Maricota - José Vicente J. Camargo






Maricota
José Vicente J. Camargo
    

Ela chegou bem novinha na casa da família, embrulhada numa meia de lã dentro de uma caixa de sapato cheia de furinhos, tremendo de frio, naquela manhã de inverno. Quem a trouxe foi Zelão, avô do Rafa, tido como caçador e pescador dos bons, no tempo em que essas atividades eram permitidas e tinham muitos adeptos pelos campos e rios do interior do Estado. A caixa, segurada com cuidado pelas mãos fortes do Zelão, foi depositada sobre a mesa do café aguardando o aniversariante que, blasfemando o ar frio e com uma baita vontade de permanecer no quentinho da cama, vestia o uniforme do terceiro ano primário do Grupo Escolar. Helena, atarefada no preparo do lanche do filho, mira o sogro surgido do nada tal fantasma e, acostumada com suas peripécias repentinas, exclama:

− Zelão, espero que não seja mais uma surpresa pra me dar trabalho...

− Não! Retruca ele. Rafa me pediu várias vezes que lhe arrumasse um.

Ao ver o avô na cozinha, Rafa descongela o sorriso e corre para o abraço por mais uma velinha no seu bolo de aniversário da noite. Zelão aponta a caixa surpresa e os olhos dele refletem o brilho da alegria de um presente almejado. Desata o nó da cordinha embaralhando os dedos e, ao ver o bichinho, expira aquele ar de satisfação. O avô comenta:

− É uma raça de papagaio cabeça vermelha, dos que falam. Você precisa treiná-lo repetindo as mesmas frases em voz alta todos os dias. Com o tempo ele vai imitar não só suas frases como também outras das pessoas ao redor. Há tempo que venho pedindo à caseira da fazenda onde vou caçar, me arranjar um.  Desta vez ela conseguiu, descobrindo um ninho no alto de um abacateiro às margens de um brejo onde Judas perdeu as botas. Vigiou o ninho por vários dias até a avezinha ter forças para voar. Cortou um pouco as asas para que não voasse longe. Completo meu presente com um poleiro e uma correntinha para colocar na pata e a outra extremidade num arame de correr para que se exercite. Quando voltar da escola estará tudo montado inclusive com água e comida. A caseira da fazenda, em troca, me pediu que conservasse o nome que ela deu: “Maricota”, em homenagem a sua cadelinha de estimação que morreu faz pouco tempo.

Helena, olhando de envies o sogro, como a dizer: “Só me traz problema!”, pega o filho pelo braço e o arrasta para o carro. Rafa não desgruda os olhos da caixa até que a porta da sala batendo, corta sua visão lúdica.

No retorno da aula, dispensa a força da mãe e corre em disparada para a cozinha dando de cara com o avô nos últimos retoques que diz:

 − A área de serviço é um local protegido contra os ataques da gataiada da rua. Pegue o estilingue que lhe dei no último aniversário e comece a treinar a pontaria até afugentar essa bicharada, pois, gato e papagaio só são amigos nos livros e histórias infantis.

− Certo Vô! Vou praticar todo dia. Inclusive essa frase dos gatos já está na lista que preparei na escola para ensinar à Maricota: “cuidado, gato em casa”; “Rafa acorda, 7 horas, escola”; “almoço tá na mesa”; “Maricota quer comer”; “Rafa, lição de casa”...

Aos poucos Helena e o restante da família foram se adaptando e sentindo falta do palavreado truncado do louro nas tardes de frio quando esticava o sono. As visitas já iam direto perguntando pela Maricota e não deixavam de ir área de serviço dando-lhe o dedo para que subisse pelo braço até os ombros, abaixasse a cabeça emplumada de verde-amarelo-vermelho e pedir “Maricota cafuné!” e depois retribuir o carinho com bicadinhas na ponta da orelha do visitante. Este gesto ficou famoso em toda a vizinhança principalmente pela criançada que não parava de tocar a campainha pedindo brincar com Maricota.  As visitas tornaram-se tão frequentes que obrigou Helena, a contragosto do Rafa, a colocar uma placa no portão do jardim: “Visitas à Maricota só aos sábados das 10 às 12:00 horas”. Com tanto vozerio ao seu redor, Maricota aprendeu rápido a arte de imitar a voz dos que lhe eram familiares. Ia e vinha no arame esticado a sua disposição cantarolando: “Helena desligue a TV”; “Marcela (irmã) academia”; “Jú (empregada, fã de forró) dança da garrafa”. Numa manhã, estranharam o silêncio que reinava na área de serviço. Maricota ausente em troca de algumas peninhas verde-amarelas deixadas no poleiro. Rebuliço na casa toda! Rafa, batendo o pé, gritava que não iria à aula, precisava desenhar panfletos para distribuir pela vizinhança do tipo “Quem viu! Favor informar. Recompensa! ”. O choro e as lamúrias vararam dias, a esperança se diluindo: “com certeza Maricota voou pro beleléu para algum cafundó do Judas perdido no raio que o parta” diziam os conhecidos. As promessas para São Francisco, padroeiro dos animais e para Santo Expedito, das causas perdidas, deram frutos. Num domingo, a vizinha aos gritos anuncia um louro no telhado da casa em frente. Rafa corre como um raio e impede que o proprietário suba no telhado:

− Não! Ela só vem comigo. Trouxe um pouco de ração para atraí-la. Esticando a mão Maricota caminha despreocupada em sua direção, tritura a ração, sobe pelo seu braço e se empoleira no seu ombro observando o agito na rua. Abaixa a cabeça e aguarda o cafuné do seu preferido.

O proprietário observa o louro com atenção e pergunta:

− Porque o chama de Maricota se é um macho? Com certeza fugiu atrás de uma fêmea no cio.

Rafa, surpreso com a notícia, e sem jeito por não saber distinguir o gênero da ave, assim como ninguém na família, responde:

− É, sabe! Minha mãe e minha irmã gostam mais de animais do sexo feminino e o batizaram com esse nome. Mas ele é macho de verdade! Desvencilhou-se de uma corrente forte para ir namorar e mira Maricota que, com os olhos fixos no dele, exclama:

“Rafa, amigo da onça, vou de dar o troco quando sua namoradinha vier me pedir o dedo. Em vez do carinho na orelha, vou fazer cocô no ombro dela...”



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