A BUSCA - CONTO COLETIVO REALIZANDO DURANTE A PANDEMIA




Marinha muda posição e abre caminho para criação de Parque ...

A BUSCA
(EscreViver - Conto coletivo durante a quarentena - 2020)



O sol já preguiçoso debruçava no horizonte para dar lugar à noite, quando o barco zarpou do Porto de São Sebastião no Litoral Norte de São Paulo. Silencioso, sem tripulação adequada, Monteiro seguiu para seu objetivo. As ondas buliçosas estiveram fortes e inconstantes elevando a embarcação, quase a pino. Mas, agora não mais, já pareciam calmas, dançando misteriosamente. A água, de azul cintilante escureceu alternando-se para um tom mais duro. Vinte minutos depois, a quietude do Atlântico já era capaz de amedrontar. Mas, não Monteiro, que determinado navegava solitário, em direção ao Arquipélago Alcatrazes. “Sem deixar rastros”, dizia para si mesmo. Metódico, tinha na cabeça um plano “Vou até o final, custe o que custar”.  O acontecido há uns de trinta anos ainda remexia sua vida.

Monteiro estava mesmo decidido a não deixar as coisas em aberto. "Escondi no mais fundo de minha mente tudo que aconteceu naquela viagem. Nunca contei nada a ninguém. Só espero conseguir encontrar o local certo".  Monteiro consultou o GPS e em seguida o relógio. Tinha ouvido pelo rádio o aviso de mudança de tempo e possível tempestade. Mas, ele não se alarmava com isso, chegaria a tempo de atracar e pernoitar na ilha da Sapata. Quanto mais próximo chegava de seu destino, mais atormentado ficava.

Já de longe viu os contornos da ilha, quase encobertos pelas nuvens negras da tempestade anunciada. Tinha sido assim daquela vez – pensou Monteiro, cada vez mais ansioso de encontrar o caminho certo que o levaria para aquele porto escondido e para o rústico píer que ele mesmo construíra, tanto tempo atrás. E de lá encetar sua caminhada para um destino ainda incerto, mas que mudaria para sempre sua vida.

Mesmo solitário não chamava a atenção. Hoje em dia, mergulhar nos Alcatrazes era frequente e muitos solitários gostavam de fazer isso. Conduzindo o barco, agora devagar, procurando o píer, pensou naquela vez, trinta anos atrás, não estava sozinho na ocasião. Éramos quatro, dois já falecidos, pensou. Vivos, restavam ele e o André. Cada um tinha um mapa, feito na ocasião, nunca mais ouviu falar do André, sabia-o vivo, mas ignorava o que ele fazia. Oba, lá estava o píer, atracou com facilidade, tinha sido construído com certo cuidado, estava razoavelmente sólido passado tanto tempo.

Como imaginou, a ilha estava deserta. O sibilante revoar dos pássaros repercutia como uma orquestra, o que fazia Monteiro sentir-se arrepiado. Era preciso exorcizar o passado. Só assim conseguiria exercer o seu direito de cidadão. Havia lutado muito contra a ideia de voltar àquele local. Agora estava ali, inerte. As pernas pareciam grudadas ao fundo da embarcação. Tantas lembranças lhe vinham à mente. Tudo havia acontecido tão de repente. Não tinha sido culpado. Simplesmente, estava no lugar errado na hora errada.

Monteiro ziguezagueava no barco enquanto salvava no GPS do relógio, sua posição. Consultou as horas. A marola jogava, insistentemente, a embarcação contra o pilar do píer provocando um estalido metálico. Apanhou a lanterna, a mochila, desembarcou aos tropeços, e ganhou a trilha. Tinha a cabeça desnorteada pelo que encontraria depois de tantos anos. Rumava para o topo das rochas mais altas da Sapata. A vegetação parecia outra, cipós se embrenhavam nas botas. Precisava respirar, faria uma parada curta. As rochas vistas daquela posição da trilha, pareciam intactas. Apontou a lanterna para o mapa e confirmou estar correta sua direção. O vento ficara mais frio e mais forte àquele ponto. Ofegante ainda, olhou para trás, o quase breu já se instalara no arquipélago, e o horizonte parecia sombrio, quebrado apenas por alguns pios vindos de diferentes ninhos. Estranhou não ouvir mais as batidas do barco no píer. Ficou estupefato ao perceber lá do alto que o barco não estava mais lá. Firmou os olhos. Quer dizer que não estou sozinho! Sorriu irônico. Não haveria mesmo possibilidade de seguir viagem à noite, ele conhecia bem o mar naquele ponto, dali a uma hora, a maré gingaria tão forte que encobriria o píer. Pela manhã seguiria em segurança em uma das embarcações turísticas, planejou.

Continuou a subida, agora mais rápido, com passadas descontroladas desviando dos obstáculos que tão bem se lembrava. André, só pode ser ele! Por que não me surpreendo com isso, hein André?  Avançava sôfrego, com a lanterna apagada, somente o luar tênue mostrando a rota. Olhou novamente para trás, a escuridão já tinha encoberto todo arquipélago. Respirou fundo. Há trinta anos, foi André que insistiu que nesta data e horário deveriam os quatro voltar para terminar o que foi começado. Nesse instante teve um sobressalto. Monteiro se lembrou de como, estranhamente, morreram seus colegas. Teve calafrios. Estou na dianteira, meu caro, mais de 30 minutos de diferença, disse para si mesmo, largando um sorriso sarcástico no canto da boca.

Estou me lembrando da topografia da ilha melhor do que esperava, a lanterna me ajudará a entrar na caverna, tenho que chegar lá antes de André.
Monteiro já avistava o topo e suas passadas eram agora mais largas. Espero que o baú de madeira esteja intacto. Lembrou que a ilha estivera fechada para visitação de turista e isso dava-lhe mais certeza de que tudo podia estar onde deixaram. O importante é não me perder entre esses paredões de granito e labirintos traiçoeiros. Olhou para baixo, os paredões formavam um penhasco que caia no mar.

