Ainda no projeto MEU CONTISTA BRASILEIRO — a LEDICE vai nos apresentar um dos tão fabulosos textos de LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: BANDEIRA BRANCA
Será, a apresentação, na terça-feira, dia 06 de junho, às 14:30horas.
Bandeira
Branca
Luís Fernando Veríssimo
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não
podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro
anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e
entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e
ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira,
até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro
baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele
com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram
recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados
a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o
tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu? — Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
***
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se
encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela
morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a
boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se
recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora.
Mas quase no fim do baile, na hora do “Bandeira Branca”, ele veio e a puxou
pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se
despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu
correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as
fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um
casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca.
Na hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à
procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não
conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o
leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la
outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma,
tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser
carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O
que acontecera?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a
teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá
estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou
que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um
brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente
bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos
caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e
afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias
garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O
Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma.
Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida,
começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.
Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná
clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e
amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente
burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças
curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu
dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a
banda começou a tocar “Bandeira Branca” e ele se dirigiu para a saída, tonto e
amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela,
meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem
assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a
cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
***
Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso,
num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe.
Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci
você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a
reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe
dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem,
no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais
aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe
como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia
nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa
bávara…
— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela. — Esqueci
— mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois se casaram, mas ele já se separou. Os
filhos dele moram no Rio, com a mãe.
Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do
Brasil…
E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento
mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que
todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?
E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele:
digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o
leque?
Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu…
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