Este texto - igualmente extraordinário - foi o romancinho de Oswaldo Lopes. Vencedor de uma série de concursos do EscreViver, eu digo que gostaria de ter oportunidade de premiar mais um em primeiro lugar.
VIDA PARA SER VIVIDA
Oswaldo
U. Lopes
Eulália
mora sozinha, não vive sozinha. Parece jogo de palavras, mas é um jogo da vida.
A Fazenda São Carlos era da família fazia muito tempo e com o crescimento de
Jaú, ficara às portas e depois, claro, dentro da cidade.
Filha
de Arminda, neta de Antônia, bisneta de Zulmira, não importava quem casara com
quem, a força vinha da linhagem feminina e passava de mãe para filha. A parca
era seletiva naqueles cantos e matava os homens relativamente jovens e
cultivava viúvas ainda moças e de excelente aptidão para tomar conta de terras
que os mortos iam somando. Eulália De Queiroz Andrade sempre soube que o De era
ligado à terra, dono dela, assim como o De
francês ou o Von alemão e mesmo o
Van holandês. Casara com Joaquim Antônio
Soares Andrade e, bem se vê, nem precisou mexer no nome que o dele já era
Andrade. Joaquim Antônio fez o que era requerido, juntou terra ao patrimônio
dela e faleceu aos 57 anos.
Sua
mãe Arminda de Queiroz Andrade casara com Alberto Dumont Andrade e,
coincidência, também não precisara mudar de nome.
Eulália
não parecia destinada ao papel matriarcal que se seguia religiosamente na
família, desde sempre, bastando olhar o retrato da Baronesa Clotilde tatara qualquer
coisa que muitos consideravam a matriarca mais antiga da família, a primeira que
sabia onde começavam e ficavam as terras De Queiroz.
Era
a mais jovem de três irmãos e a diferença de idade não era pouca. Luciano, o agrônomo,
era quinze anos mais velho, Viviane, a médica, era doze anos e de resto a casa
era habitada por gente séria e sisuda. Personagens austeros que pouco
combinavam com sua pouca idade.
O destino tivera que manobrar bastante para
colocá-la junto de Arminda, Antônia, Zulmira e Clotilde. Dele ninguém escapa, tendo os necessários
genes e adquirindo as outras qualidades com o tempo. A tragédia ia tirar
Luciano do caminho. Viviane se casou com a medicina, com a neuropediatra em
particular, e não cabia nesse mundo de terras e propriedades.
Houvera
loteamentos, repartições e ela herdara o núcleo principal com dez alqueires a
sua volta. No campo, podia parecer pouco, dentro da cidade valia muito e era
muito bem aproveitado.
A
casa antiga estava corretamente conservada. Era linda, varandão, quarto de
hospedes dando na varanda e capela na extremidade. E que capela. Quando era
aberta para visitação da população em geral, e isso ocorria no Natal e na Páscoa,
o deslumbramento era completo. Tinha o tamanho de uma pequena igreja, com altares
laterais e santos barrocos de extraordinária qualidade.
Porque
não vivia sozinha embora morasse sozinha? Viúva com mais de sessenta anos,
rica, muito rica, tinha três filhos que a visitavam com frequência, um deles morava
perto, dentro da cidade. A filha, Gabriela, e o genro, em outra fazenda que
tinha até uma usina de açúcar. Economicamente não dependiam dela e como ela era
moderninha se comunicavam sempre pelo Skype, WhatsApp e outros truques.
Às
vezes parecia que D. Eulália não tinha passado, a não ser pela presença da
Inez, uma negra altiva e de belo porte que tinha trabalhado para a mãe dela e
com quem a própria trocava monossílabos que valiam por centenas de palavras.
A
casa era conservada na perfeição e era deslumbrante no seu conjunto, mobília, louças,
tapeçarias, quartos, janelas, cortinas tudo preso ao passado, mas conservado
para o futuro.
Havia
lembranças no ar, mas não havia cheiro de naftalina ou alfazema. Um sentimento
de antigo que não amordaça ou afoga o presente nem enclausura o futuro. Não era
fácil de compreender, tudo que tinha na casa era digno de um museu, mas ela não
era um museu, havia vida, muita vida no seu interior. Era como que se as
toalhas pedissem para ir à mesa e os talheres aguardassem com ansiedade seu
lugar nos jantares ou banquetes.
Dito
assim, o edifício pareceria um recanto delicioso, não fosse pela sala trancada.
Só D. Eulália e Inez tinham a chave. No dia a dia era Inez quem cuidava dela e
a mantinha arejada. Era sombria e escura, cortinas pesadas de cor carmim
ocultavam janelas altas, nas paredes estantes com livros, muitos livros.
Eulália
raramente entrava nela, não precisava, bastava passar pela porta para que as
lembranças lhe assomassem a cabeça.
