A casa de meu bisavô - Ises de Almeida Abrahamsohn

 

 


A casa de meu bisavô

Ises de Almeida Abrahamsohn

 

Essa é a lembrança de uma casa e dos que a povoaram um dia há cem anos. Uma casa onde minha mãe brincava quando criança. Vivia na minha imaginação pelas histórias que ela contava.

Eu viria a conhecê-la quando fiz minha primeira viagem à Alemanha. Na pequena cidade de Höxter ao lado do rio Weser. E lá estava a casa como eu havia imaginado. Numa rua estreita de calçamento de pedras de rio onde uma canaleta central escoa a água da chuva. Três andares e um sótão. Em tijolo vermelho com duas portas, uma dupla principal e outra lateral modesta abrindo para um jardim público gramado. Era esta que dava acesso ao consultório de meu bisavô, Dr. Paul Styx, médico de saúde pública e patologista.

Dele sei muito pouco. Apenas as fotos. Alto, de semblante severo, empertigado em seu terno escuro e colarinho branco engomado. Mas quantas pessoas interessantes viveram ali. Os filhos das cinco tias de minha mãe, e mais os primos do primeiro casamento da esposa do meu bisavô, adotados por ele. E a Fräulein, chamada assim, apenas senhorita, que controlava  a criançada. Chamava-se Margarethe e era a única sobrevivente de uma família de oito pessoas todas mortas por febre tifoide. Meu bisavô a conheceu ao fazer as inspeções periódicas como sanitarista e a empregou aos 12 anos para ajudar a tomar conta da filharada. Mas voltemos à casa.

De um lado da casa ergue-se uma torre redonda, muito mais antiga, que se comunica com a parede lateral da cozinha. Uma escada interna em espiral de madeira dá acesso a dois pavimentos. Nos dois pavimentos era a sala de brincadeiras das crianças. Um trem elétrico, palco móvel para teatro de  fantoches, casinhas de bonecas, mesas para trabalhos manuais, e livros, muitos livros infantis ilustrados. Material para desenho e pintura. Um projetor de slides de vidro colorido. Era o que minha mãe contava existir nessa fantástica torre à época de sua infância. Passava lá apenas algumas semanas duas vezes por ano nas férias escolares.

E eu estava agora lá, olhando a antiga casa, sessenta anos após a infância de minha mãe. Transformada em uma casa de atividades comunitárias e residência para o serviço de Diaconato da igreja evangélica luterana. Pedi permissão para entrar. Perguntei do acesso à torre. E lá debaixo, segui com os olhos a velha escada de madeira até o alto. Por alguns momentos fechei os olhos  ouvi as vozes dos que ali habitaram. As risadas das crianças, a Fräulein ralhando, minhas tias avós de nomes antigos Felizitas, Editha, Irene, Irma, minha avó Hertha, e Ilse sua prima mais querida. Minha mãe e seu irmão Klaus, Gerhard, o primo que aos 18 anos sucumbiu na frente russa em 1943. Todos se foram. A casa ainda está lá.

Talvez eu volte algum dia. Já levei meu filho e nora para vê-la. Ainda penso em levar meus netos.

ESCREVIVER - PUBLICAÇÕES DE LIVROS DESDE 2012 - COLEGUISMO - ELOGIOS E AGRADECIMENTOS

 


ESCREVIVER — OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA.

OS LIVROS NASCEM AQUI


Motivados pela descoberta da escrita, os participantes do EscreViver já publicaram mais de quarenta livros desde 2012 na Oficina e fora dela. Os gêneros são variados, contos de ficção criados na Oficina, autobiografia, registros memorialistas, registros de viagem, registros profissionais e romances, etc.

É um orgulho para a mentora deste projeto, e certamente para o Clube Alto dos Pinheiros, que oferece para os associados cursos e atividades de qualidade. 

Para os 11 anos da Oficina, representa publicação de quase 5 livros por ano. Os livros representam o EscreViver. Representam o melhor de cada escritor. São os certificados de que a Oficina motiva à boa escrita, propósito deste projeto.

 

 

  1. A NEUROLOGIA QUE VIVI — Biografia — Fernando Braga
  2. A LANCHA E O MAR — Oswaldo Romano
  3. A TOCA DO URSO — Maria Luiza Malina
  4. A TRILHA MISTERIOSA E OUTRAS EMOÇÕES — Maria Verônica Azevedo
  5. AGORA EU CONTO — Ledice de Sá Pinheiro Pereira
  6. AMORES VERSADOS — Ângela Barros
  7. AOS 70 — José Vicente J. de Camargo
  8. CHAYO — Carlos Cedano
  9. CONTOS CONTIDOS — Oswaldo Romano
  10. CONTOS TCHECOS — Maria Luiza C. Malina
  11. DE TUDO UM POUCO — Ledice de Sá Pinheiro Pereira
  12. DO ALTO DA MONTANHA — Fernando Braga
  13. El CONDOR PASA — José Vicente J. de Camargo
  14. EU E O UNIVERSO - Antonia Marchesin Gonçalves
  15. ESFERÓGAMO E OUTRAS HISTÓRIAS — Maria Verônica Azevedo
  16. FADAS EXISTEM? — Suzana da Cunha Lima
  17. HISTÓRIAS ESCOLHIDAS — Maria Verônica Azevedo
  18. LEOPARDO PARDO — Suzana da Cunha Lima
  19. ME ENCONTRE NO HC — Oswaldo U. Lopes
  20. MEMÓRIAS SEMPRE — Dóris Therezinha S. Albero
  21. O AMIGO IMAGINÁRIO — Suzana da Cunha lima
  22. O DESAFIO DO DETETIVE POÁ — Oswaldo Romano
  23. O ENREDO DE CADA UM — Antologia
  24. O FINAL DE TARDE — Fernando Menezes Braga
  25. O JUIZ ABANDONA O MALHETE — Oswaldo Romano
  26. O MÉDICO E A FAZENDA — Oswaldo Romano
  27. O PASSADO NÃO TERMINA — Oswaldo Romano
  28. O QUE TRAGO DENTRO DE MIM — Ângela Barros
  29. OS ARES SUAVES DA IMAGINAÇÃO — Maria Verônica Azevedo
  30. O SEGREDO DE CADA UM — Antologia
  31. O UNHUDO — Oswaldo Romano
  32. OUSADIAS — Antologia
  33. OUTRAS LEMBRANÇAS — Dóris Therezinha Albero
  34. PAPEL, CANETA, AÇÃO — Antologia (2021)
  35. PEDRA BRANCA — Oswaldo Romano
  36. RASPAS DO BAÚ — Oswaldo Romano
  37. RUÍDOS DO SILÊNCIO — Sérgio Dalla Vecchia
  38. SEMPRE VINTE ANOS — Suzana da Cunha Lima
  39. UM ESPAÇO NO TEMPO — Biografia — Oswaldo Romano
  40. UM NOVO ENCONTRO — Oswaldo U. Lopes
  41. UM PASSADO TÃO PRESENTE — Fernando Braga
  42. UNS E OUTROS — Fernando Braga
  43. VENTO CONTRA — Sergio Dalla Vecchia
  44. VIAGEM FANTÁSTICA — Maria Amélia Favale
  45. VIRANDO PÁGINAS — Suzana da Cunha Lima
  46. SINGRAR — Antologia 2022
  47. UM CRIME PERFEITO — Suzana da Cunha Lima
  48. EU E O UNIVERSO - reed. bilingue - Antonia Marchesin Gonçalves
  49. AMOR E ÓDIO - bilinguie - Antonia Marchesin Gonçalves
  50. DESCOBERTAS - Antologia 2023