Como fora que tudo começara, Monteiro deu-se ao luxo de um fluxo de pensamento enquanto caminhava morro acima. Os quatro eram muito amigos e alunos da POLI –USP, veteranos bem se vê. Joaquim, o mais inteligente, estava na eletrônica. André e Júlio na civil. E ele, Monteiro na naval. Até que a naval valeu, sabia navegar como poucos e ali estava. Joaquim apesar de mais inteligente era o que tinha mais dificuldades econômicas. Estudava de dia e à noite dava plantões no Aeroporto de Guarulhos. Fora lá que vira passar, inúmeras vezes, a maleta preta, vinda da África do Sul e que diziam estava cheia de diamantes brutos. Os colegas, mais velhos, explicavam que vinha assim meio descuidada para não chamar atenção. Dali rumava para Amsterdam o maior centro de lapidação do mundo. A coisa era simples, pensou Joaquim, precisavam de uma maleta igual sem tirar nem por. E mesmo numa época em que não havia celulares, ele conseguiu uma incrível série de fotos. André e Júlio se encarregaram de obter uma maleta igual. Joaquim se esgueirou aeroporto adentro com ela e na hora hagá fez a troca perfeita, com etiquetas e tudo mais. Indistinguíveis. De posse da maleta, acertaram o resto. De carro até São Sebastião, um barco, Monteiro no comando, Joaquim, Júlio e André juntos, rumaram para Alcatrazes. Joaquim enfatizara muito a necessidade de ficarem calados por muito tempo. Não era possível, aparecer com uma mala de diamantes sem chamarem a atenção. O baú fora ideia do Júlio, sempre brincalhão, pareceria coisa de piratas. Chegaram, esconderam o baú, fizeram os mapas e voltaram, combinando para daí a vinte anos o retorno. Porque não voltaram nos vinte e lá estava ele voltando nos trinta, na inesperada e não desejada companhia do André, era uma outra história que agora ia ter que esperar.

Faltavam ainda uns cinquenta metros para chegar ao topo. Arquejava e a pontada no lado direito o obrigaram a sentar-se antes da arrancada final. Tirou a lanterna e o mapa da mochila para conferir o caminho. Ali ainda estava oculto pela densa vegetação tropical. Logo adiante, as árvores escasseavam e a mata dava lugar ao capim alto e áspero que recobria o cimo mais alto da ilha. Na face norte havia uma estreita plataforma, invisível, onde Monteiro agora se encontrava. Monteiro localizou-a no mapa. Era de onde deveria descer pelo lado oeste até chegar à caverna.

Estremeceu ao lembrar do tiro e do grito de Salvador ao cair da plataforma há trinta anos. Ele e Júlio desceram pela encosta até chegar ao corpo estatelado vinte metros abaixo numa saliência do paredão de granito. Passaram cordas em torno do morto que foi içado por André e Joaquim. A culpa tinha sido do próprio Salvador. O homem tinha sido contratado como guia, mas ao perceber que os quatro amigos ocultavam um tesouro, ameaçou-os com o revólver. Queria também uma parte. Só não percebeu que o André também estava armado. André atirou para assustar o malandro, mas atingiu-lhe a perna e o sujeito despencou no vazio. Discutiram o que fazer. André seria acusado de assassinato. Os outros, cúmplices. Decidiram lançar o corpo ao mar com lastro de pedras. Trinta anos, o prazo de prescrição do crime, voltariam para buscar o baú.

De onde estava já avistou o costão de pedra levemente clareado pela lua mansa.  Dá pra descer assim mesmo, pensou Monteiro ao tirar, apressadamente, da mochila, o rolo de corda, os mosquetões, e as luvas. Ainda não acenderia a lanterna, se fosse mesmo o André vagando pela ilha, não ia querer chamar a atenção.

Montou, no escuro mesmo os equipamentos. Já fizera essa escalada antes, há trinta anos. Vinha treinando a composição dos nós nos últimos dias, fez até curso básico de alpinismo. Colocou no cinturão alguns ganchos, uma faca, e o celular. Engatou o laço de corda na rocha de ponta que antes estivera escondida pelas heras.  Sorriu nesse momento. Se a hera está cobrindo a pedra, há anos ninguém vem aqui, pensou. Apontou a lanterna para o paredão, examinou, se posicionou, e começou a descida no escuro. No começo lentamente se deixou içar no ar. Depois, envolto pelo pensamento da maleta e do que ela poderia lhe proporcionar, soltou o corpo no primeiro impulso de descida. Os pés se alojavam em qualquer saliência para impulsionar novamente o corpo. Tinha confiança mesmo na corda e nos mosquetões. O abismo que havia abaixo, não amedrontava Monteiro. Fazia uma descida pontual, determinada. O André deve estar chegando ao topo agora. A aflição voltou a tomar conta de sua mente, de seu peito.  Parou, travou o mosquetão, olhou para o topo, apontando a lanterna para lá, sentiu o estômago gelar com o que viu.

Lá estava André. Seu olhar fustigava Monteiro por ter se adiantado na descida. De repente, uma lâmina refletiu-se no facho de luz da lanterna.  Vai cortar a corda, o desgraçado! Raciocinou ligeiro Monteiro, com o coração na boca!

Direcionou a lanterna para baixo, iluminou há poucos metros a fenda, identificada de pronto pela memória, como a entrada da caverna. Estava muito perto do sucesso, não se renderia às ameaças de André. Vou descer voando, antes que ele corte a corda!

Soltou o freio, e abraçado com a gravidade chegou acelerado à boca da caverna já liberando a corda de seu mosquetão, segundos antes de presenciar o despencar da corda ao léu.

Estava aflito, ofegante, mas não com medo. Sabia-se tão criminoso quanto André, por ter participado do planejamento, do roubo da maleta, e da cumplicidade pela morte de Salvador.

A volúpia de encontrar o baú era tão grande, que por instantes não atinou como retornaria e como seria o encontro com o André.

Entorpecido, irrompeu pela caverna, transpôs a primeira curva, uma passagem estreita até chegar ao nicho. É aqui! Pensou convicto. Aproximou-se, e com mãos trêmulas foi vasculhando até tatear uma forma não rochosa.

— Eureca! É o baú! Vibrou Monteiro.

Puxou o objeto para si, e sofregamente iniciou o arrombamento, com a pouca luz da lanterna dando-lhe o rumo.

