QUEM É AMÓS OZ ? - Ises Abrahamsohn

 

QUEM É AMÓS OZ ?

Ises Abrahamsohn

A Ises encontrou esta interessante matéria, que reproduzimos aqui tal e qual o original:


O merceeiro e a musa

Em texto exclusivo, escritora israelense presta homenagem a seu conterrâneo Amós Oz, morto em dezembro


O escritor Amós Oz (1939-2018) em Arad, cidade onde vivia, 

no deserto do Negev, em Israel Magnum Photos/Fotoarena


A morte de um grande escritor é a grande hora dos clichês. Enquanto o escritor está vivo, ele pode lutar contra os clichês, combater com veemência todo uso fajuto e enfeitado das palavras. Porém, no momento em que o escritor morre — e, sim, até mesmo grandes escritores, como Amós Oz, morrem —, nesse mesmo momento os clichês saem do esconderijo e projetam-se à frente. O escritor já não está lá para detê-los.

Assim, logo após sua morte, já se coroava a cabeça de Amós Oz com adjetivos pretensiosos — “profeta”, “sacerdote”, “líder supremo”. Mas o próprio Amós Oz, quando, pena em punho, ainda podia defender a verdadeira natureza das coisas, não se considerava um profeta. Ele abominava a romantização do processo de escrever e, na maioria das vezes, olhava para o endeusamento dos artistas com grande dose de ironia. Aqui não se trata apenas de modéstia, conquanto Oz tenha sido uma pessoa modesta. 

A história de sua vida é a de uma busca permanente por um cotidiano simples, e um afastamento de tudo que é superadornado e kitsch

Começou sua vida na Jerusalém pobre da época que antecedeu a criação do Estado de Israel, e no período em que a cidade esteve cercada pelo exército jordaniano chegou a passar a vergonha da fome. Com catorze anos de idade mudou-se, sozinho, de Jerusalém para um kibutz, onde o estilo de vida é de modéstia material. Do kibutz passou para o deserto, terra árida e desprovida de prazeres materiais e de efervescência cultural. A própria história de sua vida é a de uma busca permanente por um cotidiano simples, e um afastamento de tudo que é superadornado e kitsch. Mas não foi por modéstia que Amós Oz se afastou das coroas de louros com que se tentou enfeitá-lo. Sua repulsa ao endeusamento de artistas tem origem mais profunda: uma motivação ética. Está ligada, para mim, à essência moral que existe no ato de escrever e, não menos que isso, no ato de ler.

Zombando das musas

Comecemos pelo ato de escrever. Um sem-número de obras artísticas já nos descreveram esse momento, no qual o artista se senta à mesa de trabalho e começa a criar. Na maioria absoluta dessas obras, atribui-se a esse momento um caráter elevado, milagroso. As próprias musas, em pessoa, pairam no recinto e concedem a graça de sua inspiração à mão que escreve. É assim que a maior parte do público enxerga os artistas (e daí as perguntas insossas do tipo “em qual hora do dia você escreve?” ou “com que tipo de caneta você gosta de escrever?”; daí as visitas às casas de grandes artistas, como se em algum lugar entre as paredes da casa ainda se esconda alguma musa esquecida que talvez possamos descobrir). E também, reconheçamos, é assim que os próprios artistas gostam de descrever aquele momento, quando atribuem ao processo de criação uma dimensão mítica, mágica, que os enobrece e os posiciona além do restante das pessoas, meros mortais. Oz zomba dessa romantização. Dessa diferenciação entre o homem que cria, inspirado pela musa, e o homem “simples”.

Em seu último livro, Do que é feita a maçã? [no prelo pela Companhia das Letras], Oz conversa com Shira Hadad, uma editora de seus livros. Quando ela lhe pergunta sobre o processo da escrita, ele recusa se cobrir com o manto real da “sublime inspiração” e prefere o uniforme da classe trabalhadora: “Amós, o que você está fazendo é parecido com o trabalho de um merceeiro. Você chega de manhã, abre a loja, fica sentado e espera por clientes. Se eles vierem, é um dia bom. Se não houver clientes, você assim mesmo está fazendo seu trabalho ao ficar lá esperando”.