Era,
como explicamos, a menor de três irmãos, raspa de tacho, temporã, sapeca,
corria pela fazenda toda sem limite. Gostava muito da Inez que vez e outra a
carregava no colo. Criança ainda num mundo adulto e circunspecto. Era frequente
que se escondesse atrás das pesadas cortinas daquela sala que era chamada de
biblioteca e onde seus pais passavam invariavelmente as tardes.
Naquela
manhã entrara na biblioteca e se escondera atrás do cortinado e ficara olhando
sua cunhada lendo numa bela poltrona.
Súbito,
Luciano seu irmão mais velho adentrara. Descabelado, colete aberto, resfolegante
aproximou-se de sua mulher dizendo apenas:
—
Vagabunda!
Desferiu-lhe
dois tiros e sumiu.
Eulália
soube depois, quando já não era criança que sua cunhada tivera um caso com o doutor
novo na cidade. Começara como cliente e evoluíra para amante. Jau não tinha
mistérios, história de corno era a alegria do povoado. Se, ainda por cima,
fosse de alto coturno a alegria virava festa.
Naquele
tempo a honra não era lavada em cartório, mas com sangue. Morto o médico,
Luciano voltara para a fazenda para terminar o serviço. Do assassino nunca mais
se ouvira falar. A família tinha dinheiro suficiente para bancar um sumiço
completo. Seus pais fizeram questão de manter a casa viva e arrumada como
sempre, com exceção da biblioteca.
A
irmã do meio, como já contamos, se formou em medicina e foi fazer residência e
especialização no Canadá, nunca mais voltou. Tornou-se uma figura
respeitadíssima em Vancouver no Children’s Hospital que era afiliado a Faculty
of Medicine da University of British Columbia.
Com
a morte dos pais Eulália assumiu os negócios, acertou a herança com a irmã e
enviava a ela regularmente quantias elevadas de dinheiro.
Casara,
tivera filhos, enviuvara e seguia a vida, com exceção da biblioteca trancada e
da pergunta vespertina:
—
Por onde andaria Luciano?
Tinha
uma vaga ideia de seus pais falando em “fora do país é mais seguro”. A resposta
viera de Viviane. Figura conhecida e
respeitada em Vancouver como famosa Neuropediatra, Viviane andara nos jornais
por causa da Zika e da tragédia que escurecia o horizonte. Fazia anos que ela
dera os primeiros alertas, mas a falta de casos autóctones no Canadá
dificultava sua projeção.
Mesmo
assim, fazia agora dez anos que certo John Ashtemberg, morador em Valdez no
Alasca entrara em contato por causa de seu e-mail (viviane.andrade@). John
Ashtemberg era o novo nome de Luciano que vivia na minúscula cidade de Valdez,
casado com uma mestiça descendente de indígenas de nome Cybele, com dois filhos
e vivendo da caça, pesca e comércio de peles.
Ele aprendera que nos USA você pode
facilmente sumir, criar uma pessoa, um social-security number e viver desde que
não saia do país ou no máximo vá só ao Canadá.
Estava
economicamente estável embora agora tivesse 75 anos, mas aceitara partilhar a
enorme quantidade de dinheiro que Viviane recebia do Brasil. Encontravam-se
anualmente, no verão em Valdez, quando Viviane tirava uma semana de férias. Ele
lhe fizera prometer que nunca revelaria a ninguém do Brasil onde vivia e o que
fazia agora. Ela cumprira a promessa. Luciano morrera aos 85 anos de idade no
seu amado Alasca e lá fora cremado com o nome que assumira.
Nem
a mulher nem os filhos tinham ideia da tragédia de sua juventude.
Bem, Eulália era o esteio da família, o
tronco feminino era dela, ou melhor, era ela. A saga estava garantida com
Gabriela casada, quem diria, com Newton Andrade, destinado a morrer cedo, como
convinha naquele mundo que girava em torno delas: Clotilde, Arminda, Antônia, Zulmira,
Eulália, Gabriela.
Viviane, agora aposentada, continuava a
frequentar o Hospital e às vezes vinha ao Brasil, como Eulália que às vezes ia
ao Canadá.
Sentindo a idade e não querendo deixar
sua história fora do tronco, Viviane resolveu que era melhor contar tudo e...
Contou.
Tinha De Queiroz na British Columbia,
mas também em Valdez, no Alasca. Deu detalhes nomes e endereços, sentiu um
enorme alivio no final.
Eulália
ouviu em silêncio, percebeu a árvore crescer e encurvar-se. Sentiu uma
necessidade enorme de ver esses sobrinhos, de integrá-los, embora precisasse
inventar uma história totalmente louca para explicar o acontecido. Mas não se
preocupou, era filha de Arminda, neta de Antônia, bisneta de Zulmira, fazer
história e criar histórias era o que os De Queiroz mais haviam feito na terra.
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