Assim, concentrado na operação, não percebeu a chegada felina de André.

Só sentiu a coronhada e desfaleceu!

A primeira coisa que Monteiro sentiu ao acordar, foi uma enorme dor na cabeça. A segunda foi que seus braços e pernas estavam imobilizados por várias passadas de cordas.   

Muito zonzo ainda, percebeu o movimento do feixe de luz de um farolete. A luz da lanterna de vez em quando refletia em uma das paredes da estreita caverna. Viu a figura embaçada do antigo amigo, ou melhor companheiro de jornada do tempo que eram jovens, imprudentes e inconsequentes. A quase careca, com ralos fios de cabelos brancos o fez sorrir. Já não sabia mais quem estava ali. Eram dois estranhos. A vida encarregara-se de separá-los.

Cada um seguira um caminho totalmente diferente. Ele casara-se, tivera filhos, levava uma vida regrada, voltada para a família. Mas aquele que ali estava, o que teria feito todos aqueles anos?

André, de costas, estava mexendo no baú. Ele arfava tentando abrir a caixa.

 André? Às vezes a silhueta confundia Monteiro.

Monteiro sentia o braço doer. Devia ter caído sobre ele. Sentia-se mesmo meio tonto. As pernas amarradas, deitado em posição fetal.

O agressor, de repente, virou-se para ele, o olhou com cara de poucos amigos, enquanto mostrava incrédulo o baú aberto. Não havia nada dentro. Estava absolutamente vazio.

Monteiro sem atinar, firmou a vista em André.

Entreolharam-se, tentando entender o que estava acontecendo. Haviam sido passados para trás.

Tinham sido colegas de escola, mas Monteiro não conseguia ainda juntar os fatos, nem assimilar aquela fisionomia naquele ambiente lusco-fusco.
Até que conseguiu enxergar bem. Aquele vulto não era André. Era Salvador. Salvador, que pensava que tinham assassinado e jogado no mar.

 ─ Salvador! Gritou Monteiro, sem acreditar no que via. É você mesmo, Salvador? Como conseguiu escapar?

O antigo guia deu uma risada de escárnio.

─ Me fingi de morto. Eu tinha algumas costelas trincadas. Doía muito e sozinho eu não ia conseguir sair dali. Vocês me carregaram até lá embaixo.

─ Sim, mas como se livrou das cordas e das pedras? Perguntou Monteiro ainda atônito.

─ Vocês não eram bons de nós e eu era mergulhador. Sempre com minha faca presa na coxa. Ao cortar a primeira corda o resto se soltou e eu subi para respirar. Me escondi entre as pedras do costão. Por sorte, na manhã seguinte, apareceram dois marisqueiros (catadores de mariscos em pedras) que me resgataram, senão teria morrido ali mesmo.

Monteiro já refeito do susto, e desamarrado pelo seu captor fez a pergunta principal.  Quem, antes deles, se apossou dos diamantes? Enquanto decidiam a melhor maneira de subir o íngreme paredão discutiam.

 ─ Qualquer um dos três, era a opinião do Salvador. Os outros dois já morreram mas podem ter vindo bem antes aqui. No momento, só sobra o André. Melhor ir atrás dele, alguma grana a gente pode conseguir. Eu segui você porque era o único cujo endereço eu conhecia e na verdade eu precisava saber o local exato do esconderijo. Naquele dia, eu fiquei lá em cima. Vocês é que tinham o mapa na mão.
Quando Monteiro e Salvador chegaram ao ancoradouro não precisaram mais procurar o André. Lá estava ele com uma arma na mão.

─ Pode ir passando os diamantes, Monteiro. Queria me passar a perna? Mas não sou trouxa, não. E quem é esse cara aí com você?

Monteiro, começou a rir histericamente enquanto André nervosamente apontava a arma ora para um ou para outro.

Só baixou quando ouviu que não havia mais nada no baú. Demorou a se convencer que ambos tinham chegado tarde demais. Sobravam só os dois outros já falecidos. Qual dos dois tinha pegado os diamantes? Júlio ou Joaquim?

Sentiam-se derrotados. Eles sempre tão inteligentes, quem diria!

Pararam no barzinho do píer, pediram uma bebida. Precisavam raciocinar. Salvador só os observava, enquanto deixava cair a bebida goela abaixo.

Enquanto sorvia aquele líquido, que lhe queimava tudo por dentro, André fazia seu pensamento voar longe, três décadas atrás.

Sim, naquele dia Joaquim fora só em seu carro, com a desculpa de que chamaria menos atenção de uma possível blitz policial. Afinal, quatro marmanjos amontoados num Fiat 147 chama mesmo a atenção.

Você se lembra, Monteiro, como naquele dia Joaquim demorou a chegar. Veio com a desculpa esfarrapada de que teve que andar mais devagar para não atrair a Polícia Rodoviária.  E nós, idiotas, acreditamos.

André batia violentamente no balcão.

─ Como fomos ingênuos! É claro que ele trocou a maleta! Por isso tive a impressão de que estava mais leve do que a que pegamos no aeroporto.

Burros, burros, burros!

Joaquim ficou com toda aquela fortuna e depois fez com que acreditássemos que ele morreu. Desgraçado!

A ideia, como sempre, foi dele - lembra, Monteiro? Nós éramos uns babacas. Era sempre ele que mandava e desmandava. Nós apenas o seguíamos como cordeirinhos.

Era o mais inteligente, sempre com ideias mirabolantes. E a gente achava o máximo. Só não entendo porque ele não fez tudo sozinho.

─ Você tem razão, André, matou a charada. Foi isso mesmo que aconteceu. Ele precisou da gente para ajudar no aeroporto com a troca da maleta. Se desse errado, levávamos a culpa.

Quer saber, pra mim ele nem morreu. Tá vivendo nababescamente com aquela fortuna. Mas, e o Júlio? Será que estava mancomunado com o Joaquim? Será que também tá vivo?

E os três saíram de Alcatrazes determinados a descobrir o paradeiro de Joaquim e a provável participação de Júlio no suposto golpe. Isso não ficaria assim. Iriam até as últimas consequências. Se preciso fosse, denunciariam à Polícia Federal.

