O sumiço da morena - Ises de Almeida Abrahamsohn - CONTO DE FÉRIAS


Gif de detective
O sumiço da morena
Ises de Almeida Abrahamsohn

O delegado Freitas levantou o olhar do boletim de ocorrência para o rapaz bem vestido que o aguardava. Sabia bem quem era, mas mesmo assim indagou: −Foi sua irmã que desapareceu? Há cinco dias? Vai ver que viajou...

Da moça, lembrava-se vagamente de uma morena bonita em um incidente ocorrido há mais de quinze anos. Teria agora  uns 35 anos. Mas o irmão Juninho, e o pai, conhecido por Dr. Alceu – doutor em que? Crime? – sempre estiveram na sua mira desde que assumira a delegacia daquele bairro abastado. Castanho era o sobrenome do velho. Nunca conseguiram pegá-los. Ostensivamente era banqueiro de jogo do bicho, contravenção apenas, mas todos na polícia sabiam que a fortuna vinha das drogas cuja distribuição era gerenciada  por pai e filho e pelo sócio de longa data, o mexicano Mário Gomez.

O delegado fez as recomendações de praxe caso houvesse algum pedido de resgate para a moça e despachou o rapaz. A desaparecida era Talita que levava vida independente desde que abandonara a casa aos dezessete anos quando descobriu o tráfico comandado pelo pai e irmão. Na época as acusações da jovem contra o pai e a madrasta chegaram à polícia e às revistas de fofocas. Quem sabia quase tudo sobre os Castanho era Turíbio Esteves, advogado, jornalista investigativo e amigo de Freitas. O jornalista estava há tempo na cola dos Castanho & Gomez justamente por causa de Talita. Namoraram na adolescência e quando ambos cursaram a mesma faculdade. Tinha acompanhado a tempestuosa relação dela com a família. Separaram-se quando a moça viajou para os Estados Unidos para fazer um MBA no Texas. Não tornaram a ver-se, mas Turíbio sabia que a advogada tinha montado escritório especializado em direito comercial em São Paulo. Ainda apaixonado, o jornalista tentara em vão uma reaproximação quando do regresso de Talita ao Brasil, mas ela havia encontrado outro parceiro no Texas.

Turíbio discutia o desaparecimento com o delegado Freitas.

− Muito estranho! Primeiro, ao que eu saiba, ela nunca reatou com a família por se opor às atividades criminosas; segundo, por que a família sabe de seu desaparecimento e por que foram eles a dar queixa? Será que a tinham sob vigilância? E, nesse caso, por quê?  Ou será que já receberam algum pedido de resgate que não revelaram?

−  Ou pior, considerou Freitas. Talvez esteja morta a mando deles. Com essa gente nunca se sabe. O tal Juninho é obviamente o herdeiro dos negócios e a irmã ainda sabe bastante para colocá-los na prisão, coisa que nós nunca conseguimos!

O jornalista teve um aperto no coração –  que idiota eu sou depois de tanto tempo ainda me amarro na Talita como estará? morenas se conservam melhor a boca era exuberante não existia botox gozado são dos beijos doces e longos e não do corpo que mais me lembro os lábios carnudos a abrir caminho para a língua exploradora e os pelinhos desalinhados que sobravam no vão do nariz entre as fartas sobrancelhas o cabelo preto e os olhos puxados de alguma avó índia...

− Acorde Turíbio! Ainda sonhando com a ex-namorada? Caia na real, já se vão dez anos desde que a viu pela última vez.

O jornalista sorriu: 
− Havemos de achá-la...

Cinco dias depois o Freitas havia investigado o escritório e o apartamento da vítima. Computadores, agendas e documentos tinham sumido, mas nada indicava que a saída dos ocupantes tivesse sido apressada. Os zeladores perceberam o acúmulo da correspondência; os empregados foram dispensados e indenizados. No guarda roupa as roupas limpas e em ordem. No escritório poucas pastas de clientes comerciais de assuntos já resolvidos. Difícil acreditar em sequestro.

Numa gaveta, algumas fotos dos tempos da universidade americana. Talita abraçada a um rapaz com jeitão latino e farta cabeleira apanhada num curto rabo de cavalo. Turíbio conseguiu ler UT Austin Library numa das fotos. Uma consulta às turmas de formandos revelou-lhe o nome do rival: Renan Goméz. De imediato o reconheceu com o cabelo aparado na foto acadêmica: era o filho de Mário Goméz. O jornalista consultou seu dossiê e lá estava a informação: o sócio dos Castanho há muito tinha se divorciado e mãe e filho foram morar nos Estados Unidos, no Texas. A foto era do tempo do MBA da Talita, há mais de dez anos.  ̶  Será que ainda estariam juntos?

