CONTO DE NATAL - JÁ É NATAL DE NOVO - Oswaldo U. Lopes


medico (17)



JÁ É NATAL DE NOVO
Oswaldo U. Lopes


            Era essa sensação que Jorge Antônio vivenciava ao percorrer as enfermarias do Pronto-Socorro do Hospital das Clinicas. Cristão para constar na ficha, agnóstico por crença ou descrença, costumava dizer que na emergência não tinha ateu.

            — Tem mais milagre aqui que na Bíblia inteira.

            Era apaixonado por Jesus, pela sua humanidade, pela sua delicadeza, pelo respeito aos mais pobres quer de espirito quer de bens, pela sua compaixão. É sábado e eu com a Light, tem gente precisando milagre: eu faço. Perdoo os pecados ou curo o paralitico o que você acha mais fácil? Vai rolar uma pedra, quero ver você jogar a sua. Estão precisando de pão e peixes, ou de um bom vinho? Senhor pratiquei o aborto, não podia por mais um filho no mundo, sozinha e sem ninguém que me ajudasse. Agora que estamos os dois a sós nesta sala triste e cheirando desinfetante eu te digo: o pecado é do mundo e não teu.

            Odiava a Igreja, cheia de preconceitos e regras que não eram tiradas da vida, mas de livros e bibliotecas encardidas e cheirando a naftalina. Se estavam construindo a Igreja, como pretendia o Cristo iam demorar mais, muito mais que a Catedral da Sagrada Família em Barcelona.

            Podia andar naqueles corredores sem abrir os olhos, não precisava de luz para caminhar entre os leitos espalhados pelos corredores, sempre insuficientes, sempre precisando de curativos, sempre com aquele cheiro forte, sempre, sempre... Já dormira em camas muito parecidas com estas, sem contar as macas do Pronto-Socorro, onde você dormia a espera da entrada do próximo tiro ou do próximo enfarte. E não se vire, senão você vira paciente da ortopedia. Não conhecia nenhum caso de queda de maca e olha que fazia anos que convivia com isso.

            Podiam botar esse milagre na conta de Jesus, era dos bons e tinha a vantagem de ajudar a molecada a ter melhor disposição no resto da noite, em benefício dos que certamente viriam em busca de alivio.

            Aquilo é que era um espetáculo da fé e não a missa. Gente que não se incomodava de sujar o uniforme de receber no colo o vômito do doente ou de limpar a sujeira do leito no qual jazia o ferido que não podia ou devia ser movido. Jorge Antônio já fizera tudo aquilo junto com a enfermagem.

            Gostava de repetir:

            — No Pronto-Socorro, sua autoridade tem relação direta com sua capacidade de fazer qualquer coisa pelo doente, eu disse qualquer coisa.

            O que ele queria dizer? Era simples, não desprezo o trabalho de ninguém: enfermeira padrão, técnica de enfermagem, auxiliar de limpeza, faxineira, preciso de todo mundo, mais sei fazer e se for preciso faço o serviço de qualquer um. Não vou comer filé escondido enquanto a tropa come em pé, carne moída de segunda. O resultado era conhecido, por onde andava o respeito ia junto. Um respeito diferente que vinha de sua enorme autoridade.

            — Vocês sabem se a coisa apertar e pegar fogo de verdade eu não vou correr para o quarto nem para a sala dos médicos.

            Aliás era um lugar que ele não frequentava muito, às vezes quando a confusão baixava entrava lá. No geral detestava que seus comandados achassem que ele não podia ou não queria ser incomodado. Ali era possível vê-lo às gargalhadas contando histórias de pronto socorro como só ele sabia faze-lo. Sua especialidade eram as lusitanas, talvez pelo sangue transmontano de carga recente. Pai era de Torre de Moncorvo.

            A favorita era a do português que tinha levado o médico ao auge da loucura porque não tinha noção do que fosse colocar na entrada do anus, o que levara o doutor a ser mais explícito e usar a palavra de uso comum sobre onde enfiar o supositório ao que o luso se envergonhara e dissera:

            — Ai o doutore ficou bravo comigo.

            E tinha a variante do portuga que ao ser confrontado com o remédio que deveria ser usado na entrada do anus, informara ao seu doutore. Muito bravo:

            — O doutor vai desculpar, mas no meu caso isso ai sempre foi saída e nunca entrada.

            Todas as mulheres com quem trabalhava ou trabalhou sabiam do enorme respeito que tinha por elas e seu contínuo controle para não ser nem parecer machista. Costumava dizer que infelizmente o machismo era o normal na sociedade brasileira, uma educação mal conduzida e mal feita, empurrava nessa direção, mas era preciso vigiar sempre.

            É, mas negava-se a propagar a igualdade de gênero porque estava absolutamente convencido de que ambos os gêneros mereciam igual respeito, mas não eram iguais.

