu lado como guarda, na mão um porrete. Tinham medo que saísse correndo pela mata onde com certeza daria tudo errado. Poderia até ser comido pelos borrachudos ou uma Jaguatirica. Índios passavam por ele, faziam careta, lambiam aos beiços.

         — Nessa altura percebi que a brincadeira ultrapassava os limites. Chamei oTuiuta: Tuiuta, vamos parar por aqui que até eu estou ficando com medo. Seu povo já bebeu e de repente...

         — Tribo gosta, não. Eles sabem que desta vez é mentira.

         — Logo vai amanhecer. Soltem o homem. Mas antes me leve de volta.

         Quando cheguei, deu tempo de um banho e uma soneca. Sei lá... Cheguei meio fedido!

Chega o Vicente com uma cara de leão traído, nada boa.

Fazendo-me surpreso, abrindo a boca, perguntei:

         — Achou os amigos, Vicente?

Só tirou as botas, caiu na cama e mal ouvi:

         — Será que preciso te contar? Espere até amanhã.

         — Eu que também carregava muito sono, desmaiei.

ACORDEI NUM SUSTO QUANDO RECEBIA UM BALDE D’ÁGUA PELA CARA.

CUIDADO, ÍNDIO NÃO ACEITA MENTIRA!

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