Juninho fez novo contato com o Freitas insistindo na hipótese de crime ou sequestro, mas negando qualquer pedido de resgate. O delegado acabou descobrindo que havia outros interessados no paradeiro de Talita: o escritório tinha sido invadido e vasculhado.

No dia seguinte um corpo carbonizado e irreconhecível foi encontrado em um matagal em Parelheiros. À tarde o delegado conseguiu falar com o legista. Era uma mulher jovem, poderia ser Talita; havia duas balas calibre 32 entre os fragmentos do crânio. O delegado indagou sobre a arcada dentária. Sobrara apenas um fragmento do maxilar inferior esquerdo. Se tivessem sorte a identificação seria rápida. Análises de DNA, na melhor das hipóteses, levariam dois meses no laboratório da científica, cronicamente sem recursos! Ligou para o Juninho que pareceu aliviado ao ouvir a notícia e ansioso por colaborar. Em uma hora retornou com o nome do dentista da época da adolescência de Talita.

Turíbio foi atrás de Renan Goméz. Achou dois endereços no Brasil. Encontrou a porta trancada no escritório da firma Goméz Import & Export num prédio decrépito próximo à Sé. O outro endereço era em Campo Grande. A firma não tinha site próprio, apenas um telefone. Ao ligar, ouvia-se uma secretária eletrônica. Teria que viajar até Campo Grande...

À noite, o rapaz se encontrou com Iracema, sua conhecida e amiga de longa data. Era a governanta dos Castanho há duas décadas. Gostava de Turíbio desde o tempo do namoro com Talita. Durante os anos se revelara uma fonte preciosa de informações. Dona Iracema, como ele agora a tratava, não escondeu a sua preocupação:

̶  Eles só falam às escondidas, mas eu sei que a menina foi raptada. Já ouvi por duas vezes comentarem que a quantia é muito grande. Parece que os bandidos estão ameaçando acabar com os negócios deles, além da vida da Talita. Não que a família se importe muito com ela, o principal pra eles é a grana. Aliás, já têm uns cinco anos que não ouço nem sei mais nada dela. Fiquei muito sentida, quando a mãe morreu fui eu que cuidei dela. Soube que arrumou um namorado nos Estates. Ouvi que o Juninho vai entregar uma parte do resgate ainda hoje.

Eram sete da noite e o jornalista ficou alvoroçado. Lembrou que Iracema era louca por alfajores e gentilmente despachou-a com duas caixas do doce compradas ali mesmo no Shopping.

Ainda alcançou o Freitas na delegacia. O delegado resmungou que seguir o Juninho seria inútil porque era quase certo o corpo queimado ser da Talita e, nesse caso, não havia razão para os Castanho pagarem o resgate. Devidamente munidos de uma térmica com café, estavam os dois encolhidos de frio no carro do delegado numa rua escura do Morumbi. Era quase uma hora quando o portão da mansão se abriu para passar o Volvo preto blindado. Numa pracinha atrás do estádio Juninho desceu com uma sacola e caminhou na direção de uma viela estreita de terra. Os dois amigos esgueiraram-se pelos muros da praça, mas não conseguiam enxergar nada na passagem sem iluminação. Ouviram vozes seguidas de disparos de duas armas distintas. Ao correrem para o beco, quem quer que houvera estado do outro lado havia levado a melhor. O farolete do delegado iluminou Juninho já morto; no chão  a sacola e pacotes de jornal encimados por algumas notas de cem dólares.

̶  Estou perdido neste caso, comentou mais tarde o delegado. Os sequestradores matarem a fonte da grana?  Verdade que ainda restam o velho e o sócio... Ou foi apenas um aviso, para eles não tentarem novo golpe?

Turíbio respondeu que iria averiguar a Goméz Import & Export. Estava obcecado por encontrar Talita. Chegou a Campo Grande no começo da tarde. O endereço era próximo ao aeroporto. Viu dois grandes galpões com enormes portas metálicas cerradas. Era lá mesmo. Deu a volta e encontrou janelas e duas pequenas portas também fechadas. Ninguém à vista. Perambulou pelos arredores e entrou num bar. Perguntou sobre a empresa. O dono serviu-lhe a cerveja e informou apenas que o horário era irregular. O cunhado era um dos motoristas da firma. Sabia apenas que trabalhavam com importação de louças e vasos do Peru e da Bolívia que eram logo despachados para São Paulo e Santos.