Situação desalentadora. Todos cansados, desorientados, e se sentindo enganados. Uma densa nuvem de desconfiança perpassou pelos três. Ainda nasceu na cabeça deles a vontade avassaladora de vingança. Contra quem e o que ia resultar disso? Finalmente André falou:

- Se não foi nenhum de nós, deve ter sido Joaquim ou Júlio – Sentou-se na beirada do barco e guardou a arma, matutando. Os outros quietos, também refletindo.

- Acho que devemos voltar e pesquisar no mercado se houve algum aporte de diamantes fora do comum.  Afinal, diamante na gaveta não serve para nada. Lamento ter desconfiado de vocês, mas quando entra grana, amizade periga.

Será que alguém viu ou escutou algo sobre esses diamantes?

Foram se encaminhando para o barco, todos calados, desconfiados e terrivelmente insatisfeitos com o desenrolar do caso.  Aí Salvador se lembrou:

-Quando fui salvo pelos marisqueiros, lembro de eles terem me perguntado o que eu fazia ali, na gruta.

- E você disse o quê? Perguntaram os outros, quase em uníssono.

- Que tinha sido guerra de gang, de drogas, sei lá, umas coisas assim, mas de diamantes não falei nada.

- Então, vamos já à costa perguntar a esses marisqueiros o que sabem.

E assim, no barco os três ex amigos e agora apenas cúmplices interesseiros, rumaram célere para a orla.

Enfim aportaram em Ilha Bela, local provável onde habitariam os marisqueiros.

Dividiram-se na busca. Monteiro foi para o porto da balsa, André para o lado leste e Salvador direto para os boxes de venda de pescados.

Salvador, acudido pelos marisqueiros gravara muito bem os rostos dos socorristas, vantagem que os outros parceiros não possuíam.

Não demorou muito, Salvador conseguiu o endereço com um velho pescador, dono de um box de pesca há muitos anos. Conhecia todos, um a um.

Seguiu só até chegar em uma prainha, escondida no lado oeste da Ilha. As arvores frondosas davam um ar refrescante ao pitoresco lugar.

Bateu palmas na casinha que a intuição lhe ordenou.

Logo, foi recebido com um barulhento vira-lata, latindo desesperado próximo ao seu corpo quando, simultaneamente, surgiu da casa um típico caiçara.

— O marisco acabou, só amanhã, se a lua ajudar, foi destrambelhando o marisqueiro - pensando tratar-se de um comprador.

Era tudo que Salvador queria ouvir.

Jeitoso foi puxando prosa até que chegou no assunto.

O homem quando percebeu o teor da conversa, logo cortou.

— Licença seu moço, tenho coisas a fazer, até logo.

— Aí tem!- resmungou Salvador.

Sem pestanejar, puxou da faca e, por traz, abraçou o pescoço do homem, encostando a lâmina afiada.

— Se não conversar por bem, então será na marra!

— Desembuche logo, antes que te corte a garganta, vamos!

O homem, indefeso, ainda tentou o silêncio, mas uma pequena pressão na lâmina, verteu sangue e o fez mudar de ideia.

— Pare, não me mate, tenho filhos para criar. Falarei o que sei: Depois que te salvamos, fiquei curioso com sua história. Dispensei meus companheiros e voltei à Sapata. Logo desconfiei. Entrei na caverna e não demorou muito para eu encontrar o baú com a maleta.

Quando abri, fiquei transtornado, primeiro de felicidade e euforia, depois de agonia para fazer dinheiro com tantas pedrinhas brilhantes, que deveriam valer bastante. Eu, um pobre pescador, como iria resolver. Guardei esse segredo por anos sem conseguir encontrar uma saída. Até que minha mulher adoeceu e não tinha dinheiro para fazer cirurgia. Não pensei e logo levei um punhado das pedrinhas para um agiota que logo me deu o dinheiro necessário, mas que, segundo ele, não valiam o suficiente para o dinheiro dado. Deixou-me levar o dinheiro como empréstimo, com a condição de lhe trazer mais, assim que minha mulher melhorasse. Assim fiz. Minha mulher sarou, cumpri minha promessa e levei mais um punhado de pedrinhas para ele. Ele agradeceu muito e pediu para não contar para ninguém essa transação:

─ Será segredo nosso!

Passados alguns anos, voltei à Sapata, qual não foi minha surpresa! O baú e a maleta estavam vazios. Chorei muito de raiva. O sangue subiu à cabeça. Quem poderia ter roubado?

Pelo que percebi, o agiota construiu casa nova, comprou carro novo. Será que foi ele. Acho que me seguiu. Senti uma vez a sensação de estar sendo observado. Não tenho nada mais a falar.

Salvador, aliviou a faca e, desconsolado, deixou o pobre homem.

Voltou para o centro, encontrou os parceiros. Agora tinham um novo alvo, o agiota!

Monteiro e André, desolados, voltaram para São Paulo. Salvador e o marisqueiro de nome Pedro de Jesus permaneceram em Ilha Bela. Monteiro não estava disposto a abandonar a maleta. O que fazer, era outra história.

Resolveu procurar os falecidos. Na verdade, supostos falecidos. Não tardou a descobrir que Joaquim trabalhava na IBM e tinha um alto cargo e alto salário. 

Embora proeminente, era low-profile, pouco aparecia e pouco falava com os meios de comunicação. Entrevistas, nem pensar, vídeos, cê tá louco, quando pego, escondia a cara com maestria. Topou falar pessoalmente com o Monteiro, num bar meia-boca da zona norte. Apareceu de chapéu e capa, saído das histórias de detetive antigas.

Cumprimentou o Monteiro e ouviu a história. A dele era mais simples, se dera bem na vida, tinha mais do que precisava. Encantadora mulher, advogada de prestígio, filhos e netos. Decidira não mais tocar no passado, com receio de que este viesse a estragar o presente. Afinal, fora ele que planejara o roubo. Essa história, contada em jornais e revistas, ia render um bocado e machucar muita gente amada por ele.

O Júlio morrera mesmo de um fulminante infarto já fazia uns vinte anos. Ele até fora ao enterro.

Pelo que o Monteiro contava, ficou curioso. O tal agiota ainda devia estar com muitos diamantes. Tratamento da mulher do Pedro Jesus, carro novo, casa nova em Ilha Bela dava para comprar ou pagar com um punhadinho do que tinha naquela maleta. O cara devia estar guardando o resto para futuras estripulias.

Como é que dizia o ditado popular: “Quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão”.

Era o que Joaquim se dispôs a fazer apesar dos riscos. Marcaram reunião na Ilha Bela. Eram cinco agora, um time razoável: ele Joaquim, Monteiro, André, Salvador e Pedro de Jesus. Não iam deixar de fora ninguém que conhecesse ou já tivesse participado da história.

Após calorosa reunião, e alguns planos discutidos, ficou evidente que irem os cinco juntos abordar o agiota não seria a melhor estratégia, já que chamar atenção sobre o caso era o que menos queriam, e só iria fazer com que o produto do roubo fosse parar na mão da polícia. Matutavam, então, em como fazer a coisa com discrição?

Monteiro se ofereceu para executar sozinho um plano combinado por todo o grupo. Optaram unanimemente, pela sugestão do Monteiro. Tratava-se do seguinte: Ele numa prévia investigação teria descoberto que o agiota Péricles, adquiriu há pouco tempo um iate de trinta pés e que, discretamente, o mantinha ancorado na Marina, desde a aquisição, Péricles tinha dificuldades de contratar um mestre arrais na região, capacitado para o porte da embarcação. Na verdade, mesmo apresentando-se para o tal plano, Monteiro estava meio encafifado e sua cabeça ardia em pensamentos e tramas. É gente demais para dividir a bolada, atinava.  Teria que agir com cautela.

Salvador e Pedro que não conheciam direito a origem das pedras preciosas, mas acreditavam em Monteiro, incentivaram a ideia. Joaquim e André não estavam nada a vontade com o rumo daquela conversa, mas como foram voto vencido acabaram se conformando. Com certeza ficariam alerta e discretamente acompanhariam os movimentos de Monteiro.

Aí entraria Monteiro em ação, engenheiro naval e mestre Arrais.

Possuía atributos suficientes para pleitear a vaga oferecida pelo agiota.

Assim ficou entendido entre todos que a ação e a inteligência da estratégia do momento ficariam a cargo apenas do Monteiro, que de posse do revólver de André, oferecido como medida de segurança, executaria o plano mirabolante e demorado, mas que poderia render frutos.

Assim ele chegou até Péricles, e após uma curta entrevista foi imediatamente contratado pelo desesperado agiota.

Logo se apresentou no estaleiro e subiu a bordo do imponente iate azul e branco, batizado como Tesouro de Netuno.

Monteiro examinou tudo, realizou alguns testes, alguns ajustes, pequenos reparos e ficou apto para a navegação.

O primeiro passeio foi para Bertioga.

Viagem tranquila, mar calmo, sol brilhante. Foi também o primeiro contato com a esposa de Péricles. Mulher bonita, corpo malhado, muito simpática. Não tinham filhos e Janice aproveitava muito bem a vida da riqueza que o marido lhe proporcionava.

Assim ocorreram alguns outros passeios, mas durante a semana, sem Péricles. O plano está caminhando bem, pensava Monteiro.

A intimidade entre Monteiro e Janice foi aumentando, alguns segredinhos, confidências, sussurros e fluiu a primeira vez entre eles.

Monteiro, mesmo imbuído de seu plano, balançou com aquela aventura.

Péricles sempre ocupado com os negócios fazia com que Janice viajasse sozinha com o comandante Monteiro.

Num desses passeios, Tesouro de Netuno rumou para o arquipélago de Alcatrazes, mas especificamente para a Ilha da Sapata.

No trajeto, Janice ia confidenciando algumas rotinas do marido e com medo avisava que era segredo. Os dois correriam risco de vida, caso Péricles descobrisse. Janice tinha muito medo, mas estava apaixonada por Monteiro e arriscava. Abraçou-o com força. Seus lábios encontraram os dele com a volúpia de quem realmente ama.

Chegaram ao arquipélago e Monteiro balizou a embarcação para um contorno pela Sapata em baixíssima velocidade. Fixou o olhar no penhasco, especificamente na boca da caverna.

Pensativo, fez um ligeiro flashback dos fatos que ali ocorreram.

Absorto, foi interrompido por Janice:

—Já vi essa entrada da caverna quando fiz um passeio com o Péricles. Disse, apontando para a encosta. Ele também olhava para ela do mesmo jeito que você olha agora.

Bingo!

Monteiro, discretamente, fez algumas perguntas para a mulher, cuidando para não despertar nela nenhuma desconfiança.

Nessa conversa, descobriu que Péricles voltou à Sapata sem ela, num barco alugado. Quando retornou para casa estava eufórico, parecia outro homem, disse empolgada.

Depois disso ele passou a esbanjar dinheiro, continuou Janice, ele me deu presentes, um carro, e também comprou esse iate.

Não havia mais dúvida. Péricles, sozinho retirou os brilhantes da gruta da Sapata, sem ajuda de ninguém, como o próprio Monteiro faria. Sem parceiros!

Descobriu através da esposa, todos os hábitos de Péricles, horários, locais que frequentava, e o que fosse necessário para concretizar seu plano. Ficou sabendo que o serviço de segurança particular há muito não existia com medo de ser descoberto. Que o homem andava recluso quando em casa, e no trabalho nem saia do escritório.

Soube também que havia um cofre, não no escritório, mas na própria residência deles, no quarto dos fundos. Estava muito bem disfarçado por uma tela caríssima, e o cofre quase nunca era acessado.

Monteiro, com todas as coordenadas em mãos, marcou uma reunião com os outros companheiros.

Nela faria uma revelação bombástica.

Todos estavam ansiosos, havia muita expectativa com o processo de investigação trabalhado por Monteiro, e com a sequência do plano.

