A queda - Ises de Almeida Abrahamsohn

 





A queda
Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Um baque surdo foi o que despertou o sonolento porteiro. Devem ser os lixeiros ou algum gato, pensou Josenildo, sem tirar os olhos da entediante partida Bragantino vs. Mogi-Mirim. A pequena TV, mais uma térmica de café, eram as companheiras que o ajudavam a atravessar a noite naquela portaria, em geral, sem incidentes.

Alguns minutos depois, seu colega, Edson, mais antigo no serviço e já entrado nos anos, subiu da ronda que fazia pela garagem.
Ouvi um ruído estranho no outro lado do jardim, Josenildo. Vou olhar...

Deve ser aquele gato cinza que anda rondando. Mas se quiser, vou ver...

O rapaz saiu para o jardim. Silêncio de meio de madrugada, sem ônibus ou carros passando. Olhou ao redor, tudo escuro, o ar parado, imóvel para além do círculo de luz da entrada do prédio. Os olhos se acostumando à escuridão. Deu alguns passos e ouviu. Um leve gemido quase imperceptível.

Josenildo correu para a lateral do prédio. No cimento, o corpo de uma criança aparentando uns cinco ou seis anos. Gritou para o colega acudir e trazer a lanterna. Aproximou o ouvido para tentar escutar a respiração da menina. Nada. Aquele gemido devia ter sido o último. Lembrou do treinamento de primeiros socorros. Ajeitou a posição da cabeça e ajoelhado começou: 6 apertos no peito para cada sopro na pequena boca. Será que estou fazendo certo?

Edson chegou com a lanterna, o celular e discou o SAMU e o 190. Lembrou do Dr. Anísio do 32 e já ligou para o médico. De onde teria caído?

Josenildo continuava a tentativa de reanimação. Não havia sangue. Não sabia se havia fratura na cabeça ou pescoço. Após cinco minutos, chegou o médico de pijama e roupão, munido de estetoscópio.
Examinou a menina que jazia ali imóvel, as pernas estranhamente viradas em direções opostas.


Pode parar, Josenildo. Não vai adiantar. Fraturou o pescoço, o coração não bate e não mais respira...Vamos esperar a polícia chegar.

Eram vinte e quatro apartamentos no prédio, metade voltada para a lateral onde jazia o corpo da garotinha. De qual janela caíra ou tinha sido empurrada? Não havia terraços daquele lado.

Os porteiros deixaram o médico ao lado do corpo e da portaria ligaram para o síndico. Seu Carlos atendeu com aquela voz pastosa, sem entender a princípio o ocorrido.  De repente, acordou...

O que já fizeram? SAMU, polícia, já chamaram? Preciso verificar na lista dos moradores em quais apartamentos há crianças dessa idade. Em três apartamentos daquele lado do edifício havia crianças. Seu Carlos resolveu ligar para cada um e perguntar.

Que horrível, pensou. Ser acordado por um telefonema assim, perguntando sobre o filho ou filha, e ele teria que justificar. Resolveu dizer que tinha havido um acidente, sem entrar em detalhes. Pediria para falar com o homem da casa... Melhor, pensou. Já imaginou a reação de uma mãe? 

O síndico teve bastante sorte. Nos três apartamentos que ligou, as respectivas crianças estavam bem e dormindo. Quem seria?


Na última ligação, quem o atendeu foi o morador do oitavo andar, Inácio, que estava bem acordado ao receber a ligação. Era um desenhista que costumava trabalhar de madrugada, segundo explicou, para poder se concentrar. Carlos o conhecia, era simpático, a esposa era médica e tinham uma filha de três anos que o pai levava à tarde para a escolinha. Inácio se lembrou que naquela noite mesmo, lá pela uma da madrugada, ouviu vozes exaltadas do casal do andar de cima e algum choro de criança. Até pensou que, se continuasse, iria ligar para a portaria. O casal tinha se mudado há um ano para o prédio e aparentemente não tinham filhos. Mas Inácio já os tinha encontrado algumas vezes no elevador. Tinham entre vinte cinco e trinta anos e, uma vez, estavam com uma garotinha de uns cinco anos, talvez uma sobrinha.

Carlos ficou calado, não deixando transparecer que tipo de acidente havia ocorrido, apesar das perguntas do morador. Desculpou-se e desligou o telefone. Olhou sua lista de moradores. Sim, lá estava o casal que morava no nono andar daquele lado. Sabia bem quem eram. Daniel Moreira e Tereza Alberis Castanho. A moça não tinha o mesmo sobrenome do marido. Deviam morar juntos ou ela podia ser a esposa de um segundo casamento. Era bonita, alta, elegantemente vestida e parecia bem decidida. O marido, já um pouco grisalho, talvez uns trinta anos, aparentava tranquilidade e sempre estava com roupa de esportista, tênis e moletom. Os dois saíam de manhã e só voltavam à noite.

Carlos voltou ao andar térreo, onde os dois porteiros bem nervosos o esperavam com o Dr. Anísio, que já dera seu depoimento à polícia e queria voltar ao seu próprio apartamento. O dia começava a clarear. O corpo da menina continuava ali, agora delimitado por uma faixa clara. Quatro luminárias de campo iluminavam a área. Carlos contou ao investigador o que conseguira apurar sobre crianças moradoras do prédio e a conversa com o morador Inácio do oitavo andar. O legista e a perícia ainda não haviam chegado.

Josenildo e Edson foram dispensados para voltar aos seus postos na portaria.

Os policiais resolveram aguardar, raciocinando que alguém iria notar o desparecimento da criança. 


De fato, perto das 6 horas da manhã, tocou o telefone na portaria. Um homem soluçando contou que acordaram e viram que a filha não estava mais no quarto. Viram que na sala havia um rasgão na tela de segurança da janela e ele achava que a menina tinha se debruçado e caído da janela do apartamento. Era sua filha Laís, do casamento anterior, que tinha vindo passar o final de semana com o pai.

A investigação pela polícia verificou que de fato havia um rasgão na tela protetora na janela que permitiria a passagem de uma criança do tamanho de Laís. E havia fiapos da roupa vermelha que ela vestia. O pai relatou que havia um pequeno rasgo na tela de arame e que ele pretendia chamar alguém para consertar, mas não era grande. E que a menina era muito levada. Queria sempre olhar pela janela. Porém, o caso foi esclarecido quando foi achada uma tesoura bastante forte para cortar uma tela em meio aos utensílios da cozinha. As evidências de que se tratava de crime vieram quando a perícia encontrou pequeníssimos fiapos de tela metálica na tesoura. O casal confessou finalmente o assassinato, com a mulher alegando insanidade passageira.

 


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