Que Pena - Yara Mourão

 




Que Pena

Yara Mourão

 

Muito antes das oito horas eu já estava de pé. Havia tanta coisa a ser feita naquele dia de festa. Eu não costumava comemorar meu aniversário com tanta gente, mas nesse ano era diferente

Márcio e eu havíamos acabado de nos separar. Apenas cinco anos de casados, mas muito barulho por nada. A partir daí ele não aceitava o fim do relacionamento e me atormentava constantemente.

Mas eu estava decidida a superar por completo as decepções acumuladas e os sobressaltos que me davam tanta apreensão, tanto medo.

Por isso resolvi fazer minha festa de aniversário naquele fim de um longo inverno.

Sentimentos às vezes sucumbem às contingências do mal. Márcio tornou-se violento, adepto das lutas marciais sem final civilizado; trapaceava com a vida e com as pessoas, perdeu-se na internet.

Dei tempo para o azar acabar de se instalar.

Na Páscoa, apareceu em casa para me dar uma caixa de chocolates. Desconfiei. Dei tudo para o cachorro, que coitado, em poucos dias adoeceu e morreu.

Pelo Natal, Márcio me contou do presente que dera a si próprio: um revólver calibre 38 e um curso no clube de tiro.

Era de dar pena. Ele havia sido um homem gentil, um dia. Programamos até uma vida só a dois, sem filhos, para nos curtirmos mais intensamente.

De enganos em enganos, a convivência sucumbiu e abriu as portas par um infinito nada...  

 

Pois, aquele, então, era o dia do meu aniversário.

Preparei a casa, as flores, os vinhos e os doces, tudo conforme sempre gostei.

Vendo a mesa posta, lembrei dos meus trinta, quarenta anos, festivos e alegres, cheios de gente. Agora também muitos viriam.

Escolhi um vestido branco, para passar uma mensagem de paz.

Escolhi músicas clássicas, para uma sensação de leveza.

Escolhi abrir todas as janelas para entrar os aromas da vida e o suave som da noite.

Deu oito horas, a campainha soou. Desci as escadas para atender a primeira pessoa.

Abri a porta. Dois ruídos ríspidos, dois tiros certeiros.

“Ah, Márcio! Era minha festa! E você nem era meu convidado!”

Fechei os olhos.

Desde então, meu corpo jaz sobre o dele, para todo o sempre.

Que pena!


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