— Companheiros, dois meses de investigações ininterruptas, onde não medi esforços para cumprir nosso plano, comprometi minha vida conjugal, até corri risco de vida para descobrir fatos e evidências do que vou lhes relatar. Acredito que a conclusão será boa para todos, pois acabaremos de vez com essa ansiedade e peso de consciência durante todos esses anos. Eu mesmo já estou me sentindo melhor depois das minhas constatações. O que tenho a dizer é que Péricles realmente pegou os brilhantes, ele foi sozinho na Sapata e roubou todos os diamantes. Mas, viciado em jogos, e endividado como estava, fascinado pelo poder do dinheiro, gastou tudo com imóveis, carros, iate e muito jogo. Foi inúmeras vezes para Vegas, Punta Del Este e outros Cassinos em paraísos fiscais. Mais tarde, vendeu alguns imóveis, ações e automóveis para sustentar os últimos anos de vício na jogatina.

Em suma, acabou toda a fortuna, todos os brilhantes foram trocados aqui e ali por cacifes de jogos, e outros bens, nada temos para recuperar!

Mal revelou a notícia, um tumulto se generalizou, alguns se estapearam e outros se resignaram aliviados do peso que carregavam na alma por tantos anos.

Horas mais tarde, a poeira baixou levando a conversa para um tom mais amigável, uma cerveja gelada, e já riam do passado tenebroso que tiveram. Despediram-se, e cada um tomou seu rumo.

Restou apenas Monteiro numa cena de adeus em tom melancólico. Em pé, pensativo e imóvel, a única parte de seu corpo que se moveu discretamente foi a boca, esboçando um sorriso sarcástico.

Agora vinha a segunda parte do plano diabólico de Monteiro, um trecho que jamais comentou com os companheiros, ou com quem quer que seja.

A ação ficou para alguns dias depois, quando o caso entrasse num vácuo de esquecimento dos companheiros.

E chegou o dia. Monteiro, disfarçado de carteiro tocou a campainha na casa do casal Janice e Péricles, alegando uma entrega de encomenda registrada, endereçada para Péricles.

Em poucos segundos, ouviu a voz feminina que saia pela caixa do interfone, identificou-a como sendo de Janice:

— O que deseja?

— Correio! Entrega registrada para senhor Péricles. Tenho que colher a assinatura da entrega.

Monteiro tinha em mãos uma caixa muito bem selada com adesivo do Sedex,  etiqueta de endereçamento e todos os carimbos de praxe.

— Um momento, disse a voz feminina.

A voz se calou por uns instantes... Em seguida, outra voz saiu da caixa, uma voz masculina, dura, seca:

— Que entrega é essa? Eu não encomendei nada.

— Não sei não, senhor. Só o senhor Péricles poderá receber e conhecer o conteúdo. Vou precisar da assinatura dele, ele está?

Silêncio por alguns segundos. Depois se ouviu uma discussão entre o homem e uma mulher.

Finalmente, a mulher apareceu à porta, visivelmente irritada, era Janice. Surpresa ao identificar Monteiro vestido com bermuda azul dos Correios ela, inteligentemente, logo compreendeu o que se passava e resolveu que ficaria do lado do amante. Abriu o portão eletrônico para pegar a correspondência. Nisso, com um movimento rápido, Monteiro a segurou pelo braço e o dobrou para as costas dela. Assim, com ela demonstrando-se imobilizada, seguiu empurrando-a para dentro da casa.

Fingindo pavor, a mulher se calou e foi andando em direção à sala com Monteiro na sua cola exigindo-lhe silêncio.

— E aí? O que tenho que assinar? É tudo bem estranho, Jan. Eu não estou esperando nenhuma encomenda.

Quando levantou os olhos deu com Monteiro dominando sua esposa numa chave de braço.

Não teve tempo para nada. Monteiro jogou a mulher no chão e saltou na garganta de Péricles que, surpreso, não teve tempo para defesa. Às costas o cano frio do revólver o fez dominado.

— Olha aqui seu desgraçado! Gritava Monteiro. Sabe que não estou sozinho e minha turma está de tocaia. Acho bom você devolver os diamantes que roubou senão, além de você, sua família vai sofrer as consequências, e não apenas sua esposa, mas irmãos, sobrinhos, todos eles. E tem que ser agora! Rápido! – Vociferou nervoso.

A mulher olhou para o esposo e ameaçou gritar, mas o marido com medo do passado e do que viria, fez um gesto de silêncio, fazendo-a se calar.

— Fica quieta, Jan. Vou fazer o que eles querem para acabar logo com isso.

Travado pelo pescoço, Péricles atravessou a sala, com Monteiro no seu cangote, seguido pela trêmula Janice. Entraram no quarto dos fundos.  Péricles retirou um Modigliani da parede, e logo se via a porta do cofre embutido ali atrás da folha de papel de parede. O agiota não se fez de rogado, parecia mesmo que já esperava que um dia a gang voltasse para apanhar o produto do roubo. Com facilidade, apesar de nervoso, ele abriu o cofre e tirou de lá alguns saquinhos de tecido preto amarrados com cordão dourado. Estendeu-os na direção de Monteiro, que conferiu nervosamente o conteúdo de cada um. Demonstrou certa alegria, mas conteve-se de pronto.

Ainda com a arma em punho, Monteiro evadiu-se às pressas. Mas não foi pelo jardim, jamais fugiria pela porta da frente diante das duas câmeras, aproveitaria as informações de Janice sobre o canal de fuga do marido que havia nos fundos da casa. Esgueirou-se pela lateral e, com agilidade do esportista que sempre fora, pulou o muro e sumiu de vista, correndo entre as árvores do bosque das imediações.     

Ofegante, e ainda incrédulo pelo resultado, Monteiro pode finalmente conferir os diamantes, e tratou de guardar os saquinhos em local que somente ele conhecia. Janice ficara no passado. Mas, os diamantes fazem parte agora de seu presente e representam seu futuro.


Depois do assalto de Monteiro, os dois, Janice e Péricles, permaneceram sentados nas cadeiras da copa. Não se falavam, só gemiam dizendo coisas como - ninguém foge ao seu destino – quem nasceu pra vintém nunca vai além – foi bom enquanto durou e bobagens outras apenas balbuciadas. A verdade é que estavam abalados até o mais íntimo de suas estruturas. Jan, como sempre, tomou a iniciativa. Agora era pegar a pequena maleta preparada previamente com roupas e outras coisas, trocar os sapatos e dar no pé. Foi o que fez silenciosa e eficientemente. Escreveu num papel: TCHAU, AMOR. JAN. E seguiu discretamente o amante.

