Uma
tomada de decisão
Ledice Pereira
A
vida não havia sido generosa com Vilma. Desde pequena teve que enfrentar as dificuldades que iam aparecendo. A morte
do pai, prematura, o novo relacionamento da mãe, a responsabilidade com os
irmãos pequenos. A falta de brinquedos, a distância que tinha que percorrer a
pé até a escola, o bullying sofrido na classe devido a um estrabismo acentuado
que a enfeiava.
Teria
sido escolhida pelo destino, perguntava-se, triste.
Apesar
de tudo, nascera com um QI acima da média. Era de uma esperteza que colocava a
todos no chinelo. Talvez por isso, os maus colegas a perseguissem, tentando
desestabilizá-la.
Tinha
facilidade para o aprendizado. Os livros eram seus companheiros inseparáveis. Neles
encontrava seu consolo. Transportava-se para os cenários descritos, deixando-se
levar pela imaginação.
Judite,
professora de português a admirava e convenceu os demais professores a encaminhá-la
para um oftalmologista amigo, organizando uma vaquinha para que isso fosse
possível.
O
médico verificou ser um caso a ser resolvido através de cirurgia.
Chamou
a mãe da menina, explicando que havia conseguido uma vaga no hospital público e
recomendando que quanto antes fosse corrigido o problema, maior seria a chance
de um sucesso total. Além disso, o período de férias seria perfeito para o
restabelecimento.
A
mãe hesitou um pouco, principalmente porque ficaria sem seu braço direito em
casa, mas Judite, que a acompanhou, convenceu-a a fazer a coisa certa.
A
cirurgia foi realizada com pleno sucesso, mas houve todo aquele tempo pós que
requer cuidados.
Vilma
enfrentou com galhardia a dor, os tampões que a impediam de executar qualquer
tarefa, a solidão a que foi obrigada a se sujeitar, o abandono dos amigos. A
única que não a abandonou foi Judite por quem ela se afeiçoou ainda mais.
Embora
com seus treze anos, Vilma tinha maturidade suficiente para entender o que o
momento lhe impunha.
O
que mais sentia era não poder ler seus livros. Judite resolveu o problema com os
audiolivros que emprestou à garota.
Assim,
a menina atravessou os trinta e tantos dias do pós operatório sem reclamar de
nada.
Após
esse período, o oftalmologista constatou que tudo estava correndo conforme o
previsto e o recomendado agora era o uso de óculos.
Fazia
uma semana que o período de férias havia terminado, quando Vilma retornou à
escola sem o antigo problema visual e com seus novos óculos que a tornavam mais
charmosa.
Foi
recebida pelos colegas com admiração e certa reserva.
Havia
ali um garoto que sempre a respeitara e que jamais se juntara aos outros que
praticavam bullying. Ernesto passara a frequentar a escola no início daquele
ano, tendo dificuldade para se enturmar. Procurava ficar na dele, sem se misturar,
observando de longe tudo que acontecia. Tinha quase quinze anos, havia repetido
o ano e os pais o transferiram de escola.
Naquele
dia, ele procurou aproximar-se da menina, oferecendo-lhe um pedaço de seu
lanche. Era uma maneira de estabelecer contato. Intimamente, ele sentia que ela
não lhe era de todo indiferente.
Uma
amizade forte estabeleceu-se entre eles.
Vilma
tornou-se uma jovem atraente. Cursou o
ensino médio sempre com as melhores notas. Ernesto procurava espelhar-se nela e
com a ajuda dela nunca mais repetiu o ano. Estudavam muitas vezes juntos. Tornaram-se
inseparáveis.
É
lógico que essa aproximação se transformou em amor e eles passaram a namorar.
Ernesto,
no entanto, revelou-se muito ciumento. Não permitia que Vilma saísse sozinha,
controlava seus horários, passou a infernizar a vida da jovem, que havia
conseguido uma bolsa de estudos em um cursinho preparatório para psicologia e
queria levar seus estudos adiante, nem sempre podendo encontrar-se com o rapaz.
Isso deixava-o furioso, dando a entender que o melhor era ela abandonar o
cursinho e os estudos.
Aos
poucos, ele foi revelando a verdadeira personalidade e ela concluiu, a duras
penas, que teria que se afastar se quisesse alcançar seus objetivos.
Quando,
um dia, ele quase a agrediu, segurando-a
fortemente para impedir que ela fosse à aula para ficar com ele, ela sentiu que
não podia mais continuar a relação. Se agora ele agia dessa forma, como seria
se continuassem e até se casassem.
Criou
coragem, marcou um encontro em um lugar público e expôs sua decisão.
Ernesto
teve uma reação violenta. Só não a esmurrou porque estavam num restaurante
movimentado. Cerrou os dentes e disse baixinho que a mataria, caso ela
continuasse com aquela ideia.
Vilma
não era mulher de ter medo de nada. Já havia enfrentado tantas dificuldades de
cabeça erguida. Levantou-se, chamou o garçom e disse em voz alta:
─ Este
homem está me ameaçando. Preciso de ajuda para poder ir embora. Alguém pode me
acompanhar ou chamar a polícia?
O
garçom chamou o segurança que a acompanhou até a saída.
Ernesto
não sabia como agir. Estava envergonhado. A polícia foi chamada. Ele teve que
se explicar na delegacia, sendo-lhe proibido sair da cidade.
Ao
ser intimada a depor, a jovem detalhou como estava sendo sua vida com aquele que era
seu namorado desde a adolescência.
O
rapaz foi proibido de aproximar-se de Vilma num raio de cem metros.
Ela
pôde continuar seus estudos, prestando exame na Universidade onde conseguiu
cursar a tão sonhada carreira.
Prevaleceu
a vontade dela que se se submetesse à vontade do namorado, certamente teria a
carreira truncada e a vontade frustrada.
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