MEMÓRIA DESTA
VIDA SE CONSENTE
Oswaldo Lopes
Regina
guiava com cuidado, de volta do cemitério, onde fora visitar o tumulo de sua
mãe, morta faz um ano. De momento lhe veio à mente o verso incomparável de
Camões: “ Memória desta vida se consente”. Será que há outra vida, será que a memória
desta é levada para lá?
Subitamente começou a rir, lembrando os tempos
de escola. Famoso era o poema pelo cacófato (o primeiro verso do soneto “alma minha gentil que te partiste”), maminha
no colégio provocava risos sufocados. Quem hoje em dia sabe o que é cacófato ou
liga para isso?
Mais
do que nada, os poetas servem para isso, colocar em verso sentimentos estranhos
que não sabemos resolver. Memória, memória, o que se levaria para o além,
supondo que ele exista e a memória seja consentida.
Memória,
memória... Primeira coisa que vem a cabeça de mulher é homem, pensou e riu
sozinha, enquanto guiava. Como era mesmo a cantiga que entoavam na escola:
O primeiro foi Paulo, o segundo foi João o terceiro
foi Mateus com quem Regina se casou.
Paulo
foi um caso de Pronto-Socorro. Interna, mas não iniciante, Regina se deparou
com aquele rapaz, bonito, elegante, que capotara com o Paulistinha no Campo de
Marte. Fez bobagem, mas teve muita sorte. O avião ficou de cabeça para baixo e
ele foi retirado com apenas um talho grande na coxa. O tempo que Regina passara
estagiando na plástica foi ótimo. Fez um serviço notável, já mal se via a
cicatriz com os pontos intradérmicos. Era obvio que ficaram íntimos e saíram
juntos algumas vezes.
A
memória lembra, mas o caso não foi longe, Paulo gostava mais de aviões do que
de qualquer outra coisa, mulher incluída. Voou muito, virou engenheiro de voo e
sumiu misteriosamente num avião da Varig em cima do Pacifico. Ele, toda
tripulação e uma coleção de obras de Manabu Mabe que iam para o Japão. Essa
história que tinha uma ligação com o voo de Orly, também da Varig, chamou muito
atenção na época e agora, claro voltava na memória.
João,
o segundo, não era papa, mas um colega, médico que era especialista em
gineco-obstetrícia. Juntaram as coisas e os trapos e tentaram ir em frente.
Consultório comum, apartamento idem. Só que Regina era renomada cirurgiã
plástica e quando você mistura na sala de espera clientes de plástica com
clientes de ginecologia e obstetrícia o resultado é um enorme desastre. Fora os
chamados noturnos, obstetrícia, como todos sabem, trabalha mais a noite, em
geral de madrugada.
A
memória lembra, mas não com muito agrado. Foi um tempo muito complicado que
acabou tristemente. Ele pra lá, noite adentro e ela para cá dormindo
sossegadamente.
O
terceiro, como na canção, foi aquele que Regina deu a mão. Mateus, o advogado.
Pois é, tem gente que acha que medicina e direito são profissões
complementares. Nos Estados Unidos, ambas são profissões que exigem um college
anterior, ou como alguns dizem são profissões pós-graduadas. A brincadeira é
dizer que ambas têm o direito de matar, sem deixar vestígios.
O
casamento, sim casaram, deu certo e tiveram filhos, três no total. As conversas
na mesa de jantar eram interessantes porque os assuntos não eram profissionais
e quando eram, pelas circunstancias, tinham caráter pouco profundo. Não havia
colisões.
Como
dizia o outro poeta: “Mas que seja infinito enquanto dure”. Durou bastante ou
durou pouco, não dava para dizer, uma doença silenciosa levou Mateus com pouco
mais que bodas de prata.
Agora
estaria ele “no assento etéreo”? Talvez com memoria de sua vida, consentida. De
que se lembraria?
E
assim, como dizia o poeta da canção: “Perdida em pensamentos”, na direção do
carro seguia Regina, com seus apóstolos, Paulo, João e Mateus, entre poemas e
canções tentando encontrar a memória desta vida.