As Gêmeas Idênticas
Ledice Pereira
Conheci Zulmira ainda na escola. Não era uma menina
fácil de se relacionar. Vivia só. Aceitava minha amizade porque, certa manhã,
eu, com pena, havia me aproximado e oferecido um pedaço do meu lanche. A partir
daí passou a aceitar minha companhia. Não se conformava de ter sido separada da
irmã gêmea, Zaíra. A escola achava importante manter irmãs gêmeas em classes
separadas para construírem suas identidades.
Elas eram fisicamente idênticas, eu ficava
impressionada. A diferença estava na maneira de ser. Zaíra irradiava luz,
alegria, felicidade. Estava sempre cercada de amigos.
Zulmira se apegou a mim. A única que lhe dava
atenção. Era difícil arrancar-lhe um sorriso. Vivia triste, quieta, aborrecida,
dizia que se sentia perseguida pelos professores.
Quando nos formamos no ensino fundamental, cada uma
foi para outra escola e não a vi mais por um longo tempo.
Por acaso, nos reencontramos já adultas, numa
reunião profissional, eu psicóloga, ela economista.
Tinha se tornado uma jovem bonita, embora nem
sorridente, nem falante. Apesar de ter me reconhecido, tratou-me com frieza.
Tentei me aproximar, saber um pouco de sua vida, da
vida da irmã. Foi respondendo meio que automaticamente.
A irmã havia se casado cedo, nem se formara. Era
uma simples dona de casa, vivia para o marido e a filha, afastara-se dela que
permanecia solteira, morava só e trabalhava muito. Sua ambição era viajar pelo
mundo.
Encontramo-nos outras vezes e, aos poucos, ela
despiu-se daquela capa com que tentava proteger-se, abrindo-se mais sobre sua
vida, suas conquistas, seus namoros.
Eu sentia que ela precisava de mim, como amiga e
como profissional. Até que achei uma forma de lhe oferecer, de graça, sessões
de terapia. A princípio, recusou, dando como desculpa o fato de não ter tempo.
Mais tarde, deve ter refletido e resolveu aceitar,
mas se sentiria melhor pagando pelas sessões, aceitava que eu lhe desse um
desconto. Concordei com as condições que ela impunha, por ter certeza de que
ela precisava muito de terapia.
A ética não me permitia revelar a ninguém o que era
falado ali. Mas a cada sessão eu me sentia mais incomodada e surpresa. Aos
poucos, ela ia se revelando.
Pensei que os pais tivessem morrido, mas ela comentou
que moravam no interior e ela mal os via.
— São uns chatos – disse um dia – só falam na Zaíra
e na menina. Parecem endeusar minha irmã. Não os suporto. Detesto aquela vidinha
interiorana que eles vivem. Não vou lá, até porque Zaíra vai todo fim de
semana. Não gosto de encontrá-la. Vem me abraçando com aquela cara de
felicidade, querendo saber o que tenho feito. Horrível!
Percebi que o caso era sério e que necessitava de
acompanhamento de um psiquiatra também.
Mas, como
dizer isso a ela? Iria me odiar e talvez deixar a terapia que, afinal, estava
fazendo com que ela falasse sobre todos aqueles sentimentos negativos que
estavam guardados dentro de seu peito, um ódio, um sentimento de revolta, uma
amargura!
Levei o caso a um psiquiatra amigo, muito
profissional, em quem eu confiava cegamente.
Ele achou importante estar presente em uma das
sessões.
Ela não gostou de ter um intruso ali. Tivemos que
usar de muita habilidade para que ela o aceitasse e ficasse à vontade, coisa
que custou um pouco a acontecer.
Após algumas sessões, ele diagnosticou,
esquizofrenia. Receitou alguns medicamentos que, a princípio, ela recusou, mas,
com jeito, consegui convencê-la de que a faria sentir-se melhor.
O próximo passo foi colocar Zaíra a par do que
acontecia com a irmã. Afinal, ela nunca procurara saber o porquê do
comportamento de Zulmira.
Zaíra chorou muito. Sentiu-se culpada pelo
afastamento que sempre tiveram. Jurou que se reaproximaria. Agradeceu muito por
eu ter me preocupado a ponto de fazê-la ser analisada por um psiquiatra.
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Zaíra passou a procurar a irmã periodicamente.
Chamá-la para um lanche, um jantar, um fim de semana.
Zulmira parecia estar melhor. Aceitava os convites,
levava um presentinho para a sobrinha. Visitava os pais mais amiúde, mostrando
paciência e até sorrindo algumas vezes.
Ricardo, o cunhado, que inicialmente a tratava com
certa distância, passou a ter com ela longos papos sobre economia, política, viagem.
Começou a achá-la interessante. Zaíra não participava dos papos por não
entender e não gostar do assunto. Preferia ver séries na TV, juntamente com a
filha adolescente.
Aquela aproximação levou Zulmira a se apaixonar
pelo cunhado, a ponto de passar várias noites em claro, arquitetando uma
maneira de conquistá-lo.
Aquilo martelava em sua cabeça dia e noite. Uma
ideia fixa que não lhe permitia mais ter a vida independente que vivera até
ali.
Contava as horas para chegar o fim de semana
e, mesmo sem convite, dirigia-se como um autômato para a casa da irmã.
Vestia-se com roupas provocantes, tentando ser o mais interessante possível.
Ricardo sentia-se tremendamente atraído por aquela
mulher tão diferente de Zaíra, que se mostrava cada vez mais distante e sem
graça.
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Aquela tempestade repentina veio mesmo a calhar
para Zulmira. A irmã convidou-a para pernoitar. Ela prontamente aceitou. Estava
dócil. Dormiria no sofá da sala mesmo.
O barulho da chuva caindo forte, os raios e trovões
que rebentavam noite adentro, encobriam qualquer ruído dentro da casa.
Zaíra parecia dormir profundamente, Ricardo levantou-se,
saindo do quarto, pé ante pé, em direção à sala.
Zulmira estava acordada, vestindo apenas sua roupa
íntima. Ricardo achou-a tremendamente sexy. Ela, radiante, conseguia seu
intento.
Ricardo deitou-se sobre ela. Não disseram nada.
Um tiro ecoou pela sala, fazendo com que Ricardo
caísse sangrando sobre o tapete. Zulmira não teve tempo de reagir, um segundo
tiro acertou em cheio seu peito.
A polícia encontrou Zaíra em pé, imóvel, em estado
de choque, portando na mão a arma assassina, pertencente ao marido.
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Dez anos depois, aqui estou contando esta história
que marcou a todos nós.
Hoje, atendo
em meu consultório, Zaíra, que acaba de sair da prisão e a filha, ainda traumatizada
com os acontecimentos passados.
Ricardo sobreviveu e ainda custa a acreditar que a
ex-mulher, que ele e Zulmira subestimaram, fosse capaz de ter aquela reação. Mudou-se
de cidade, onde tenta refazer a vida, apesar da deficiência provocada pelo tiro,
que o obriga ao uso permanente de muletas.
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