Mas, André não era ingênuo a ponto de engolir aquela história mal contada por Monteiro. Afinal, a fortuna que havia ali em diamantes não era para acabar assim de hora para outra.

Cada pedrinha daquela deve valer uma fortuna, pensou. Aí tem. O Monteiro está escondendo alguma coisa. E eu vou descobrir. Não pense ele que vou morrer de mãos vazias.

E André resolveu contratar um detetive particular para seguir Monteiro.

Monteiro, vestido de carteiro, estava tão empolgado com seu plano que nem percebeu o carro preto que o seguiu naquele dia.

Aquela vestimenta, além de tudo, chamou mais atenção ainda do detetive.

Viu quando Monteiro entregou a caixa para a mulher que parecia estar à vontade com aquela presença. Estranhou quando o homem a imobilizou pelo braço sem que houvesse nenhuma reação por parte dela.

Ao vê-los entrar, saiu do carro, contornando a casa. Pela janela entreaberta, ouviu nosso homem, fazendo ameaças. Conseguiu tirar algumas fotos em que podia-se deduzir o que ali aconteceu.

Aguardou atrás de uns arbustos e viu quando Monteiro saia sorrateiramente pela porta dos fundos, esgueirando-se pela lateral e pulando o muro.

Foi rápido o bastante para segui-lo até seu esconderijo, descobrindo onde aqueles saquinhos pretos estavam sendo tão bem guardados.

Mais algumas fotos e o detetive satisfeito ligou para André, marcando um encontro imediato. Estava eufórico para detalhar todas as suas descobertas.

Afinal, como pagamento por seu trabalho, André prometera-lhe uma bela porcentagem sobre o montante encontrado.

André o aguardava ansioso. Entrou no carro e foi tomando ciência dos acontecimentos. O detetive o colocou a par de cada detalhe, o que o deixou mais furioso. Monteiro achava que poderia enganá-lo.

Ao chegarem próximo à casa o motorista parou, desligando rapidamente o motor para não chamarem a atenção.

A porta estava entreaberta. Dirigiram-se para ali e estancaram.

A mulher, desfeita, portava uma arma. Estava em prantos. Monteiro jazia sobre uma poça de sangue. Uma sirene anunciou-se. Alguém havia chamado a ambulância. Os paramédicos constataram que o homem estava morto. André não podia acreditar no que estava acontecendo. Estava tão perto de realizar sua façanha. Pretendia desmascarar Monteiro. Havia ensaiado até como o enfrentaria, humilhando-o.

E os diamantes, onde estariam os malditos diamantes, pelos quais esperou todos aqueles anos? Estava arrasado. O detetive, desapontado, insistiu para que saíssem dali, antes que fosse tarde, mas André continuava imóvel.

A polícia foi acionada. Chegou com a parafernália toda, cercando a casa, interditando-a com fitas. A mulher foi levada na viatura. Todos os curiosos foram “convidados” a sair.

Ninguém conhecia aquele homem. Aparecera do nada dias antes. Havia uma especulação no lugar, um zum, zum, zum...

André respirava com dificuldade. Foi saindo, lentamente, amparado pelo detetive. Derrotado. O sonho de uma vida toda, se fora em questão de segundos.  

O detetive, depois de muito, conseguiu convencer o cliente de que deviam ficar o mais longe possível do lugar. André estava inconformado. Nunca estivera tão perto da realização do seu sonho. Na verdade, de uma obsessão. Vivera aqueles trinta anos, fazendo planos. Alimentara aquela ilusão. E, como num passe de mágica, tudo tinha ido por água abaixo?

Os jornais deram a notícia. Salvador e Joaquim acabaram ligando os fatos e logo concluíram tratar-se de Monteiro. Perguntavam-se por onde andaria André.

Queriam encontrá-lo, saber se estava ciente dos acontecimentos, mas o homem estava sumido. Nem em sua casa, nem na casa de praia, onde costumava passar dias, nem em São Sebastião. Evaporara.

Joaquim, através de seus advogados, procurou saber mais a respeito da morte de Monteiro. Teria sido André o responsável? Os jornais falavam de uma tal mulher, mas eram evasivos.

Joaquim queria saber mais. Para isso, contratou uma detetive sobre a qual ouvira falar muito. A moça era considerada astuta, competente, determinada e costumava resolver casos insolúveis. Lenita Fragoso gostava de desafios. Aceitou o caso e, imediatamente, dirigiu-se ao local do crime onde passou a fazer perguntas. A casa continuava interditada. Apenas a perícia tinha acesso ao local.  

As pessoas, a princípio, diziam que não sabiam de nada. Mas ela sabia como convencê-los. Usava da simpatia e do jeito simples de ser. Acabou por saber da existência de Péricles, da mulher Janice, do enriquecimento repentino, do iate, da casa. Muitos ali já haviam pedido socorro ao agiota e amargado longos meses, pagando as altas taxas cobradas.

Algumas mulheres se solidarizavam com Janice, achando que o marido a maltratava.

Ninguém sabia muito bem a identidade do morto. Havia aparecido poucos dias antes e alugado a casa. Contaram que Janice aparecera ali com uma mala na mão e que o homem parecia não querer recebê-la. Ouviram uma discussão que terminou com um tiro. Alguém chamou a ambulância, a Polícia foi acionada e a mulher levada dali aos prantos.

O ex-marido só havia aparecido ali depois dos acontecimentos, tendo-lhe sido permitida a entrada, o que causou estranheza na vizinhança.

Lenita, de posse de todas as informações, optou por procurar Péricles.
Encontrou-o, trajando uma camiseta polo listrada branco e marinho e calça branca. Na cabeça um quepe de marinheiro, sapatos brancos.

Não parecia nem um pouco preocupado, decepcionado, infeliz. Não tinha o ar de quem havia sido roubado há pouco tempo.

Deu a entender que estava de saída e que não tinha a intenção de recebê-la.

A atitude do homem deixou-a intrigada.

