A raposa do “Pequeno Príncipe”
Ises
de Almeida Abrahamsohn
Alzira virou-se para
Emília, sua irmã, e comentou quando assistiam ao programa no domingo à noite.
Esse é mesmo uma raposa velha. Político daqueles que roubam e enganam a todos.
E o pior é que é reeleito ano após ano.
As duas irmãs
septuagenárias conviviam no mesmo apartamento desde a viuvez de Emília, três
anos mais nova. Alzira nunca se casara embora tivera alguns companheiros ao
longo da vida. Duas irmãs muito diferentes no temperamento e na maneira de
encarar a vida. Emília era enfermeira de profissão, serena, de fala pausada,
contente com sua vida atual, sem sobressaltos ou outras ambições a realizar.
Tinha apenas duas amigas com as quais ia a concertos e ao cinema. Eram amigas
de longa data, que se mantiveram desde a época do hospital. Conversavam sobre
livros, filmes e pessoas e acontecimentos comuns. Vez por outra combinavam um
almoço ou jantar em algum restaurante especial. Emília sabia que podia contar
com as duas. Para o que der e vier... comentavam entre si, e de fato o apoio
era recíproco, não importa a situação.
Alzira, em contraste,
estava sempre com a agenda cheia. Tinha trabalhado como jornalista por quarenta
anos. Era muito falante e agitada, tinha um grande número de conhecidos. Todos
os dias da semana eram ocupados. Grupo de teatro, grupo de discussão política,
grupo de ginástica, grupo de dança, grupo do clube de carteado, grupo de culinária
étnica, grupo dos enólogos e assim por diante. Raramente estava em casa. Apenas
no domingo, quando cansada, aproveitava para dormir até o meio dia. Depois
almoço com a irmã, a leitura do jornal à procura das novidades culturais e
algum filme ou programa na TV. Para recomeçar o carrossel de atividades na
segunda.
─
Você é muito parada, Emília, dizia Alzira enquanto digitava alguma mensagem no
celular. Venha conhecer os meus amigos do clube. Só lá tenho dez ou mais
pessoas superinteressantes. Você vai conhecer gente nova e, cá pra[PA1]
nós, as suas amigas Tereza e Dora do tempo do hospital são absolutamente
insípidas. Você precisa de agente animada e estimulante.
Emília sorria... ─
Alzira, eu não preciso de dezenas de conhecidos falando o tempo todo, sobre
assuntos que não me interessam especialmente. Você sempre foi agitada,
hiperativa. É bom ter muitos interesses, porém é necessário cultivar aquilo que
de fato agrada e sobretudo cultivar amizades. Você certamente leu algum dia O
pequeno príncipe de St. Exupéry. Lembra? Todas as misses nos concursos citavam
o livro. Devia fazer parte das respostas treinadas antes nos bastidores à
fatídica pergunta: Se havia algum livro preferido da concorrente.
Vou lembrar a raposa,
personagem que dialoga com o menino. Essa raposa, símbolo de astúcia, mas
também de inteligência, fala sobre a necessidade cativar as pessoas, se você
quer ter amigos verdadeiros e não apenas conhecidos. Cativar é dar atenção
especial. É o primeiro passo para conhecer verdadeiramente alguém. Vai
acontecer que muitas vezes não haverá reciprocidade. Mas quando houver, poderá
ser o início de uma verdadeira amizade. Como a que eu tenho com a Tereza e a
Dora. E aí você terá amigos de verdade, serão poucos, e para mantê-los você continuará
a alimentar a amizade. Ou como diz a raposa: precisará cativá-los. Experimente
tentar cativar algum de seus conhecidos.
Aconteceu que Alzira ao
sair de uma das atividades não viu o buraco na calçada mal iluminada. Tropeçou
e caiu, sem conseguir se levantar. Levada ao hospital soube que tinha fraturado
o osso da perna direita. Terrível notícia. Um mês com gesso, sem apoiar o pé e mais
algumas semanas de fisioterapia para voltar a andar. Revoltante, pensou
Alzira. As minhas amigas do clube? Vou
ter que ficar em casa vendo as séries do Netflix, mas chega uma hora que
satura. Preciso conversar com o pessoal, saber das últimas...
Em casa, Alzira
derreada numa poltrona e com a perna engessada apoiada no puff, tinha o celular
como último recurso de atividade social. Ligava para uma, depois para outra,
para as Marias do carteado, para a Sônia da dança, para o Edú e o Mário do
grupo dos enólogos, para o Joaquim da política.
─ Oi, fulana (o) soube do meu acidente? Pois é,
estou imobilizada em casa. Venha me visitar. Tomar um cafezinho... e um bolo
feito pela minha irmã...
─ Ah... Essa
semana você não pode? Venha na segunda próxima...
─Que pena, também não dá?
─ Vamos diga qual o dia par a gente marcar... Eu
aviso a Emília.
─ Sim, eu sei que você é muito ocupada (o), arruma um tempinho aí...
─ Tá certo, a gente se telefona na semana para
combinar. Abraço, querida (o)...
Após umas dez ligações, cujo teor não variou muito do acima descrito,
Alzira suspirou. Que gente tão ocupada e agitada. Não tem nem uma horinha para
visitar uma acidentada, para um papinho com uma amiga sozinha aqui ...
Cansada, Alzira voltou a atenção ao jornal que estava lendo. Mas as
letras começaram a embaralhar, as pálpebras ficaram pesadas e ela adormeceu.
O celular tocou e Alzira atendeu.
─ Quem é? Perguntou, ao ouvir uma voz meio rouca que
desconhecia.
─ Sou a raposa, a amiga da Emília.
─ Raposas não usam telefone,
retrucou Alzira. Isso deve ser um trote.
─ Não, não desligue, sou a raposa do Pequeno Príncipe, aquela que fala dos verdadeiros amigos e da necessidade de
cativá-los...
─ Venha me visitar, dona raposa ou seu raposo não
sei se você é macho ou fêmea, eu estou com a perna quebrada e nenhum dos meus
conhecidos tem tempo para mim.
─ Você tem que ter amigos, Alzira e não apenas conhecidos.
Nesse momento, Emília entrou trazendo um copo de chá gelado e acordou
Alzira do seu cochilo.
─ Alzira acorde, seu celular está tocando insistentemente.
Deve ser a raposa, pensou Alzira, mas era a Joyce do grupo de leitura. A
Joyce era aquela colega um tanto tímida, ruiva e sardenta, de fala pausada,
muito tranquila. Alzira tinha conversado um pouco com ela, até a achou
interessante, mas ela era ofuscada pelos mais falantes do grupo.
─ Soube que teve um acidente e está imobilizada em casa, falou Joyce. Eu já tive uma fratura de perna e sei
como é chato ficar assim presa a uma poltrona. Gostaria de lhe fazer uma
visita.
Alzira ficou sensibilizada. Agradeceu muito e marcaram a visita para o
dia seguinte. Joyce veio e ao longo da conversa descobriram muitos pontos em
comum. Alzira conteve sua habitual loquacidade. Despediram-se com a promessa de
Joyce de voltar em dois dias.
À noite, em sonho Alzira voltou a encontrar uma raposa.
─ Você pediu e eu fui visitá-la hoje, Alzira,
falou a raposa ruiva. Agora cabe a você me cativar.
Mais tarde, Alzira
deixou uma mensagem de WhatsApp para Joyce agradecendo a visita. E pediu para
Emília fazer o bolo de laranja que Joyce disse ser o seu preferido. As visitas
de Joyce se repetiram e Alzira e Joyce desenvolveram uma verdadeira amizade
alimentada por cuidados e atenções recíprocas.
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