A PRIMEIRA VEZ QUE O FAVECO VIU A LILI
Jeremias Moreira
Falante e prestativo, o Silveira era escrevente do Cartório
de Notas. O diabo era que possuía a voz em contralto e um repertório de piadas
sem graças que subrepujavam seu jeito bonachão fazendo dele um ser enjoativo. Tinha
como esposa a Zilu, que com ar entojado formava a parelha ideal para um tipo
maçante como ele. Havia ainda a Lisete, ou Lili como era conhecida a filha,
resultado perfeito de mistura tão insossa. A Lili tinha lá certa beleza, mas
parecia viver encolhida para dentro do corpo de tão insípida e introvertida.
Frontal à casa dos Silveira residia Dona Celina, viúva que
cortava um doze para criar os três filhos adolescentes: o Faveco, o Fefeu e a Tatá.
Embora vizinhos, as duas famílias mantinham relações
distantes. Dona Celina por seu comportamento discreto e os jovens, por serem descolados
e pertencerem a grupos articulados, que Lili apenas sonhava em frequentar.
Aliás, a menina nutria uma paixão secreta por Faveco, que sequer a notava.
Ocorre que, em plena maturidade e vigor feminino dos trinta
e nove anos, Zilu foi vitima de um tumor maligno, que lhe foi fatal e deixou o
Silveira viúvo. Nessas alturas Lili saia, às escondidas, com o Fredão, um tipo
meio cafajeste, que era um mestre em fazer explodir a sexualidade feminina.
Pelo menos foi o que fez com Lili. Todo recato acumulado durante anos deflagrou
num relacionamento tórrido. E não parou por aí. Na sequencia vieram o Fiapo, o
Giba, o Dorico e outros, de duração relâmpago de apenas um filme, no escurinho do
cinema. E um passava para o outro:
— A Lili, por baixo da carapaça há um furor de mulher. Sabe
tudo!
O Silveira vivia enterrado no luto e não tinha a percepção do
que acontecia com a filha. Para ele, a dor pela perda de Zilu só atingira a si.
E, em casa, a garota continuava com sua existência invisível, como sempre fora.
Meses depois, mais conformado na sua dor, uma manhã, o
Silveira saiu de casa no mesmo instante que a vizinha da frente. E, subitamente
ele a percebeu com outro olhar. O olhar do macho que fareja a fêmea. E notou
nela atributos que nunca vira antes. Celina estava na casa dos quarenta, muito
conservada e bem mais bonita, charmosa e sensual que a Zilu. “Como
nunca percebi isso?”
Silveira passou o dia pensando em Dona Celina.
Quase sempre, o chato não tem ciência do ridículo. Assim era
o Silveira: um sem noção. À noite bateu na porta da casa da frente e sem
rodeios colocou a questão para Celina. Ambos eram viúvos, ela criava os filhos
com dificuldade e ele, Silveira, tinha um bom emprego e um bom salário. Um
poderia por fim à solidão do outro e se ajudarem mutuamente.
— Que tal se eu atravessar a rua de vez e a gente se casar?
Surpreendida com inesperada ousadia, Celina rechaçou de
início, mas depois achou que havia certa objetividade na proposta e prometeu
pensar.
Vacilantes, depois indiferentes e por fim de acordo foi como
meus irmãos receberam a revelação da minha mãe de que fora pedida em casamento
pelo Silveira e que aceitara. Eu me indignei. Protestei, soltei uma montanha de
impropérios e avisei que sairia de casa. Mas, ela tinha decidido e não voltaria
atrás.
Para deleite das fofoqueiras de plantão, Silveira e Celina casaram-se
no mês seguinte! Uma semana antes Faveco partiu para São Paulo. Não assistiu ao
casamento da mãe. Terminaria o colegial e faria Administração. Arranjou um
emprego numa empresa e foi morar numa pensão.
Quem também não aceitou esse casamento foi a Lili. Sabe-se
lá de onde tirou coragem para se colocar contra o pai. O fato é que o enfrentou.
Silveira nunca vira essa energia na filha. Tentou de todas as maneiras convencê-la.
Ela foi irredutível, exigiu sua parte na herança da mãe e se mandou para Birigui,
morar com uma tia.
Incauta, Celina nunca tomara conhecimento do Silveira e
ignorava como era inconveniente. Financeiramente a vida melhorara, mas aguentar
o novo marido não era tarefa fácil. Nos primeiros meses ela engravidou. Se por
um lado foi acidental e indesejado, por outro servia de pretexto para
rejeita-lo. Silveira era um touro insaciável. A vida passou a ser quase
insuportável. Lamentava não ter ouvido o filho.
Menos de um ano depois de casados, Celina deu a luz ao filho
do Silveira. Nem o Faveco, nem a Lili deram o ar da graça.
Mas, a vida é tão surpreendente quanto a ficção! Seis meses
depois de ter nascido o filho, Silveira foi vítima de um infarto fulminante e fatal.
Celina ficou viúva pela segunda vez. Agora aliviada e herdeira dos bens e da
pensão do Silveira. Alguma coisa boa teria que acontecer em sua vida.