Lenita seguiu Péricles até a Marina. Ficou a uma distância de onde pôde ver quando ele descarregou várias malas e caixas, que já deviam estar acondicionadas no veículo, levando-as sozinho para dentro do iate ancorado. Avistou o provável comandante com seu quepe e estranhou que o homem não viesse ajudar o patrão com a bagagem. Com seu potente binóculo, acompanhava todo o movimento. Já havia ligado ao delegado da região, informando haver algo estranho no ar. Dali, ia dando as coordenadas para que ele pudesse chegar rapidamente ao local. Afinal, a delegacia ficava próxima dali.

Saiu do carro. Foi caminhando lentamente em direção ao iate ao mesmo tempo em que notou a aproximação da pick-up com o delegado e dois policiais.

Não conseguia mais ver Péricles, tampouco o comandante. Conforme se aproximou, ouviu vozes exaltadas. O delegado apressou-se em direção ao píer, os policiais com armas em punho. Um tiro foi disparado. O delegado entrou correndo no iate. Lenita o seguiu. Péricles estava estendido no chão. A roupa branca pintara-se de vermelho.

O comandante sumira no mar.

Lenita não se conformava. Estava tão próxima de um desfecho.

Qual seria a identidade do pseudo comandante?

Iria até o fim. Tinha se comprometido com Joaquim a descobrir o paradeiro dos diamantes.

O iate foi interditado.

 ...................

Fazia tempo que André não nadava tanto. Estava destreinado. Começava a ter câimbras. Conhecia bem aquelas praias desertas, tinha certeza de que muito mais do que aqueles policiais que pouco conheciam da região. Precisava esconder-se até que a polícia cansasse de procurá-lo. Ficaria abrigado numa das cavernas ali existentes.

A detetive solicitou ao delegado licença para também periciar o iate. Tinha convicção de que acharia dentro daquelas malas os tais saquinhos de diamantes. O delegado pediu reforço na cidade vizinha para efetuar a vistoria no local no que foi prontamente atendido. Os homens trouxeram cães farejadores. Depois do exame preliminar o corpo foi transportado para o Instituto Médico Legal em São Paulo onde seria feita a autópsia. Lenita avistou a jaqueta preta caída ao chão na direção da roda do leme, concluindo pertencer ao tal comandante. Sugeriu que fosse mostrada aos cães para que fosse possível localizar o indivíduo.

A essa altura já se comunicara com Joaquim e o colocara a par dos acontecimentos.

Joaquim não tinha a menor dúvida da identidade do evasor. Resolveu dirigir-se para o local, a fim de acompanhar as investigações e até pressionar o delegado. O culpado não podia ficar impune.

Lenita não arredou o pé dali. De luvas, lupa e celular, verificava tudo e fotografava o que julgava importante.

As malas cheias de roupas, relógios finíssimos, sapatos de couro, jaquetas forradas indicavam que a viagem não seria para perto, dando ideia de fuga.

Os detetives reviravam tudo. Lenita viu quando os saquinhos pretos foram encontrados.

O delegado sorriu satisfeito.

─ Esses diamantes estavam sendo procurados há anos. Antes mesmo de eu me tornar delegado. Vou informar imediatamente a Polícia Federal.

Agora, só nos falta localizar o assassino. Muito provavelmente deve haver cúmplices. Esse roubo foi praticado há muitos anos e movimentou até a Interpol. Eu era jovem e ouvi muito falar. Depois não se mencionou mais. O caso foi esquecido, mas há um cartaz lá na delegacia já desbotado, citando o fato.

Lenita ignorava tratar-se de roubo. Joaquim, ao contratá-la, informara que tinha que reaver uma herança de família. Sentiu-se ludibriada. Nunca servira a esse tipo de coisa.

Chamou o detetive de lado. Expôs o teor de seu trabalho. Para o que havia sido contratada. Informou os dados de seu cliente, e que ele estaria vindo para a marina.

Os olhos do delegado até brilharam. Estava perto de desbaratar uma provável quadrilha que teria agido no roubo dos diamantes anos atrás. Se conseguisse mesmo seria promovido certamente. Teria reconhecimento por tantos anos de dedicação.

Aguardou, ansioso, com seus dois policiais, a chegada de Joaquim.

Lenita ficou ali. Estava desapontada. Costumava estudar a fundo o perfil de quem a contratava. Joaquim parecia um empresário sério, engenheiro, tinha uma vida estruturada. Não se conformava por ter sido enganada.

Os demais policiais acompanhados dos cães farejadores faziam uma varredura em todas as praias virgens do local onde supunham que o assassino poderia estar escondido.

Ao chegar, Joaquim foi imediatamente detido. Os olhos faiscavam, olhando fixo em Lenita, com ódio.

A detetive o encarou, declarando encerrada a relação de trabalho entre os dois.

Enquanto o conduziam à delegacia, o delegado foi informado pelo celular que o criminoso havia sido capturado numa caverna de uma das praias locais.

Joaquim e André encontraram-se na delegacia. Ambos soltavam faíscas pelas ventas.

Interrogados, contaram suas versões dos fatos e entregaram Salvador.

Meses depois, no Fórum de São Paulo, André foi julgado culpado pelo crime cometido contra Péricles, tendo como agravante sua participação no roubo dos diamantes trinta anos atrás e tentativa de assassinato a Salvador, sendo condenado a vinte anos de prisão e tendo suas propriedades confiscadas no intuito de minimizar o prejuízo à empresa proprietária dos diamantes.

Joaquim, apesar da prescrição, tendo em vista ser o mentor do grupo e devido à tentativa de assassinato do guia de turismo, Salvador, também foi julgado culpado. Além da multa aplicada, de acordo com valor calculado na declaração da empresa detentora dos diamantes, foi condenado a prestar serviços à comunidade por cinco anos, seis meses e vinte e sete dias.

Salvador foi considerado inocente e vítima do grupo.

Os diamantes encontrados, que provocaram tantas mortes, foram finalmente devolvidos à empresa roubada.

O sol já preguiçoso debruçava no horizonte para dar lugar à noite. O mar agora calmo balançava pequenas ondas atraindo para si o brilho da lua que ainda discreta tentava ocupar seu lugar no céu.


FIM

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