A LOUCURA DO MEDO - SERGIO DALLA VECCHIA



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A LOUCURA DO MEDO
Sérgio Dalla Vecchia

Jonas com os pais, navegavam mar adentro, em uma lancha nos arredores de Angra dos Reis, RJ.

Há pouco tempo que Eduardo adquiriu a sonhada lancha. Embora habilitado com arrais amador, ainda tateava na navegação.

Deitada sobre a proa, Simone acalentava-se ao sol com a brisa a acariciando.

Jonas, com a energia dos seis anos, equilibrava-se com bravura pelo convés usando um salva-vidas.

A família seguia feliz pela Baía de Angra, quando condições adversas de clima surgiram rapidamente. Era o vento noroeste, vilão estraga prazeres dos navegantes menos avisados.

O mar encrespou com marolas grisalhas, nuvens surgiram, Simone levantou as pressas, abrigou-se no deck abraçada ao filho. Eduardo firme no timão, tenso olhou para ambos e imediatamente fez meia volta rumo à terra, na segurança do Pier.

Acontecia naquele momento uma luta entre o vento e o mar, parecia que os Araújos cobiçavam os Marujos.

Eduardo já não tinha certeza de nada, confundia-se com o rumo na ânsia de contornar as ondas maiores. Pensamentos efêmeros das aulas de navegação surgiam na mente. Num instante, um estrondo e o barco rasgado de fora a fora por uma laje de pedra. No impacto Simone e Jonas foram lançados ao mar, ela protegendo o filho bateu a cabeça, perdeu os sentidos e largou a criança à deriva.

O pai desesperado, atirou-se em busca da família.

Impotente diante daquelas circunstâncias, ele fez de tudo  para salvá-los, acabou ultrapassando o limite de suas forças e sucumbiu heroicamente naquele fatídico fim de tarde.

No dia seguinte as manchetes dos jornais estampavam:

ACIDENTE COM LANCHA EM ANGRA DOS REIS DEIXA CASAL MORTO - FILHO SOBREVIVE.

A família era muito querida. Eduardo e Simone professores com hábitos formais e muito educados. O enterro em São Paulo aglutinou muitos alunos, amigos e parentes para a despedida do ilustre casal.

O garoto  chorava copiosamente nos braços da avó.

A última coroa de flores sobre o túmulo deu por encerrada a triste cerimônia.

O menino ficou com os avós maternos onde tinha tudo que precisava, educação, carinho e conforto.

Foi crescendo mimado, introvertido, com medo de tudo, até de uma abelha tinha medo. Também de cachorro, gato e chuva. Por esse motivo  passou a ser vítima de bullying na escola e dos meninos da vizinhança. Uma psicóloga o orientava na difícil batalha da sobrevivência dos emocionalmente fracos.

Mas, ele era inteligente, colhia ótimas notas e entrou na Faculdade de Medicina da USP. Uma das vagas mais disputadas no Brasil.

Mesmo sendo frágil, inexplicavelmente gostava das aulas de anatomia. Os cadáveres e pedaços de corpo humano não o incomodavam.

Foi numa dessas aulas que conheceu Tina, moça não muito bonita, mas de uma simpatia expressiva.

Iniciaram um namoro, a primeira mulher na vida dele.

Com a convivência os medos foram aflorando, demorava em sair de casa quando chovia, mudava de calçada quando encontrava um inofensivo pet, e outras tantas fobias.

Tina impaciente o criticava, chegando a ofendê-lo por diversas vezes.

No entanto, encontrava nela um porto seguro, pelo companheirismo e a firmeza que lhe faltavam. Ela por vezes tentou terminar, mas ele insistia tanto que continuavam juntos.

As discussões já eram mais frequentes. Jonas não era o mesmo. Retraia-se cada vez mais.

A mente perturbada recordava flashes do naufrágio no mar bravio. Flutuava raspando nas pedras afiadas. Engolia água. Submergia, emergia numa agonia desesperada até ser salvo por um pescador.

Nesses momentos ele se transformava, os olhos saltavam, sobrancelhas em ângulo agudo, suores e tremores pelo corpo e uma vontade incontrolável de se vingar do mundo adverso.

Após a morte dos avós, as coisas se complicaram mais ainda. Deixou de frequentar as aulas e não dava notícias. Pouco tempo depois, Tina também deixou de frequentar a Faculdade.

Enquanto isso, num sobrado afastado ele escondia-se dos medos. Aquele lugar era só dele!   

O interior da casa parecia um depósito de detritos, uma sujeira só!

O aspecto do comportado jovem era horrível. Vestia um avental que parecia ser branco, tinha encardidos de todo tipo, mas que realçava e impressionava eram as manchas de sangue.

Assim vivia Jonas, até que certo dia um investigador bateu à porta.

 Com mandato de busca procurava Tina, dada como desaparecida há trinta dias.

Impassível recebeu o investigador, que logo lhe perguntou:

— Você mora sozinho?

Após refletir com um sorriso amarelo respondeu:

— Não! Moro com minha namorada.

O detetive feliz por desvendar o mistério continuou:

— Onde Tina está? Preciso vê-la?

Jonas imediatamente conduziu o homem para o interior da casa.

A surpresa foi imensa quando percebeu a desordem. Desconfiado perguntou por ela novamente.

— Tina prefere ficar no nosso quarto. Vamos até lá.

Cada vez mais ressabiado olhava para os lados, para cima, o coração acelerado lhe sinalizava a presença do óbvio.

Chegaram ao quarto, devastado em tanta desordem quanto o resto da casa.

Havia junto à cama um freezer. O detetive entendeu imediatamente!

— Cadê Tina ? Esbravejou possesso!

Jonas, agindo com a naturalidade inocente de um adoentado, abriu a tampa e mostrou a namorada.

— O senhor me desculpe, ela está dormindo, é melhor não a acordarmos.

Nessas alturas, o inspetor ciente da situação delicada em que se encontrava, pisando em ovos, respondeu concordando com o argumento. Voltarei outro dia para conversarmos. Por favor, não a incomode.

Desceram a escada, Jonas mantendo a passividade quis mostrar o quintal e os animais de estimação.

A porta de um outro freezer foi aberta, calmamente foram apresentados os cachorros Rex, Pluto, a gatinha Mimi e Bibo, o coelho.

Havia outro freezer, para surpresa do assustado detetive estava vazio.
— Formamos uma pequena família feliz, não há discórdia entre nós. - Disse.

Dirigiram-se ao portão. Jonas  falava com naturalidade e já se considerava íntimo.

O detetive mostrava sinais de medo, ao mesmo tempo como profissional tinha obrigação de saber lidar com um desequilibrado, treinou para isso. Mesmo assim não conseguiu se livrar de um abraço fraterno de Demétrio, que na sua condição, poderia ser realmente sincero. Na dúvida deixou-se levar pelo coração.

Errou! Surgiu um bisturi, mãos de cirurgião e a artéria coronária cortada.

Agonizando, ainda ouviu um sussurro ao pé do ouvido:

— Gostei de você, quero que pertença a minha família.

Assim, o freezer vazio foi abastecido.
Depois de algum tempo tudo veio à tona e o infeliz Jonas, louco de medo, foi internado em uma clínica psiquiátrica.


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