O jornalista voltou ao aeroporto. Ia esperar por lá para ver. Enquanto almoçava, ligou o Freitas para dizer que o corpo carbonizado não era de Talita e que não ouvira mais nada da família Castanho; o pai veio reconhecer o corpo do filho e, mesmo pressionado, negou haver qualquer pedido de resgate pela filha ou saber algo sobre a morte do filho.

O quadro de chegadas do aeroporto indicava que um avião da Star Peru pousaria no fim da tarde. Turíbio voltou à área dos galpões. Escurecia quando dois caminhões carregados entraram. As portas corrediças imediatamente se fecharam. Entretanto, pelas janelas traseiras de um dos armazéns filtrava-se alguma luz. Uma das portas estava destrancada e o rapaz deparou-se com uma escada metálica que conduzia a um mezanino. Lá em cima devia ser o escritório. Alcançou o patamar sem fazer barulho, apesar da fraca iluminação. De lá pôde ver alguns homens descarregando as caixas. Uma delas estava aberta e via-se um enorme vaso de cerâmica decorado. Turíbio avançou por um corredor sombrio e silencioso ladeado de portas. Súbito sentiu a pressão de um cano de arma nas costas:  ̶  Silêncio e vá caminhando!

Foi empurrado contra a última porta. A claridade da lâmpada nua do teto cegou-o por um instante antes que reconhecesse Talita. Trazia o cabelo bem curto com mechas descoloridas. Os lábios e as sobrancelhas escuras eram os mesmos de suas lembranças. O empregado armado postou-se do lado de fora.

̶  Por essa você não esperava, não é Turíbio ? O problema é que você chegou perto demais. Quando foi atrás de informações no Texas sobre Renan e a mãe Alicia que, aliás, é minha sogra, eu sabia que você não desistiria. Achei que você e seu amigo iriam sossegar ao encontrar os meus restos carbonizados. Infelizmente parece que o fogo não deu conta de tudo.

O Renan já tinha tudo montado lá no Texas para o transporte do pó, mas o cerco estava apertando demais. Resolvemos voltar ao Brasil. Os vasos com parede oca foram um achado. Faltava o capital para começar e precisávamos da rede controlada pelo Dr. Alceu e Juninho, meus adoráveis pai e irmão. Pedimos dez milhões e cinquenta por cento na sociedade. Os documentos fornecidos pelo Mário, pai do Renan, mais o que eu tinha para contar seriam suficientes para colocar todos na cadeia. Eu decidi sumir de São Paulo. Um dos dois certamente acabaria comigo. Me procuraram como loucos e botaram a policia e você no meu encalço. O idiota do Juninho de início recusou a nossa proposta. Depois voltou atrás e combinou a entrega do dinheiro. O tolo acreditava que eu estivesse morta e que estava passando a perna no Renan. Foi fácil tirá-lo da jogada. Eu estava esperando no beco já preparada. Despejei-lhe três balas, mas ele ainda conseguiu sacar e atirar. Quase me atingiu.

Com o Juninho morto, o Alceu não tem como não ceder e nós mais o Mário tomaremos conta da operação.

O jornalista estava paralisado.

̶  E agora Talita? Vai me matar também?

̶  Vai depender de você. Pelos velhos tempos vou te dar uma chance. Veja bem, eu vou reaparecer em São Paulo. Aí não terá havido mais nenhum crime de sequestro a investigar. Para você saber, o corpo carbonizado era de uma moradora de rua que encontramos já morta; os tiros foram dados post-mortem.  Quanto à morte do Juninho, não creio que a policia vai investigar muito. Acho até que vão ficar agradecidos.

Você, se quiser ficar vivo, fique calado e longe do nosso caminho. Diga ao seu amigo Freitas que não achou nada de suspeito na Goméz Import & Export.

Turíbio conhecia bem a Talita. Conseguiu apenas articular:

̶  Sim. Estou de acordo.


Retrocedeu até a porta e alcançou o corredor. Tinha medo de que ela mudasse de ideia. As pernas estavam bambas e suava frio. O capanga o escoltou até a entrada do aeroporto. Lívido e tremendo deixou-se cair numa poltrona. Desligou o celular e embarcou no avião da noite de volta a São Paulo. Depois de alguns meses mudou-se definitivamente para Porto Alegre.

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