Oz considera a curiosidade uma postura moral. Com isso, ele difere de escritores que odeiam gente, como Michel Houellebecq

Vale a pena nos determos um pouco nessa resposta. A romantização do processo de escrever é convertida aqui numa áspera atividade cotidiana, num trabalho que não tem um pingo de brilhantismo. Oz está falando de uma presença, mas está claro que não se trata apenas de presença física. Assim como uma mãe que está com seus filhos, mas fica o tempo todo ao telefone, não está, na verdade, presente, assim também se refere Oz à presença em seu significado mais profundo — uma abertura total ao que se vivencia para além da esquina. Atenção total ao que está presente — e também, talvez, ao que não está. Karl Marx mencionou o “trabalho alienado” como a situação de separação entre o homem que cria e a propriedade do produto dessa criação, separação que isola, erradica do produto o investimento libidinal que nele foi feito. Atualmente, o que nos aliena do produto de nossas ações é nossa tendência permanente de nos deixarmos levar por alguma outra coisa — uma conversa ao telefone, um sms, um e-mail, um artigo num site qualquer. Estamos onde estamos, sem estarmos. O processo de escrever não comporta essa ambivalência, ele nos obriga a uma presença absoluta. 

Primeiros mandamentos

Oz desnuda o processo de escrever de todos esses clichês empolados — um raio de sol pousou na cabeça do escritor, o vento agita os cachos do poeta, a mão do dramaturgo dança sobre a folha de papel etc. Em vez dessas expressões floridas e românticas, ele  apresenta duas exigências simples à pessoa que escreve: dois primeiros mandamentos. O primeiro — esteja presente. O segundo — seja curioso.

É assim que ele o declara em Do que é feita a maçã?: “A curiosidade não só é uma condição necessária a todo trabalho intelectual, é também uma qualidade moral. Talvez seja também a dimensão moral da literatura”.

Pode-se perfeitamente questionar essa frase. Sem dúvida a curiosidade é necessária para a atividade da escrita, sem dúvida ela a impulsiona, mas será também uma dimensão moral? Pensem, por exemplo, no modo como motoristas reduzem a velocidade na rua para olhar um acidente que ocorreu na outra pista. Será que essa curiosidade — “O que aconteceu ali? Alguém se feriu? O carro pegou fogo?” — é testemunho da vontade humana de prestar ajuda, ou, quem sabe, de uma mórbida bisbilhotice? Será que nosso interesse pelo mexerico — que Oz, em De amor e trevas [Companhia das Letras, 2005], definiu como “primo da literatura” — se origina de nossa preocupação com os outros ou de uma compulsão ao voyeurismo? E foi o próprio Oz quem disse: “Contar um segredo a um escritor é como abraçar-se a um punguista”. De fato o larápio está curioso por saber o que há no meu bolso, o que é isso que mantenho junto a meu peito; mas para nós está claro que essa curiosidade do punguista não pode de forma alguma ser considerada moral, pois ela está dirigida somente à satisfação dele — o outro é um objeto da satisfação de suas necessidade, e nada mais.

Mesmo assim, Oz considera a curiosidade uma postura moral. Com isso, a meu ver, ele difere de escritores que odeiam gente, como o francês Michel Houellebecq. Houellebecq é uma pessoa curiosa, mas a curiosidade dele parece a de um assassino em série que corta suas vítimas em pedaços para verificar “o que tem lá dentro, exatamente”. Para escritores que odeiam as pessoas, a curiosidade é um escalpelo que eles usam para cortar e ferir a condição humana. Não vem acompanhada de compaixão, pelo contrário. É parecida com a curiosidade de um gato em relação a um pássaro.

A curiosidade de Amós Oz é diferente. Não é um voyeurismo frio e divertido, mas um interesse humano que é o fundamento mesmo da empatia. Uma postura quase infantil, como a que levou minha filha de quatro anos, esta semana, a parar no meio da rua e perguntar: “Mãe, por que ele está chorando?”. “Quem está chorando?”, perguntei, sem parar de andar, com pressa de chegar à loja antes que ela fechasse. “Presta atenção, mãe, dá para ouvir atrás da janela que tem um menino chorando. Por que ele está chorando?”

Não respondi à minha filha na rua, naquela manhã, nesta semana. Eu estava apressada demais. Mas acho que Amós Oz teria parado para, junto com ela, refletir sobre essa pergunta. Ou, nas palavras do próprio Oz a Shira Hadad — “Eu penso que há uma dimensão moral em outro sentido: a de se pôr, você mesmo, por algumas horas, debaixo da pele de outra pessoa, ou calçando os sapatos de outra pessoa. Isso tem um peso moral indireto, não tão grande assim, não vamos exagerar. Mas eu realmente acho que um homem curioso é um cônjuge um pouco melhor do que um homem não curioso, e também um pai um pouco melhor. Não ria de mim, mas penso que um homem curioso é até mesmo um motorista um pouco melhor na rua ou na estrada do que um homem não curioso, porque ele se pergunta o que quem está dirigindo na faixa paralela é capaz de fazer de repente. Me parece que o homem curioso é também um amante muito melhor do que um homem que não tem curiosidade”.

Um empreendimento ético

Assim, de acordo com Oz, o significado moral do ato de escrever está no fato de que ele obriga quem escreve a projetar-se de sua própria pele e ver o mundo pelos olhos dos outros. Um homem branco e privilegiado tem de abrir mão de todos os seus privilégios quando descreve a figura de uma mulher explorada, e imaginar o que significa ser mulher num mundo de homens. Se não conseguir compreender, verdadeira e sinceramente, como uma mulher vivencia o mundo, vai fracassar em seu trabalho literário.

O empreendimento literário de Oz, portanto, é também um empreendimento ético. Na sociedade israelense, na qual Oz nasceu e na qual criou sua obra, essa dimensão ética também tem implicação política. A narrativa israelense baseia-se em grande medida nos milhares de anos de uma dolorosa história judaica. Os judeus foram vítimas da história durante 2 mil anos. Hoje, em plena existência do Estado de Israel, muitos de nós ainda nos consideramos vítimas de agressões externas. Assim, para amplos segmentos do público israelense, as alegações dos palestinos não são mais que uma reencarnação do antigo antissemitismo. A demonização do outro lado nesse conflito nos é instilada por políticos da direita, para quem o único ponto de vista cabível na história é o nosso.

E eis que, nessa narrativa única, ouve-se uma voz dissidente. Amós Oz, com sua maldita curiosidade, insiste em formular para a sociedade israelense a narrativa sionista através do ponto de vista dos palestinos. Isso não quer dizer que não era sionista — Oz acreditava que os judeus têm direito a seu próprio Estado. Mas o sionismo dele não se originava na anulação do lado palestino. Ao mesmo tempo que desejava a existência do Estado de Israel, era capaz de ouvir o clamor do sofrimento palestino, reconhecê-lo, e buscar uma solução que concedesse aos dois lados o direito de existir. Seu penúltimo livro, Como curar um fanático, foi todo dedicado a esse objetivo.

Esteja presente, diz Oz a quem pretende escrever, seja curioso. Mas na verdade essas duas exigências — que têm um significado ético, estético e político — não se dirigem apenas à pessoa que escreve. Não menos importante, elas se dirigem à pessoa que lê. O processo da escrita não estará completo se o escritor não se colocar na pele de seus personagens — personagens cuja pele tem cor diferente da pele dele, cuja religião, nacionalidade, classe e cujo gênero são diferentes dos dele. E o processo da leitura não estará completo se o leitor não se deixar envolver, por completo, no ponto de vista dos personagens do livro. 

Amós Oz insiste em formular para a sociedade israelense a narrativa sionista do ponto de vista dos palestinos

Como leitores, nós choramos com nossas próprias lágrimas as dores dos personagens nas páginas do livro. Pensamos neles muito tempo depois de fecharmos o livro. Não nos lembramos deles menos do que de pessoas reais, e às vezes até mais. Claro, pode-se alegar que isso é apenas um reflexo narcisista de nós mesmos, que olhamos para o livro e nos deliciamos da mesma forma como Narciso olha para as águas do lago e se delicia com sua própria imagem. Mas as figuras no livro, embora algumas delas tenham coisas em comum conosco, não somos nós. Parecem-se conosco em certos aspectos, e diferem de nós em outros. E esta é a essência do poder da empatia — ter sentimentos em relação ao outro, mas lembrando o tempo todo que o outro não sou eu, é diferente de mim, tem existência própria. 

Escrevo estas palavras um mês após a morte de Oz, em dezembro de 2018. No decorrer deste último mês o mundo literário israelense deu expressão ao significado dessa perda. Houve quem se lançasse sobre a vaca sagrada para abatê-la. Muitos críticos literários quiseram ser os primeiros a declarar que “ele na verdade não era tudo isso”. Outros continuaram a louvar, glorificar, exaltar, elevar. A morte de um escritor eminente suscita geralmente essas manifestações, que vão de um culto sem limites a uma entusiasta crucificação. Mas a exigência ética de Oz proíbe que se a divinize, que se lhe atribua uma dimensão mítica, como se somente uma pessoa abençoada pelas musas fosse capaz de ver o mundo com esses olhos. A exigência ética de Oz diz respeito a toda pessoa que escreve, e não menos importante do que isso — a toda pessoa que lê. Esteja presente, seja curioso. [Tradução de Paulo Geiger]  

 

Um comentário:


  1. Quero lembrar que o nome da autora do artigo, uma escritora de origem israelense é :

    Ayelet Gundar Goshen

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