A Lili se afastou definitivamente. Sequer foi ao enterro do
pai. Agora morava em Bauru onde cursava Direito.
Daquela criatura sorumbática, nada restava. Tornara-se
comunicativa, tinha seu grupo de amigos e vivia saindo com rapazes. Dividia um
apartamento com outras colegas de faculdade, numa espécie de república.
Uma das garotas a intrigava. Invejava seu jeito liberal. Ela
chegava sempre de madrugada e às vezes, um pouco alta. Numa noite Lili a
esperou e puxou conversa. Papo vai, papo vem, a garota abriu o jogo: era uma
das garotas da Eny. Fazia programa no Bordel da Eny. Assim ganhava a vida e pagava
seus estudos.
Fascinada, Lili disse de chofre:
— Amanhã vou com você!
Logo se tornaria a garota numero um da Eny.
No bordel Lili se encontrou. Como mulher e como pessoa. Percebeu
que nascera para essa vida. Ali, sentia-se cobiçada e tinha os homens a seus
pés. E adorava isso. Dava-lhe prazer dar prazer aos clientes. Nunca dizia não a
nada. Satisfazia com maestria aos mais exóticos desejos, por isso era a mais disputada.
A Eny adorava, pois a garota lhe gerava uma boa grana.
Faveco se reaproximou da mãe depois da viuvez, mas continuou
morando em São Paulo. Formara-se em Administração e fora promovido a diretor.
A filial de Bauru, que atendia as regiões Noroeste e Alta
Paulista, era uma das mais rentáveis. Faveco foi visitá-la.
O gerente local se desmanchou em hospitalidade. Se alguém
visitasse Bauru, não comesse o famoso sanduiche e não conhecesse o Bordel da
Eny equivalia a ir a Roma, não jogar uma moeda na Fontana di Trevi e não ver o
Papa. Então, impuseram a Faveco, comer o Bauru de Bauru, no almoço, e visitar o
Bordel da Eny, à noite.
O lugar estava animadíssimo e exalava sexualidade. Assim que
pisou no salão de festas, apinhado de homens grotescos e mulheres maravilhosas,
Faveco entrou no radar de Lili. Ele fora a única grande paixão secreta da sua
vida e a última pessoa que ela esperava ver naquele lugar. O garoto que povoara
seus sonhos de adolescente entrava onde ela reinava. O que deveria fazer,
realizar o sonho ou se vingar?
Impulsiva, deixou a mesa com tanta determinação que
surpreendeu as pessoas em volta. Aliás, Lili fazia tanto sucesso que qualquer
gesto seu era notado. Caminhou, com o olhar cravado em Faveco, o semblante aguerrido.
À medida que avançava as pessoas se afastavam, em silêncio e curiosidade.
O grupo de Faveco notou a aproximação de Lili. Ele achou-a
maravilhosa, não a reconheceu. Quando se deu conta de que era o alvo da garota,
sentiu palpitação e as pernas bambearem.
Lili o alcançou, percebeu seu embaraço, sorriu e disse
irônica:
— E aí Faveco, como tem que ser uma garota pra dançar com
você?
Surpreso por ela saber seu nome, deduziu ser pegadinha do
pessoal da empresa. Articulado e afiado com as palavras, se recompôs:
— Maravilhosa!
— Eu preencho o requisito?
— Plenamente!
— Então, dança comigo?
Colocou sua mão direita no ombro esquerdo, colou seu corpo
ao dele e o deixou sentir toda sua sensualidade. Dançaram! Ele gostou de sentir
o corpo da moça colado ao seu, mas alguma coisa o intrigava. Sentia alguma
familiaridade na garota, mas não atinava o quê. Súbito ela se afastou:
— Imagina esta cena:
você sai da sua casa, no outro lado da rua há uma menina magrela que te encara
ávida de atenção, você fecha o portão e se afasta sem sequer notá-la. Isso te é
familiar?
Um filme inteiro passou pela cabeça de Faveco. Ele a olhou
melhor:
— Não é possível!
Lili? Você, nesse lugar?
— E você, onde está? Porque você pode estar aqui e eu não?
— Não é isso... é que você era a última pessoa que eu
esperava encontrar num lugar assim!
— Qual é o problema com um lugar assim?
Tensa, assim começou nossa conversa. Depois amenizou e
tivemos um papo bacana. Falamos de nossos pais, da imponderabilidade daquele
casamento. Achei a Lili incrível, mostrou uma capacidade de raciocínio que me
surpreendeu e às vezes até me confundiu. A certa altura ela disse: “Aqui, ambos estamos negociando o mesmo
produto. A diferença é que você compra e eu vendo!”.
Você acredita que ouvi isso de uma garota que ignorei a vida
inteira? Pois é!
No final ficamos bem. Lili teve que voltar para seus
clientes e eu, sem clima, fui para o Hotel. Ela ficou de me ligar quando fosse
a São Paulo.
Certamente, essa foi a primeira vez que eu vi a Lili!
Jeremias Moreira
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