Um simples aquecedor - Ledice Pereira

 


Um simples aquecedor

Ledice Pereira

 

Preciso trocar o aquecedor da minha casa e resolvo pesquisar por telefone marcas e preços. Só em resolver telefonar para alguma dessas empresas já entro em desespero. Começa minha saga:

Lorenzetti Aquecedores a Gás, em que posso ajudar?

– Bom dia, eu preciso de informação sobre aquecedor a gás para apartamento.

– Um momento. Vou estar passando para o setor de vendas.

Fico invocada. Por que essas infelizes insistem em usar o gerúndio? Será que ninguém falou pra elas que devem usar o infinitivo?

Aguardo impaciente a transferência, um, dois, três… dez minutos e nada.

Desisto.

Parto para outra empresa:

Bom dia, Equigás, Assistência Técnica em Aquecedores a Gás, em que posso ajudar?

Explico novamente que preciso informação sobre aquecedores de diversas marcas.

Senhora, é para GN ou GLP?

— Pode me explicar a diferença?

Percebo certo suspiro. Em tom professoral, com certa impaciência, ela explica:

— Bem, senhora, GN é gás encanado e GLP é gás de bujão. Mais alguma pergunta?

Como se eu fosse obrigada a saber o que é cada um.

— Ah, respondo ironicamente, obrigada por explicar com tanta atenção e paciência… Aqui é GN, então. Pode me explicar sobre a quantidade de litros que usam duas pessoas em dois banheiros?

Mais uma vez consigo perceber a irritação da atendente

Senhora, vou estar passando para o setor competente. Por favor, aguarde na linha. O telefone vai ficar mudo, mas se precisar de alguma coisa é só chamar.

Durante os próximos dez minutos sou obrigada a ouvir aquela musiquinha insuportável e repetitiva, com interrupções a cada momento: EQUIGÁS, ASSISTÊNCIA TÉCNICA EM AQUECEDORES…

Antes de ouvir mais uma vez SENHORA, desligo. Meu marido me pergunta o que me deixou tão irritada. Nem respondo.

Resolvo ir até uma loja física. Torço para que lá não tenha que ouvir tanto gerundismo. Além de espairecer um pouco, espero encontrar, in loco, um modelo de aquecedor que atenda à nossa necessidade, sem ter que ficar à mercê desse atendimento impessoal que as empresas impõem a nós.

 

O PONTO FINAL DO ÔNIBUS - ANTONIA MARCHESIN GONÇALVES

 


O PONTO FINAL DO ÔNIBUS

ANTONIA MARCHESIN GONÇALVES

 

                   Após oito horas de trabalho no escritório, ela, como todos os dias fazia, andava algumas quadras a pé, até chegar ao ponto final onde ficaria a espera da condução para o retorno para casa. Normalmente, tem cinco ou seis pessoas na fila, com isso garante a certeza de ir sentada até chegar ao seu destino.

                   Não morava perto, e o trânsito fervia no horário do rush. Uma mistura nas vias de carros e coletivos, que pareciam uma salada de frutas, quando não tinha acidentes, acabava fluindo. Ao pegar fila sempre no mesmo horário, convivia com os mesmos colegas de condução. Mas, era tímida, não conversava e por isso chamava atenção.

                   Quase todos se conheciam e ao chegarem já perguntavam reciprocamente. Quando saiu o último, ou o nosso está atrasado? A fila era um misto de homens e mulheres, poucos idosos. Os jovens alegres comentavam: Como foi seu dia? Outros respondiam: O meu chefe estava de amargar, acho que tomou café sem açúcar, ou o meu dormiu com a cueca do avesso. Riam.

                   Fazia parte dos integrantes da fila um rapaz que andava de bengala, teve paralisia infantil, outro um jovem simpático e bonito, muito falante, que demonstrava ser apaixonado pela silenciosa Anete, e outra jovem que com o tempo descobriu-se que era ninfomaníaca. O rapaz simpático, que se interessava por Anete, perguntava. Do que você mais gosta? Qual é a sua flor preferida? Tudo para demonstrar o seu sentimento.

                   Só que a colega ninfomaníaca, já apaixonada por ele, tentava desviar a atenção como: A minha flor preferida é a camélia. Às vezes pedia: Senta aqui comigo. Com ciúmes que demonstrava ao vê-lo sentar com a Anete.

Nessa salada, o jovem, que usava bengala, demonstra também gostar de Anete, e diz ao colega simpático:

— Não tenho chance, com esse meu defeito!

Ali na fila formava-se um redemoinho de sentimentos sem controle.

                   Após um ano Anete anuncia sua saída da empresa onde trabalhava, iria para um Banco, e sua condução seria em outro ponto, não mais se veriam, e ali se despediram todos prometendo:

— Vamos nos encontrar fora da fila, em algum restaurante, mas isso nunca aconteceu.


O HOMEM NU - FERNANDO SABINO

 


OUÇA — voz masculinaO HOMEM NU - FERNANDO SABINO






O HOMEM NU

FERNANDO SABINO

 

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. — Explique isso ao homem — ponderou a mulher. — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

— Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho.

Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão.

Bandeira Branca - Luís Fernando Veríssimo - MEU CONTISTA BRASILEIRO - LEDICE PEREIRA

 



Ainda no projeto MEU CONTISTA BRASILEIRO — a LEDICE vai nos apresentar um dos tão fabulosos textos de LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: BANDEIRA BRANCA

Será, a apresentação, na terça-feira, dia 06 de junho, às 14:30horas.




Bandeira Branca

Luís Fernando Veríssimo

 

Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.

— Como é teu nome?

— Janice. E o teu? — Píndaro.

— O quê?!

— Píndaro.

— Que nome!

Ele de legionário romano, ela de índia americana.

***

Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

— Ah.

Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do “Bandeira Branca”, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

— Me dá alguma coisa.

— O quê?

— Qualquer coisa.

— O leque.

O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

***

No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?

— Você vomitou a alma — disse a mãe.

Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

— E aquela bailarina espanhola?

— Nem me fala. E o toureiro?

— Aposentado.

A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.

Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar “Bandeira Branca” e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

***

Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara…

— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela. — Esqueci — mentiu ele.

Trocaram informações. Os dois se casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe.

Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil…

E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?

E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque?

Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu…