Conto
de fadas às avessas
Ises A. Abrahamsohn
Era
uma vez uma madrasta. Madrasta, aquela mulher do seu pai quando ele se
divorciou de sua mãe ou quando sua mãe faleceu. Nas histórias de fadas as
madrastas sempre são más. Na vida real elas podem ser boas ou más. E as
enteadas também podem ser boas ou más. Esta é história de Janaína cuja mãe
morreu quando ela tinha oito anos. Janaína adorava a mãe e não se conformou
quando seu pai, André, se casou dois anos mais tarde com Neusa, dez anos mais
nova. Janaína na altura tinha dez anos e a madrasta 25. Neusa era advogada e
jovem, mulher bonita que aparentava bem menos idade. Além da beleza e
inteligência, era simpática e disposta a se tornar amiga da enteada. Sabia que
não poderia substituir a mãe, mas tudo faria para tornar a convivência
agradável para a garota adolescente. Neusa trabalhava em tempo integral num
escritório de advocacia no centro da cidade. Mesmo com as exigências de
trabalho que muitas vezes a obrigavam a ficar até tarde no escritório,
procurava cuidar da enteada preparando o lanche da escola do dia seguinte,
acompanhando o desempenho na escola e ajudando no dia a dia. Já durante os
primeiros meses de convivência, Janaína começou a se irritar com a madrasta.
Não demonstrava a crescente raiva que devagar se infiltrava na sua mente de
adolescente. Apenas aceitava passivamente os cuidados de Neusa e até ensaiava
alguma demonstração de afeto perante o pai. Com o tempo a raiva se transformou
em ódio. A garota, porém, era dissimulada e escondia bem seu sentimento. Na
escola passou a ter notas mais baixas, ela que fora excelente aluna. O ódio
tornou-se obsessão. Janaína tinha agora 14 anos. Voltava para casa tarde,
ficando na casa de amigas ou com o namoradinho. O pai não desconfiava de nada.
Devia ser a adolescência, pensava. Lentamente a menina desenvolvia planos para
eliminar a madrasta. Pensou primeiro em veneno. Mas como obter os venenos de
que tratavam os livros ou os filmes? Veneno era uma ideia impraticável. Melhor
seria um assassinato disfarçado em assalto. Sim,
era essa a melhor solução e aí o Juninho, vai me ajudar. Com a moto ele pode
fugir rápido no escuro. Vai ser perfeito. Temos que pegar a desgraçada da Neusa
quando ela sai do escritório à noite. E tem que ser silencioso.... Revolver,
não! Umas facadas ou pancada forte na cabeça. Não vai ser fácil convencer o
Juninho. O cara já amargou um ano no SE o tal de socioeducativo. Mas dou um
jeito, tenho grana guardada e umas joias da mãe.
O
rapaz hesitou. Mas estava louquinho pela menina. Ela prometeu uma semana de folia no apartamento do pai no
Guarujá. Acabou cedendo. Foram os dois examinar a área. O escritório ficava
atrás do fórum da João Mendes e a rua da Glória era bem escura no trecho por
onde a advogada passava para chegar ao estacionamento. Janaína marcou a data, quarta-feira.
Juninho escolheu um golpe na cabeça com uma chave de roda. Usaria luvas e a
moto ficaria parada num vão de prédio próximo. Janaína preferia a faca, mas o
rapaz foi peremptório: ─ É difícil acertar de primeira e até
morrer ela vai gritar e chamar atenção. Pancada na cabeça é melhor. Já cai e
desmaia e mais uma pancada bem dada e se acaba. Janaína, porém, tinha ainda um
pedido.
—
Quero que você me traga a correntinha de ouro com a medalha de São Judas que
ela usa no pescoço. A bolsa e os documentos você queima. Dinheiro não vai ter
muito, ela usa cartão para tudo. E nada de querer usar o cartão. Tua recompensa
vem depois, vou estar assanhadinha no Guarujá e vou trazer uma boa grana pra
gente se divertir.
Tudo
acertado, Janaína contente chegou em casa cedo para o jantar.
─
E aí, Neusa, muito trabalho nesta semana? Você está trabalhando demais, precisa
de umas férias.
Tranquilizou-se
com a resposta, sim, havia muito trabalho e, de novo, a advogada precisaria
ficar até tarde no escritório na quarta-feira.
Subiu
ao quarto logo após o jantar, ficou zapeando na TV e mal conseguiu dormir
tamanha a excitação. Na terça-feira foi à escola como sempre. Ao sair na hora
do almoço avistou Juninho ao longe na moto. Estava em ponto de bala. Fez sinal
para o rapaz.
─ Estou
doidinha. Me leva para dar uma volta. Só consigo pensar em amanhã quando vou me
livrar da peste.
─
Melhor a gente não ser visto junto hoje. E amanhã não vou aparecer. Só na
quinta. E vê se te acalma.
─
Não esqueça da correntinha, gritou Janaína.
Mas
a garota não se acalmava. Em casa pegou um comprimido para dormir do armário do
pai. Teve um sonho estranho. Era uma história que ela tinha ouvido quando
criança. Uma mulher que falava para um caçador, leve a moça para a floresta e
mate. E quero que me traga o seu coração para eu ver. O jovem caçador levou a
linda jovem para o meio da floresta escura, mas, penalizado, não conseguiu
matá-la. Deixou a moça próximo de uma casa bem longe na floresta e matou um veado
tirando-lhe o coração para levar para a pérfida mulher. Acordou assustada e
lembrou. Claro, era a história de Branca de neve que ouvira tantas vezes.
Riu-se. Hoje o caçador não vai ter pena!
Janaína
passou o dia como zumbi. Ligava para Juninho, mas só dava caixa postal. Afinal
conseguiu falar já eram oito da noite.
─
Tudo certo amor? Ela deve sair do escritório lá pelas dez. Lembra da
correntinha e do Guarujá.
O
rapaz se irritou com a ligação. ─
Vê se te acalma por aí e não liga mais. Vai dar certo. Amanhã a gente se fala.
Que
idiota, pensou Janaína. Só falta dar pra trás na hora.
Juninho
não deu pra trás. Mas teve azar demais. Não contava com o segurança que
discretamente acompanhava os funcionários do escritório quando saíam tarde da
noite. Quando empurrou Neusa antes de desferir o golpe, ouviu o tiro logo
seguido pela lancinante dor na virilha. Ficou caído na calçada tentando
estancar com a mão o sangue que se infiltrava no tecido grosso da calça. Gritou
para o homem que lhe apontava a arma:
─
A correntinha, tá no pescoço, preciso da correntinha para levar pra ela, pra Janaína, my love, ela prometeu,
no Guarujá, só nós dois, a grana... A correntinha...
Neusa,
já de pé, passou o dedo no pescoço sentindo a correntinha de ouro que nunca
tirava. Olhou o rosto contorcido do rapaz. Tão jovem para morrer. Falou para o
segurança: ─ Acertou na
artéria. Eu chamo o SAMU, pode largar a rama, vê se consegue apertar na virilha.
Com
o tiro, o pessoal do bar da esquina se aproximou para espiar. Seu Tobias, dono
do bar, viu o celular caído que vibrava sem parar. Atendeu...
─
E aí deu certo, Juninho?
─
Não, menina. Seja você quem for. O seu Juninho acabou de ser levado na
ambulância e a moça que ele atacou, acho que é a advogada do terceiro andar,
conheço ela, vem sempre tomar café. É a Dra. Neusa, está bem, está falando com
os policiais.
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