 





BIBLIOTECA DO CLUBE ALTO DOS PINHEIROS

Maria Luiza Malina

Abril/2023    

 

Antes do Baile Verde — Lygia Fagundes Telles,

                                   Conto Jardim Selvagem — 1143 869.9  T275a

Uma preciosidade preservada em nossa biblioteca.

 

Olá, amigo, sócio do Clube mais querido da região.

É com você mesmo que desejo falar sobre nossa Biblioteca. Já visitou aquelas estantes? Ela contém relíquias à sua espera!

É lá naquele espaço que além de livros, e daquela atmosfera artística, estão também os funcionários do Departamento Cultural.

A Biblioteca sempre foi espaço aberto, acolhedor e livre como uma biblioteca deve ser. No ano de 2013, deparei-me com o Coordenador Cultural, Marcos Ribeiro, funcionário presente, disponível, criativo, e atento às necessidades dos sócios, estampando o sempre sorriso convidativo, e um cumprimento alegre, para acolher quem por lá passasse.

Refiro-me ao passado do Clube Alto dos Pinheiros, e especialmente ao Departamento Cultural, porque foi lá que minha vida teve um despertar sem igual.

Naquele tempo o corredor estava sempre disponível aos sócios, e era nele que os pintores e artistas plásticos expunham e comercializavam suas obras. Eu fazia parte desse elenco, sentia tanto orgulho de ser o Clube, a minha galeria, e a galeria de tantos outros artistas associados!

A cada passagem pelo Departamento Cultural, a cada pergunta, vinha uma sugestão de curso, de evento ou passeio, nunca paravam de acontecer “coisas” nesse Departamento… e lá a conversa fluía na direção do melhoramento de diversificação de ideias.

Há onze anos, lendo a revista MAIS, interessei-me pela oficina de Arraiolo, havia um tempo livre e havia muita vontade de realizar algo. Lá fui eu naquela tarde, armada com a cestinha de linha, agulha e tecido. Qual não foi minha surpresa quando o Marcos, muito educadamente, comunicou: “Infelizmente as aulas foram canceladas por falta de alunos”. Ao perceber minha decepção, ele tratou de oferecer-me um café. E entre uma conversa e outra, em tom cada vez mais alegre, convidou-me para conhecer a nova oficina de escrita criativa — EscreViver. Explicou o sentido da oficina, havia muitas atividades lúdicas para motivar à criatividade, e dava-se muita importância à sociabilização entre os participantes, lá não só escreviam, mas interagiam entre si, era um grupo sem limite de idade.

Aguçou minha curiosidade. Interessei-me. Preencheria o tempo livre que havia na minha agenda. E, uma vez que lá estava, aproveitaria, já que em meia hora iniciar-se-ia a segunda aula da Oficina. Arrisquei.

Ah, aquele dia! Não sei quantas vezes agradeci ao atencioso funcionário, que perdeu um bom tempo comigo. Fez, com essa sugestão, com que minha vida caminhasse em outra direção.

Descobri-me! Descobri amigos. Descobri-me escritora. E desde então,  vários livros publicados, sendo que um deles já está na 2ª. Edição: A TOCA DO URSO, CONTOS TCHECOS, O SEGREDO DE CADA UM, O ENREDO DE CADA UM, OUSADIAS, PAPEL, CANETA E AÇÃO e SINGRAR. Descobri que escrever nos leva adiante do nosso tempo, nos encoraja, amadurece sentimentos e percepções.

Esta manifestação de sentimentos que a escrita promove no nosso ser, levou-me para outros enfoques muito mais provocativos de maior frequência e valores, passei a coordenar uma das maiores e mais antigas exposições de arte infanto-juvenil internacional. Renasci. Renasci descobrindo o valor do ser humano.

Impressionante! O EscreViver me chacoalhou. Tive a chance de provar a mim, do que sou capaz.

Na Oficina do EscreViver a Orientadora Ana Maruggi inova a cada ano. Além nos atiçar com publicações de antologias, em 2023 entramos em novo projeto “Meu Contista Brasileiro”, onde cada um de nós é professor por um dia. Um bom desafio. Precisei recorrer à Biblioteca do Clube para conduzir análise do conto Jardim Selvagem de Lygia Fagundes Telles, conto que faz parte do livro Antes do Baile Verde. O exemplar estava devidamente encadernado em vermelho, capa dura, protegido contra violações de uso e do tempo. Surpreendi-me com a raridade do exemplar, estava autografado pela autora. Meu interesse cresceu, sobremaneira. Meu respeito foi tanto, que me aprofundei na pesquisa sobre a escritora e sobre a obra dela. Uma mulher forte, inteligente, carismática. A Oficina EscreViver fez mais do que me ensinar a escrita criativa, me deu asas, provocou minha criatividade, aguçou meu conhecimento.

Hoje o Departamento Cultural tem novos nomes na coordenação, novos cursos, novos caminhos.  E, o Clube, por sua vez, também mudou em vários pontos nessa área, efeitos da pandemia, efeitos do progresso, efeitos da tecnologia.

E eu? Continuo escrevendo no EscreViver, meu combustível. Eu e outros que sentem necessidade de preencher a alma com palavras.

Convido você sócio a conhecer os 46 livros editados pelos sócios da Oficina EscreviVer, e quem sabe, despertar o escritor que habita em você!

Estamos esperando novos escritores.


                                 



ESCREVIVER

Silvia Helena De Ávila Ballarati

2018


Nosso curso de Escrita Literária acontece às terças-feiras, entre 14:30hs e 17:30hs. São encontros.

Primeiramente trocamos informações, conversas descontraídas até que estejamos todos reunidos. Não existe muito rigor quanto ao horário de chegada, o que é bom, por propiciar um bate-papo informal, momento em que a gente descobre um pouquinho da vida dos colegas.

Sem que precisemos pedir, o funcionário da biblioteca traz um delicioso cafezinho, já adoçado. Outra característica de circunstâncias especiais, visto que hoje em dia, só em casas de famílias antigas serve-se o café assim, adoçado e em cafeteira térmica.

Os acompanhamentos do café variam, bolos, bolachas, salgadinhos, trazidos cada dia por um colega diferente. E quando todos esquecem, a professora Ana Maruggi abre seu armário secreto e nos presenteia com chocolates e mais chocolates! Ah! Vinhos! Temos tomado vinho à guisa de comemorações quaisquer.

A essa altura, lemos os contos produzidos em casa, afinal, temos tarefa e a cumprimos com prazer. Ouvimos as produções de cada um fazendo comentários e sugestões.  Depois passamos à atividade principal que é a produção de texto em sala de aula. Momento de silêncio e concentração.

Acho isso o mais difícil, produzir na hora, com tempo limitado, com começo, meio e fim e ainda ler para os colegas. O processo criativo é muito pessoal, há quem ache fácil escrever na aula sob pressão, outros preferem em casa, com tempo e tranquilidade.

Terminada a produção literária do dia, lemos novamente para os colegas, sempre tem um ou outro que não escuta direito, pede para repetir mais alto, e é só risada. Novos comentários e por fim recebemos explicações do dever de casa.

Ainda temos deliciosas brincadeiras para descontrair, sempre envolvendo a língua portuguesa. Textos onde todos escrevem uma frase, competição pelo maior número de palavras encontradas, palavras que rimam, “stop”, entre outras.

A saída pela biblioteca, em meio a livros e leitores, é sempre uma inspiração.

E assim nos despedimos, ansiosos pelo adorável compromisso da terça-feira seguinte.

 

                   


TRIBUTO AOS COLEGAS DO ESCREVIVER CLUBE AP

Oswaldo Romano

2020

 

Deixar este manifesto para depois, teria certamente vencido parte da emoção sentida desde o momento em que os conheci.                                           

Tenho pressa antes que vença a data de validade de continuar participando do grupo, destes jovens, meninas e meninos.

Surpresa seria não ter contado com estas amizades de soberbas qualidades, pois, todos reconhecem também a capacidade ímpar de comando da nossa monitora Ana Maria Maruggi, em agregar conteúdo humano, no ensino dos meninos, nem sempre dóceis.

Vejo que posso contar ao mundo que o bom supera o mau, e que há pessoas que buscam concentração de união, como ela, e dispostas a abraçar acontecimentos inesperados como os que temos recebido.

Um respeitável e merecido tributo aos meninos, meus companheiros, alguns surgidos como sentinelas à minha frente, acolhedores postados em sala, na espera de quem chega para recebê-los com saudosa alegria. Resolvi: que quero continuar chegando!

Isso é amor. Essa coisa maravilhosa que possuímos e que nos leva a uma só e grande paixão.  Paixão de realizar, escrever, conviver, pesquisar. Não sei se merecia tanta atenção, postadas na rede, notadas nas minhas faltas. Estava convalescendo, perdi festas, mas mereceram de mim muitas lembranças e algumas lágrimas, provas de saudades, nascidas entre a dor e o conforto de um momento bem lembrado. E o amor, é o sentimento que possuímos.  Deixo aqui o meu tributo a esse especial e amado grupo, grupo que minha idade o tem não como o último e sim como mais um, composto de sensíveis e amados companheiros.

 

roma@romano.com.br


Uma pedra diferente - Adriana S. Frosoni

 


Uma pedra diferente

 Adriana S. Frosoni

 

Bilu veio correndo desde a margem do riacho, balançando o rabo e sem latir, logo Nino imaginou que ele trazia algo na boca e estendeu a mão para ver o que era.

— Mais uma pedrinha para a nossa coleção? Esta é bem diferente das outras, hein! Vou guardar no bolso para o papai não ver. 

O pai de Nino achava que pedras eram muito pesadas para carregar, portanto, péssimas para colecionar. O menino estava aproveitando o resto da tarde para brincar com o Bilu que não parava de esfregar a pata e o focinho no bolso dele. 

— Bilu, você está curioso para ver a nossa pedrinha mais de perto, né? Mas temos que esperar um pouquinho…

Após comer os lanchinhos que a mãe trouxera para o piquenique, Nino finalmente encontrou o que estava procurando; era uma clareira um pouco protegida da vista do pai. Quando ele tirou a pedrinha do bolso e pôde ver de perto, levantou-a até a altura dos olhos e tomou um susto, mas ficou surpreso: era uma minúscula tartaruga e não uma pedra. Olhando bem de perto, ele percebeu que ela era menor do que o morango que a mamãe trouxe para o lanche.  Passou o dedo pela parte de cima do casco dela, sentindo as reentrâncias e saliências ásperas, com os olhos vidrados na sua descoberta num misto de curiosidade e encantamento. Ela era verde amarelada e tinha detalhes pretos, até este dia ele pensava que todas as tartarugas era cor verde-escuro acinzentado, como nos livros.

— Olha Bilu, é uma mini tartaruga e vai se chamar Tita. O que você acha? Vai morar na nossa coleção de pedras e a mamãe vai convencer o papai a deixar.

Nino estava tão entusiasmado com a descoberta que não conseguiu esperar chegar em casa e foi correndo mostrar à mãe, esquecendo do risco de tomar uma bronca do pai. Tita estava apavorada, recuou dentro de seu pequeno casco e esperou. Quando a mãe percebeu o que estava acontecendo, orientou Nino para que a colocasse no chão e esperasse até que ela se sentisse segura para emergir do casco. Depois de algum tempo, Tita apareceu trêmula e, corajosamente, se encaminhou para o riacho. 

Nino levou a mão para resgatá-la, mas a mãe abraçou-o segurando Bilu pela coleira também. E docemente ela disse aos dois:

— Perceberam como a Tita está determinada a voltar ao riacho? O que vocês acham que ela está procurando? — Como não obteve resposta, continuou. — Eu acho que ela está indo encontrar a tartaruga mãe, que deve estar desesperada para encontrá-la também.

Imediatamente Nino arregalou os olhos, soltou-se do abraço da mãe e disse:

— Bilu, me ajude seguir a Tita até o riacho, ela precisa achar a mamãe tartaruga. 

— Que ótima ideia, filho! Fico orgulhosa quando você protege os animais! Mas não demore muito, senão sua mãe é quem fica preocupada!


O JARDIM SELVAGEM - LYGIA FAGUNDES TELLES




O jardim secreto

Lygia Fagundes Telles


– Daniela é assim como um jardim selvagem — disse o tio Ed olhando para o teto.

– Como um jardim selvagem…

Tia Pombinha concordou fazendo uma cara muito esperta. E foi correndo buscar o maldito licor de cacau feito em casa. Passei a mão na tampa da caixa de marrom-glacê que ele trouxera. Era a segunda ou terceira vez que a presenteava com uma caixa igual, eu já sabia que aquele nome era como o papel dourado embrulhando simples castanhas açucaradas. Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim selvagem?

Foi o que lhe perguntei. Ele me olhou com um ar de gigante da montanha falando com a formiguinha.

– Jardim selvagem é um jardim selvagem, menina.

– Ah, bom — eu disse.

E aproveitei a entrada de tia Pombinha para fugir da sala. A tal caixa estava mesmo fechada, tão cedo não seria aberta. E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha visto uma visita guardá-lo na boca para depois cuspir. Na bacia, fingindo lavar as mãos.

Mais tarde, quando eu já enfiava a camisola para dormir, tia Pombinha entrou no meu quarto. Sentou-se na cama. A caixa de doces já devia estar enfurnada em alguma gaveta. Sovina, sovina.

– O Ed casado, imagine! Até parece mentira, o meu querido Ed casado há mais de uma semana. Mas por que não me avisou, Cristo-Rei! Como é que ele se casa assim, sem participar… Que loucura!

– Decerto não quis dar festa.

– Mas não seria preciso festa, eu só gostaria de saber — choramingou, fazendo bico. — Ainda na noite passada ele me apareceu no sonho…

– Apareceu? — perguntei metendo-me na cama.

Os sonhos de tia Pombinha eram todos horríveis, estava para chegar o dia em que viria anunciar que sonhara com alguma coisa que prestasse.

– Não me lembro bem como foi, ele logo sumiu no meio de outras pessoas.

Mas o que me deixou nervosa foi ter sonhado com dentes nessa mesma noite. Você sabe, não é nada bom sonhar com dentes.

– Tratar deles é pior ainda.

Sorriu sem vontade. Ficou toda sentimental quando resolveu me cobrir até o pescoço.

– Você agora me lembrou o Ed menino. Fui a mãezinha dele quando a nossa mãe morreu. E agora se casa assim de repente, sem convidar a família, como se tivesse vergonha da gente… Mas não é mesmo esquisito? E essa moça, Cristo-Rei? Ninguém sabe quem ela é…

– Tio Ed deve saber, ora.

Acho que ela se impressionou com minha resposta porque sossegou um pouco. Mas logo desatou a falar de novo com aquela fala aflita de quem vai pegar o trem, falava assim quando chegava a hora de viajar.

– Ele parece feliz, sem dúvida, mas ao mesmo tempo me olhou de um jeito… Era como se quisesse me dizer qualquer coisa e não tivesse coragem, senti isso com tanta força que meu coração até doeu, quis perguntar, O que foi, Ed! Pode me dizer o que foi? Mas ele só me olhava e não disse nada. Tive a impressão de que estava com medo.

– Com medo do quê?

– Não sei, não sei, mas foi como se eu estivesse vendo Ed menino outra vez. Tinha pavor do escuro, só queria dormir de luz acesa. Papai proibiu essa história de luz e não me deixou mais ir lá fazer companhia, achava que eu poderia estragá-lo com muito mimo. Mas uma noite não resisti e entrei escondida no quarto. Estava acordado, sentado na cama. Quer que eu fique aqui até você dormir?, perguntei.

Pode ir embora, ele disse, já não me importo mais de ficar no escuro. Então dei-lhe um beijo, como fiz hoje. Ele me abraçou e me olhou do mesmo jeito que me olhou agora, querendo confessar que estava com medo. Mas sem coragem de confessar.

Disfarcei um bocejo. E afastei as cobertas porque já estava transpirando. Quando minha tia anunciava uma história importante, na certa vinha alguma bobagem sem importância nenhuma. De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo, até no nosso limoeiro que dava às vezes uns limões adocicados. Não passava um dia sem falar nos tais pressentimentos.

– Mas por que ele tinha de ter medo?

Ela franziu a testa. Seus olhinhos redondos ficaram mais redondos ainda.

– Aí é que está… Quem é que pode saber? Ed sempre foi muito discreto, não é de se abrir com a gente, ele esconde. Que moça será essa?!

Lembrei-me então do que ele dissera, Daniela é como um jardim selvagem. Quis perguntar o que era um jardim selvagem. Mas tia Pombinha devia entender tanto quanto eu desses jardins.

– Ela é bonita, tia?

– Ed disse que é lindíssima. Mas não é tão jovem assim, parece que tem a idade dele, quase quarenta anos…

– E não é bom? Isso de ser meio velha.

Balançou a cabeça com ar de quem podia dizer ainda um montão de coisas sobre essa questão de idade. Mas preferia não dizer.

– Hoje de manhã, quando você estava na escola, a cozinheira deles passou por aqui, é amiga da Conceição. Contou que ela se veste nos melhores costureiros, só usa perfume francês, toca piano… Quando estiveram na chácara, nesse último fim de semana, ela tomou banho nua debaixo da cascata.

– Nua?

– Nuinha. Vão morar na chácara, ele mandou reformar tudo, diz que a casa ficou uma casa de cinema. E é isso que me preocupa, Ducha. Que fortuna não estarão gastando nessas loucuras? Cristo-Rei, que fortuna! Onde é que ele foi encontrar essa moça?

– Mas ele não é rico?

– Aí é que está… Ed não é tão rico quanto se pensa.

Dei de ombros. Nunca tinha pensado antes no assunto. Bocejei sem cerimônia. Tia Pombinha estava era com ciúme, havia muito dessas confusões nas famílias, eu mesma já tinha lido um caso parecido numa revista. Sabia até o nome do complexo, era um complexo de irmão com irmã. Afundei a cabeça no travesseiro.

Se queria tanto conversar, por que não se lembrou de trazer os doces? Para comer tudo escondido, não é?

– Deixa, tia. Você não tem nada com isso.

Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de unhas onduladas, cortadas rente. Passei a língua na palma das minhas mãos para umedecê-las. Sempre que olhava para as mãos dela, assim secas como se tivessem lidado com giz, precisava molhar as minhas.

– Diz que anda sempre com uma luva na mão direita, não tira nunca a luva dessa mão, nem dentro de casa.

Sentei-me na cama. Esse pedaço me interessava.

– Usa uma luva?

– Na mão direita. Diz que tem dúzias de luvas, cada qual de uma cor, combinando com o vestido.

– E não tira nem dentro de casa?

– Já amanhece com ela. Diz que teve um acidente com essa mão, deve ter ficado algum defeito…

– Mas por que não quer que vejam?

– Eu é que sei? Como Ed nem tocou nisso, fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam. Casado, imagine… Deve dar um marido exemplar, desde criança foi muito bonzinho, você precisava ver que pérola de menino! Uma verdadeira pérola…

Tia Pombinha ficou falando algum tempo ainda sobre a bondade do irmão, mas eu só pensava naquela nova tia que tomava banho pelada debaixo da cascata.

E que não tirava a luva da mão direita.

Na manhã de sábado, quando cheguei para o almoço, soube que ela passara em casa. Chutei minha pasta. As coisas que valiam a pena aconteciam sempre quando eu estava na escola. Tia Pombinha gaguejava, o pescoço fino cheio de manchas avermelhadas. Ficava assim que nem peru quando tinha uma emoção forte.

– Ah, você não imagina como é encantadora! Nunca vi uma beleza igual, que encanto de moça! Tão natural, tão simples e ao mesmo tempo tão elegante, tão bem cuidada… Foi tão carinhosa comigo!

Fiquei olhando para as pernas finas de tia Pombinha com as meias murchas cor de cenoura. Bom, então tudo tinha mudado.

– Quer dizer que a senhora gostou dela?

– Muito, fiquei mesmo cativada! E trouxe presentes, venha ver — disse puxando-me pelo braço. — Três cortes de seda finíssima para mim e para você uma boneca francesa… Loura, loura!

– Tenho ódio de boneca.

– Ducha! Você vai gostar dessa, é a coisa mais linda que já se viu, olha aí, não é linda?

Fiquei olhando a boneca dentro da caixa. Usava luvinhas de renda.

– Ela estava de luva?

– Estava. Uma luva verde, combinando com os sapatos. No começo a gente estranha a luva só naquela mão. Mas não é mesmo de se estranhar? Podia fazer uma plástica… Enfim, deve ter motivos. Um amor de moça!

A conversa no mês seguinte com a cozinheira de tio Ed me fez esquecer até os zeros sucessivos que tive em matemática. A cozinheira viera indagar se Conceição sabia de um bom emprego, desde a véspera estava desempregada. Tia Pombinha tinha ido ao mercado, pudemos falar à vontade enquanto Conceição fazia o almoço.

– Seu tio é muito bom, coitado. Gosto demais dele — começou ela enquanto beliscava um bolinho que Conceição tirara da frigideira. — Mas não combino com dona Daniela. Fazer aquilo com o pobre do cachorro, não me conformo!

– Que cachorro?

– O Kleber, lá da chácara. Um cachorro tão engraçadinho, coitado. Só porque ficou doente e ela achou que ele estava sofrendo… Tem cabimento fazer isso com um cachorro?

– Mas o que foi que ela fez?

– Deu um tiro nele.

– Um tiro?

– Bem na cabeça. Encostou o revólver na orelha e pum! matou assim como se fosse uma brincadeira… Não era para ninguém ver, nem o seu tio, que estava na cidade. Mas eu vi com estes olhos que a terra há de comer, ela pegou o revólver com aquela mão enluvada e atirou no pobrezinho, morreu ali mesmo, sem um gemido… Perguntei depois, Mas por que a senhora fez isso? O bicho é de Deus, não se faz com um bicho de Deus uma coisa dessas! Ela então respondeu que o Kleber estava sofrendo muito, que a morte para ele era um descanso.

– Disse isso?

A mulher deu uma dentada no bolinho. Ficou soprando um pouco porque estava quente como o diabo, eu mesma não conseguia dar cabo do meu.

– Disse que a vida tinha que ser… Ah! não lembro. Mas falou em música, que tudo tinha que ser como uma música, foi isso. A doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o instrumento pra não tocar mais desafinado.

Até que foi muito educada comigo, viu que eu estava nervosa e quis me explicar tudo direitinho. Mas podia ficar me explicando até gastar todo o cuspe que eu nunca ia entender. O que entendi muito bem foi que o Kleber estava morto. O pobre.

– Mas ela gostava dele?

– Acho que sim, estavam sempre juntos. Quando ele ainda estava bom, ia tão alegrinho tomar banho com ela na cascata… Só faltava falar, aquele cachorro.

– Ela perguntou por que você ia embora?

– Não. Não perguntou nada. Nunca me tratou mal, justiça seja feita, sempre foi muito delicada com todos os empregados. Mas não sei, eu me aborreci por demais… isso de matar o Kleber! E montar em pelo como monta, feito índio, e tomar banho sem roupa… Uma noite a mesa do jantar virou inteira. O doutor disse que foi ele que esbarrou no pé da mesa, pra não cair, agarrou a toalha e veio tudo pro chão. Mas ninguém me tira da cabeça que quem virou a mesa foi ela.

– Por quê? Por que fez isso?

– Quando fica brava… A gente tem vontade até de entrar num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor.

– Não tira a luva, nunca?

– Capaz!… Acho que nem o doutor viu aquela mão. Já amanhece de luvinha.

Até na cascata usa uma luva de borracha.

Conceição veio interromper a conversa para mostrar à amiga uma bolsa que tinha comprado. Ficaram as duas cochichando sobre homens. Quando tia Pombinha chegou, a mulher já estava se despedindo, o que foi uma sorte.

Não falei com ninguém sobre essa história. Mas levei o maior susto do mundo quando dois meses depois tia Daniela telefonou da chácara para avisar que tio Ed estava muito doente. Tia Pombinha começou a tremer. O pescoço ficou uma mancha só.

– Deve ser a úlcera que voltou… Meu querido Ed! Cristo-Rei, será que é mesmo grave? Ducha, depressa, vai buscar o calmante, quinze gotas num copo de água açucarada… Cristo-Rei! A úlcera…

Contei cinquenta. E carreguei no açúcar para disfarçar o gosto. Antes de levar o copo, despejei ainda mais umas gotas.

Assim que acordou, à hora do jantar, desandou nos telefonemas avisando à velharia da irmandade que o “menino estava doente”.

– E tia Daniela? — perguntei quando ela parou de choramingar.

– Tem sido dedicadíssima, não sai de perto dele um só minuto. Falei também com o médico, disse que nunca encontrou criatura tão eficiente, tem sido uma enfermeira e tanto. É o que me deixa mais descansada. Meu querido menino…

Quando Conceição veio me anunciar que ele tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto que levara quando me disseram que ele estava doente fora um susto maior ainda. Eu chegava da escola quando Conceição veio correndo ao meu encontro.

– Seu tio Ed se matou hoje de manhã! Se matou com um tiro! Larguei a pasta.

– Um tiro no ouvido?

– Lá sei se foi no ouvido, não me contaram mais nada, dona Pombinha parecia louca, mal podia falar. Já seguiu com as irmãs para a chácara, foi um tamanho berreiro! Todas berravam ao mesmo tempo, um horror!

Dessa vez achei muito bom que eu estivesse na escola quando chegou a notícia. Conceição enxugou duas lágrimas na barra do avental enquanto fritava batatas. Peguei uma batata que caíra da frigideira e afundei-a no sal. Estava quase crua.

– Mas por que ele fez isso, Conceição?

– Ninguém sabe. Não deixou carta, nada, ninguém sabe! Vai ver que foi por causa da doença, não é mesmo? Você também não acha que foi por causa da doença?

– Acho — concordei, enquanto esperava que caísse outra batata da frigideira.

Pensava agora em tia Daniela metida num vestido preto. E de luva também preta, como não podia deixar de ser.


Este foi o conto escolhido por Maria Luiza Malina. Ela fará apresentação de pesquisas e estudos desta autora e deste conto - no dia 25 de Abril de 2023 no ExcreViver:


O JARDIM SELVAGEM

LYGIA FAGUNDES TELLES



– Daniela é assim como um jardim selvagem — disse o tio Ed olhando para o teto.

– Como um jardim selvagem…

Tia Pombinha concordou fazendo uma cara muito esperta. E foi correndo buscar o maldito licor de cacau feito em casa. Passei a mão na tampa da caixa de marrom-glacê que ele trouxera. Era a segunda ou terceira vez que a presenteava com uma caixa igual, eu já sabia que aquele nome era como o papel dourado embrulhando simples castanhas açucaradas. Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim selvagem?

Foi o que lhe perguntei. Ele me olhou com um ar de gigante da montanha falando com a formiguinha.

– Jardim selvagem é um jardim selvagem, menina.

– Ah, bom — eu disse.

E aproveitei a entrada de tia Pombinha para fugir da sala. A tal caixa estava mesmo fechada, tão cedo não seria aberta. E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha visto uma visita guardá-lo na boca para depois cuspir. Na bacia, fingindo lavar as mãos.

Mais tarde, quando eu já enfiava a camisola para dormir, tia Pombinha entrou no meu quarto. Sentou-se na cama. A caixa de doces já devia estar enfurnada em alguma gaveta. Sovina, sovina.

– O Ed casado, imagine! Até parece mentira, o meu querido Ed casado há mais de uma semana. Mas por que não me avisou, Cristo-Rei! Como é que ele se casa assim, sem participar… Que loucura!

– Decerto não quis dar festa.

– Mas não seria preciso festa, eu só gostaria de saber — choramingou, fazendo bico. — Ainda na noite passada ele me apareceu no sonho…

– Apareceu? — perguntei metendo-me na cama.

Os sonhos de tia Pombinha eram todos horríveis, estava para chegar o dia em que viria anunciar que sonhara com alguma coisa que prestasse.

– Não me lembro bem como foi, ele logo sumiu no meio de outras pessoas.

Mas o que me deixou nervosa foi ter sonhado com dentes nessa mesma noite. Você sabe, não é nada bom sonhar com dentes.

– Tratar deles é pior ainda.

Sorriu sem vontade. Ficou toda sentimental quando resolveu me cobrir até o pescoço.

– Você agora me lembrou o Ed menino. Fui a mãezinha dele quando a nossa mãe morreu. E agora se casa assim de repente, sem convidar a família, como se tivesse vergonha da gente… Mas não é mesmo esquisito? E essa moça, Cristo-Rei? Ninguém sabe quem ela é…

– Tio Ed deve saber, ora.

Acho que ela se impressionou com minha resposta porque sossegou um pouco. Mas logo desatou a falar de novo com aquela fala aflita de quem vai pegar o trem, falava assim quando chegava a hora de viajar.

– Ele parece feliz, sem dúvida, mas ao mesmo tempo me olhou de um jeito… Era como se quisesse me dizer qualquer coisa e não tivesse coragem, senti isso com tanta força que meu coração até doeu, quis perguntar, O que foi, Ed! Pode me dizer o que foi? Mas ele só me olhava e não disse nada. Tive a impressão de que estava com medo.

– Com medo do quê?

– Não sei, não sei, mas foi como se eu estivesse vendo Ed menino outra vez. Tinha pavor do escuro, só queria dormir de luz acesa. Papai proibiu essa história de luz e não me deixou mais ir lá fazer companhia, achava que eu poderia estragá-lo com muito mimo. Mas uma noite não resisti e entrei escondida no quarto. Estava acordado, sentado na cama. Quer que eu fique aqui até você dormir?, perguntei.

Pode ir embora, ele disse, já não me importo mais de ficar no escuro. Então dei-lhe um beijo, como fiz hoje. Ele me abraçou e me olhou do mesmo jeito que me olhou agora, querendo confessar que estava com medo. Mas sem coragem de confessar.

Disfarcei um bocejo. E afastei as cobertas porque já estava transpirando. Quando minha tia anunciava uma história importante, na certa vinha alguma bobagem sem importância nenhuma. De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo, até no nosso limoeiro que dava às vezes uns limões adocicados. Não passava um dia sem falar nos tais pressentimentos.

– Mas por que ele tinha de ter medo?

Ela franziu a testa. Seus olhinhos redondos ficaram mais redondos ainda.

– Aí é que está… Quem é que pode saber? Ed sempre foi muito discreto, não é de se abrir com a gente, ele esconde. Que moça será essa?!

Lembrei-me então do que ele dissera, Daniela é como um jardim selvagem. Quis perguntar o que era um jardim selvagem. Mas tia Pombinha devia entender tanto quanto eu desses jardins.

– Ela é bonita, tia?

– Ed disse que é lindíssima. Mas não é tão jovem assim, parece que tem a idade dele, quase quarenta anos…

– E não é bom? Isso de ser meio velha.

Balançou a cabeça com ar de quem podia dizer ainda um montão de coisas sobre essa questão de idade. Mas preferia não dizer.

– Hoje de manhã, quando você estava na escola, a cozinheira deles passou por aqui, é amiga da Conceição. Contou que ela se veste nos melhores costureiros, só usa perfume francês, toca piano… Quando estiveram na chácara, nesse último fim de semana, ela tomou banho nua debaixo da cascata.

– Nua?

– Nuinha. Vão morar na chácara, ele mandou reformar tudo, diz que a casa ficou uma casa de cinema. E é isso que me preocupa, Ducha. Que fortuna não estarão gastando nessas loucuras? Cristo-Rei, que fortuna! Onde é que ele foi encontrar essa moça?

– Mas ele não é rico?

– Aí é que está… Ed não é tão rico quanto se pensa.

Dei de ombros. Nunca tinha pensado antes no assunto. Bocejei sem cerimônia. Tia Pombinha estava era com ciúme, havia muito dessas confusões nas famílias, eu mesma já tinha lido um caso parecido numa revista. Sabia até o nome do complexo, era um complexo de irmão com irmã. Afundei a cabeça no travesseiro.

Se queria tanto conversar, por que não se lembrou de trazer os doces? Para comer tudo escondido, não é?

– Deixa, tia. Você não tem nada com isso.

Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de unhas onduladas, cortadas rente. Passei a língua na palma das minhas mãos para umedecê-las. Sempre que olhava para as mãos dela, assim secas como se tivessem lidado com giz, precisava molhar as minhas.

– Diz que anda sempre com uma luva na mão direita, não tira nunca a luva dessa mão, nem dentro de casa.

Sentei-me na cama. Esse pedaço me interessava.

– Usa uma luva?

– Na mão direita. Diz que tem dúzias de luvas, cada qual de uma cor, combinando com o vestido.

– E não tira nem dentro de casa?

– Já amanhece com ela. Diz que teve um acidente com essa mão, deve ter ficado algum defeito…

– Mas por que não quer que vejam?

– Eu é que sei? Como Ed nem tocou nisso, fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam. Casado, imagine… Deve dar um marido exemplar, desde criança foi muito bonzinho, você precisava ver que pérola de menino! Uma verdadeira pérola…

Tia Pombinha ficou falando algum tempo ainda sobre a bondade do irmão, mas eu só pensava naquela nova tia que tomava banho pelada debaixo da cascata.

E que não tirava a luva da mão direita.

Na manhã de sábado, quando cheguei para o almoço, soube que ela passara em casa. Chutei minha pasta. As coisas que valiam a pena aconteciam sempre quando eu estava na escola. Tia Pombinha gaguejava, o pescoço fino cheio de manchas avermelhadas. Ficava assim que nem peru quando tinha uma emoção forte.

– Ah, você não imagina como é encantadora! Nunca vi uma beleza igual, que encanto de moça! Tão natural, tão simples e ao mesmo tempo tão elegante, tão bem cuidada… Foi tão carinhosa comigo!

Fiquei olhando para as pernas finas de tia Pombinha com as meias murchas cor de cenoura. Bom, então tudo tinha mudado.

– Quer dizer que a senhora gostou dela?

– Muito, fiquei mesmo cativada! E trouxe presentes, venha ver — disse puxando-me pelo braço. — Três cortes de seda finíssima para mim e para você uma boneca francesa… Loura, loura!

– Tenho ódio de boneca.

– Ducha! Você vai gostar dessa, é a coisa mais linda que já se viu, olha aí, não é linda?

Fiquei olhando a boneca dentro da caixa. Usava luvinhas de renda.

– Ela estava de luva?

– Estava. Uma luva verde, combinando com os sapatos. No começo a gente estranha a luva só naquela mão. Mas não é mesmo de se estranhar? Podia fazer uma plástica… Enfim, deve ter motivos. Um amor de moça!

A conversa no mês seguinte com a cozinheira de tio Ed me fez esquecer até os zeros sucessivos que tive em matemática. A cozinheira viera indagar se Conceição sabia de um bom emprego, desde a véspera estava desempregada. Tia Pombinha tinha ido ao mercado, pudemos falar à vontade enquanto Conceição fazia o almoço.

– Seu tio é muito bom, coitado. Gosto demais dele — começou ela enquanto beliscava um bolinho que Conceição tirara da frigideira. — Mas não combino com dona Daniela. Fazer aquilo com o pobre do cachorro, não me conformo!

– Que cachorro?

– O Kleber, lá da chácara. Um cachorro tão engraçadinho, coitado. Só porque ficou doente e ela achou que ele estava sofrendo… Tem cabimento fazer isso com um cachorro?

– Mas o que foi que ela fez?

– Deu um tiro nele.

– Um tiro?

– Bem na cabeça. Encostou o revólver na orelha e pum! matou assim como se fosse uma brincadeira… Não era para ninguém ver, nem o seu tio, que estava na cidade. Mas eu vi com estes olhos que a terra há de comer, ela pegou o revólver com aquela mão enluvada e atirou no pobrezinho, morreu ali mesmo, sem um gemido… Perguntei depois, Mas por que a senhora fez isso? O bicho é de Deus, não se faz com um bicho de Deus uma coisa dessas! Ela então respondeu que o Kleber estava sofrendo muito, que a morte para ele era um descanso.

– Disse isso?

A mulher deu uma dentada no bolinho. Ficou soprando um pouco porque estava quente como o diabo, eu mesma não conseguia dar cabo do meu.

– Disse que a vida tinha que ser… Ah! não lembro. Mas falou em música, que tudo tinha que ser como uma música, foi isso. A doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o instrumento pra não tocar mais desafinado.

Até que foi muito educada comigo, viu que eu estava nervosa e quis me explicar tudo direitinho. Mas podia ficar me explicando até gastar todo o cuspe que eu nunca ia entender. O que entendi muito bem foi que o Kleber estava morto. O pobre.

– Mas ela gostava dele?

– Acho que sim, estavam sempre juntos. Quando ele ainda estava bom, ia tão alegrinho tomar banho com ela na cascata… Só faltava falar, aquele cachorro.

– Ela perguntou por que você ia embora?

– Não. Não perguntou nada. Nunca me tratou mal, justiça seja feita, sempre foi muito delicada com todos os empregados. Mas não sei, eu me aborreci por demais… isso de matar o Kleber! E montar em pelo como monta, feito índio, e tomar banho sem roupa… Uma noite a mesa do jantar virou inteira. O doutor disse que foi ele que esbarrou no pé da mesa, pra não cair, agarrou a toalha e veio tudo pro chão. Mas ninguém me tira da cabeça que quem virou a mesa foi ela.

– Por quê? Por que fez isso?

– Quando fica brava… A gente tem vontade até de entrar num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor.

– Não tira a luva, nunca?

– Capaz!… Acho que nem o doutor viu aquela mão. Já amanhece de luvinha.

Até na cascata usa uma luva de borracha.

Conceição veio interromper a conversa para mostrar à amiga uma bolsa que tinha comprado. Ficaram as duas cochichando sobre homens. Quando tia Pombinha chegou, a mulher já estava se despedindo, o que foi uma sorte.

Não falei com ninguém sobre essa história. Mas levei o maior susto do mundo quando dois meses depois tia Daniela telefonou da chácara para avisar que tio Ed estava muito doente. Tia Pombinha começou a tremer. O pescoço ficou uma mancha só.

– Deve ser a úlcera que voltou… Meu querido Ed! Cristo-Rei, será que é mesmo grave? Ducha, depressa, vai buscar o calmante, quinze gotas num copo de água açucarada… Cristo-Rei! A úlcera…

Contei cinquenta. E carreguei no açúcar para disfarçar o gosto. Antes de levar o copo, despejei ainda mais umas gotas.

Assim que acordou, à hora do jantar, desandou nos telefonemas avisando à velharia da irmandade que o “menino estava doente”.

– E tia Daniela? — perguntei quando ela parou de choramingar.

– Tem sido dedicadíssima, não sai de perto dele um só minuto. Falei também com o médico, disse que nunca encontrou criatura tão eficiente, tem sido uma enfermeira e tanto. É o que me deixa mais descansada. Meu querido menino…

Quando Conceição veio me anunciar que ele tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto que levara quando me disseram que ele estava doente fora um susto maior ainda. Eu chegava da escola quando Conceição veio correndo ao meu encontro.

– Seu tio Ed se matou hoje de manhã! Se matou com um tiro! Larguei a pasta.

– Um tiro no ouvido?

– Lá sei se foi no ouvido, não me contaram mais nada, dona Pombinha parecia louca, mal podia falar. Já seguiu com as irmãs para a chácara, foi um tamanho berreiro! Todas berravam ao mesmo tempo, um horror!

Dessa vez achei muito bom que eu estivesse na escola quando chegou a notícia. Conceição enxugou duas lágrimas na barra do avental enquanto fritava batatas. Peguei uma batata que caíra da frigideira e afundei-a no sal. Estava quase crua.

– Mas por que ele fez isso, Conceição?

– Ninguém sabe. Não deixou carta, nada, ninguém sabe! Vai ver que foi por causa da doença, não é mesmo? Você também não acha que foi por causa da doença?

– Acho — concordei, enquanto esperava que caísse outra batata da frigideira.

Pensava agora em tia Daniela metida num vestido preto. E de luva também preta, como não podia deixar de ser.


FIM


SE PREFERIR OUVIR O CONTO:

O JARDIM SELVAGEM