            Aprendera isso ali mesmo na enorme e fantástica escola chamada Pronto-Socorro. Você precisava saber medicina, o resto, que era importante na vida, você aprendia ali mesmo na hora, na teoria e na prática, sobretudo na prática.

            Adorava crianças, e tinha uma enorme compaixão com o sofrimento delas, mas nem de longe conseguia o mesmo gesto o mesmo carinho que uma mulher se abaixando pra chamar um menino ou menina.  A natureza tinha feito sua seleção, as mais carinhosas tinham mais filhos e criavam muito melhor esses mesmos filhos. Darwin no PS era novidade até para Pé de Valsa, o destemido enfermeiro, com trinta anos de serviço.

            Pé de Valsa tinha esse nome por causa de um andar que a medicina chamava de marcha escarvante, situação crônica que ele não queria e nem pedia qualquer tratamento. A situação se tornara permanente e originara o famoso apelido. O que chamava a atenção não era a sua marcha, mas sua intuição. Com trinta anos de porta, sabia tudo e frequentemente fazia diagnósticos só de olhar o doente e suas atitudes. Muitos achavam que ele cultivava a forma peculiar de falar.

            — É uma úrsula do diadema perfurada.

            Não dava outra, uma típica úlcera de duodeno perfurada. Ambos se conheciam fazia muito tempo e tinham um pelo outro grande respeito e amizade.
            — Doutor, chegou uma moça com hemorragia. O menino do PSO tá dormindo na maca, é judiação acordar ele.

            — Deixa para mim Ismenio. Jorge Antônio nunca usava apelido, nem quando o interessado gostava do próprio.

            PSO era abreviação de Pronto Socorro de Obstetrícia, podia chamar simplesmente Pronto Socorro de Abortos, pois era o que mais tinha, de obstetrícia mesmo, partos ou similares, as fichas eram raras, muito raras.

            A moça devia estar sofrendo muito porque encarou o médico sem muito pudor e contou-lhe claramente o que se passava. Uma hemorragia que já durava três meses, estava sentindo tonturas e já desmaiara no caminho do hospital. Traduzindo em miúdo uma menorragia uterina de longa duração que não tinha nada a ver com menstruação e que já estava comprometendo o estado geral da moça.

            Jorge Antônio decidiu pedir exames para saber o comprometimento hematológico, afinal ela perdera muito sangue ao longo desses três meses. Achou que dava para esperar antes de fazer uma transfusão, receitou plasma, soro glicosado e depois Ringer. Achou que uma injeção de estrógeno podia ajudar e preparou um encaminhamento direto para o ambulatório de ginecologia, tendo se convencido de que a moça entendera o procedimento, chamara a enfermagem e o serviço social para garantir que ela não se perdesse na burocracia.

            Despediu-se de Celene satisfeito com as medidas tomadas, afastou-se e ai caminhando começou a se lembrar daquele misterioso episódio que nos Evangelhos aparecia em dois deles com o da mulher com hemorroisa, êta palavra estranha, castelhana da gema, por que os tradutores brasileiros a usavam era para ele um profundo mistério. Lucas seu favorito falava em fluxo de sangue. Um caso de doze anos! Pobre mulher. Quanto sofrimento. E pela lei Mosaica ela era impura! Não podia tocar nada nem ser tocada ou que tocassem suas coisas. Era uma morta-viva. A medicina daquele tempo não lhe valera de nada. Transgrediu a lei, pois tocou o manto de Jesus. Este sentiu a presença dela e o toque a curou. Jesus disse-lhe apenas vai em paz. Não lhe pediu nem fez qualquer recomendação. Devolveu-lhe a dignidade e a liberou para que vivesse a vida na sua plenitude.

            Será que conseguira devolver àquela moça sua dignidade?

            Não teve tempo para responder, Pé de Valsa entrava com uma nova ficha e olhando para ele foi informando.

            — O cara se queimou fazendo o assado de Natal e ai percebeu que não tinha mais sensibilidade na mão. Pois é doutor fazia tempo que eu não via um desses. Noite de Natal cheia de Bíblia, essa não?

            Jorge Antônio sabia que Ismenio era Crente e como bom crente conhecia a Sagrada Escritura de cá para lá e de lá para cá. Estava falando de lepra, com todas as letras. Apressou-se em pegar a ficha, algum residente mais jovem podia interagir de modo desastrado num caso assim.

            Sentou-se na frente do Seu Augusto e ouviu-lhe a história que parecia saída de um livro de tão característica. O exame clínico mostrou a falta de sensibilidade na mão e o espessamento típico do nervo ulnar o famoso nervo do choque de sogra.
            Explicou, com muita paciência, qual era a doença e seu nome certo hanseníase. Infelizmente para melhor compreensão do doente teve que usar a palavra terrível: lepra. Mas, diga-se a verdade tocado pela experiência ou pelo espirito de Natal sua explicação foi fabulosa o homem se acalmou e entendeu perfeitamente que hoje em dia, sua doença não só tinha cura, como não implicava em viver sequestrado como relatado na Bíblia e gritando impuro! 

  Encaminhou-o como necessário para uma Instituição especializada, sabendo que os tempos eram outros e que tudo se resolveria muito bem.

            Daí começou a caminhar no corredor pensando Noite De Natal, mulher com fluxo de sangue, leproso, só me falta aparecer um cego.

             Quando levantou o olhar lá estava o seu enfermeiro favorito com nova ficha na mão.
            — Pois é doutor, um cego que se machucou na cerca, rasgo fundo.

            Olhou a sua volta não querendo acreditar no que ouvia, não ia passar saliva no dedo nem a porrete! O que o destino queria dele nessa noite Santa. Eu já expliquei que não sou ateu, sou um agnosticozinho sem nenhuma importância, pensava como quem procura sair da reta. Essa, no entanto procurava por ele como se fosse laser, ele tava na mira do snyper.

            Foi até a sala de curativo e olhou para o pobre Sr. Alberto, com seus olhos muito redondos e muito aflito.

            Já fazia seis anos que perdera a visão, foi duma queda em que caindo de costas batera a cabeça com força no chão. Vira um monte de estrela e depois não via mais nada. Andara em Pronto Socorro e num Instituto para cegos. Ficar cego depois de adulto era muito complicado, de repente então era castigo dobrado. Se a coisa vai devagar você se acostuma e aprende Braile enquanto ainda enxerga, mas de repente era duro.

            O que surpreendia Jorge Antônio era essa incrível aceitação da deficiência que os cegos têm. Nenhum inconformismo, nada de maldições, nada de achar que era castigo de Deus. Um humor que achava incrível. Meu Deus de onde tiravam essa força?

            Em noite de Natal ficava difícil não pensar em Jesus. Gostava de pensar em Jesus no tempo do Natal, deixava Cristo, o Ungido, o Messias para o tempo da Páscoa. Cristo era o Crucificado. As palavras não tinham nenhuma ligação etimológica, mas soavam bem juntas. Sabia grego e latim mais do que muito crente, mas não se esforçava para fazer exegese. De tudo que lera e ouvira gravara simplesmente:

            Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Achava, e estava em boa companhia, que ali estava toda lei e os profetas. 
            Pois é, diante do cego ficou pensando em Jesus e no seu currículo de oftalmologista.  Contou mentalmente e encontrou perto de meia dúzia de cegos que recuperaram a visão pelas mãos de Jesus. Dava conferência em Congresso sobre a Visão. O mais famoso era o de Jericó que tinha até nome Bartimeu. O que já se escrevera sobre o nome era quase tanto quanto o milagre. Bar, em hebraico é simples = filho de, logo Bartimeu era filho de Timeu. Timeu é um nome próprio ou é pobreza? Vai daí, tem gente que acha que a Bartimeu arrancaram os olhos quando criança.

            Não há nas Escrituras nada que corrobore esta versão. Para Jorge Antônio as curas de cegos que Jesus operou tinham tudo a ver com a existência prévia do glóbulo ocular. Nem a Deus era possível restaurar a visão sem a existência do olho.

            Tendo feito a sutura no maior capricho, sem causar nenhuma dor ou aflição ao pobre cego com quem conversava alegremente, o médico resolveu examinar sua vista. Era dos poucos, privilégio dos verdadeiramente bons médicos de pronto socorro, capaz de fazer um exame de fundo de olho.

            O que viu deixou muito intrigado. Alguém comera bola feio. Não havia nada de errado no exame. A retina, o cristalino, a córnea, a íris, tudo normal, porque Seu Alberto não enxergava?

            Sem muito alarde escreveu um laudo detalhado de encaminhamento para a Neurologia com passagem pela Oftalmologia. Sentiu uma ligeira pontada no coração, não, não era enfarte, era Natal e ele pensou, será que é mais um para o currículo de Jesus? Ser agnóstico no dia 24 de dezembro não era fácil. Aquela porcaria de cachaça do Pronto-Socorro do HC vivia tramando contra sua descrença e seu ceticismo.

            — Oi Jesus, truque miserável esse seu, é para comemorar seu aniversário? Pensou calado. Aquela intimidade com Jesus era das melhores coisas que lhe aconteciam. Ajudava muito nos momentos mais aflitos e difíceis da medicina de urgência.

            Nisso o celular tocou tirando-o de seu devaneio:

            — Já é quase meia-noite, você não vem para a ceia? Estamos todos esperando. Era a voz inconfundível de Cecilia.

            — Já vou meu amor, estou de verdade saindo pela porta. O Pé de Valsa prometeu que só me chama em caso de encrenca brava.

            Meu amor! Pensou ela pousando o telefone. Isso está parecendo mais um Milagre de Natal, e se apressou com os últimos arranjos. Milagre de Natal só acontece uma vez por ano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário