PORQUE ESSE REVISIONISMO NÃO ME AGRADA - Oswaldo U. Lopes



Independência ou Morte, Pedro Américo | Historia das Artes

PORQUE ESSE REVISIONISMO NÃO ME AGRADA
Oswaldo U. Lopes


        O momento atual, por diferentes razões e motivos, deu origem a certo revisionismo histórico que visa expurgar da história e das praças, monumentos e páginas consagradas. Levado a extremos, compreensíveis eu concordo, pouco sobrará para contar ou honrar.

        Imagino que os franceses, a continuar esse padrão, terão que alterar a letra de seu famoso hino: La Marseillaise, para grande tristeza tumular de Rouget de Lisle.  Hoje em dia não é politicamente correto afirmar que o inimigo venha:

“ Egorge vols fils, vos campagnes! “ – Degolar vossos filhos e, vossas mulheres!

        Sem considerar o papel passivo das mulheres que serão degoladas e vítimas de estupro sem reação alguma. Ainda sobra o “que um sangue impuro, banhe nosso solo”. “Abreuve nos sillons”, soa pra lá do politicamente correto.

        Não bastasse a história ter transformado o famoso e formoso cavalo baio pintado por Pedro Américo em uma prosaica mula, ainda se juntou a injuria o insulto, D. Pedro, no momento do Grito, vinha de aliviar-se, pois estava com uma maldita diarreia, não teria proferido a famosa frase: “Independência ou Morte” atribuída ao Coronel Oliveira Melo já na noite do 7 de setembro, mas na cidade de São Paulo.

        Restava ao nosso querido herói nacional que gostava de ter filhos, alguns lhe atribuem à paternidade de 31 outros de 28, a autoria do hino, o notório – “Japonês tem quatro filhos... “ e uma certa notoriedade por saber latim.

        E por aí vamos, Tiradentes tinha escravos, Washington também, Jefferson nem se fale, Aristóteles, pai do nosso conceito de democracia defendia a escravidão e um papel secundário na politica para as mulheres. A escravidão no tempo de Aristóteles não era de negros, mas de prisioneiros de guerra ou de outras fontes.

        Houve, após a descoberta das Américas e em particular do Brasil, um grande movimento na Igreja Católica, para saber se os índios tinham alma! Louve-se a ação dos Jesuítas no caso. É bom acentuar o caso, porque em outras ocasiões eles foram lamentáveis.

        Aonde chegaremos? Em um ponto que todos concordaremos: a análise do texto fora do contexto é o melhor caminho para dar com as mulas n’água. Não pude resistir, olá D. Pedro, a usar as mulas em vez de burros.

        Você nega então todas estas manifestações antirracismo? Não só não nego, como apoio. Como em outras ocasiões é preciso separar o joio do trigo. Devemos combater o racismo, a diferença de trato aos gêneros e todas as formas de repressão ao ser humano, sem, no entanto, perder o bom senso. Se o perdermos corremos o risco jogar fora nossa história e seus reais ensinamentos.


TERAPIA - Sérgio Dalla Vecchia





Deitado na rede by Domenico Lafasciano & Neto Lourenço Pezzuti ...



TERAPIA
Sérgio Dalla Vecchia


Discreta psicóloga,
Prisioneira comportada.
Duas colunas a agarram.
Na nascente a do mais,
No poente a do menos.
Quando o paciente se deita,
Ela dana a balançar,
Para lá, para cá!
Com força embalar.
Ansiedade vem,
Ansiedade vai,
problemas aparecem,
no vaivém pendular.
Soluções acontecem
no balanço do pensar,
cadência esmorece,
para lá, para cá...
até o nem lá, nem cá!
Paciente espairece
e  feliz,
à rede muito  agradece!



A incrível história de Píndaro, e a disfemia. - Fernando Braga



Colégio Arquidiocesano, 1939 – SAMPA HISTÓRICA

A incrível história de Píndaro, e a disfemia.
Fernando Braga


Píndaro, aos seis anos entrou para o jardim da infância, no período da tarde, naquela pequena cidade do interior. Seu pai era delegado de polícia e sua mãe, do lar. Desde bem pequeno, os pais haviam notado que ele era canhoto, chutava as bolas com o pé esquerdo, comia segurando o garfo, atirava pedras, penteava o cabelo com a mão esquerda.   No jardim da infância, ouviam historinhas infantis e todos tinham um caderno, lápis preto, conjunto de lápis de cor, aprendiam a desenhar, pintar figuras e iniciavam o conhecimento das letras minúsculas e maiúsculas do alfabeto, a unir consoantes e vogais para formarem palavras simples como pato, sapo, casa... Era um início de alfabetização.

 Quando começaram a pintar, escrever, Píndaro o fazia com a mão esquerda e a professora ao notar isto, pediu que usasse a mão direita. Falava a todos que o certo era escrever com a mão direita e não ia admitir o uso da esquerda.

— Viu, meu querido Píndaro! Com a mão direita!!!

Como várias vezes passava a usar a mão esquerda, a professora chegou a prendê-la com uma cordinha à sua coxa esquerda.

 Ele obedecia, mas sua dificuldade era intensa e as letras saiam como garranchos. Quando fazia a lição em casa, a professora pediu à mãe que ficasse de olho, para que ele não escrevesse com a esquerda. Os pais, obedeciam a orientação!

Após um ano no jardim de infância, entrou para o primeiro ano do grupo escolar, o que só podia ser feito quando as crianças já tivessem sete anos completos,  sua estatura física era um pouco maior que a das demais crianças, da mesma idade.

 Nessa fase havia somente professoras, incluindo a diretora. Também elas, não admitiam que canhotos escrevessem com a mão esquerda e, algumas, chegavam a bater na mão do aluno com a régua, quando estavam usando a mão esquerda. Na época, era este um procedimento, quase geral na cidade.

Com sete anos e meio, Píndaro começou a apresentar   mudanças em seu comportamento. Tornou-se nervoso, ansioso, tenso, indeciso, recalcado, brigando facilmente com os colegas, respondão nas aulas e ao lado disto, começou a gaguejar, tartamudear. Com a piora da gagueira, passou a falar pouco, detestando ao ser chamado à frente da classe, para expor algo ou escrever na lousa. Seus pais ficaram preocupados vendo a mudança do filho e a gagueira, procurando ajudá-lo em casa, tratando-o o melhor possível, mais atenção em relação aos dois irmãos.   

As crianças, colegas da escola, passaram a lhe colocar apelidos como breque agarrado, vaivém, deixa que eu chuto, mudinho, motor enguiçado, cuspidinha,  e por aí vai. Ele não gostava, mas quanto mais reagia, mais eles o gozavam. O apelido de breque agarrado logo era conhecido em toda a escola.

Píndaro, passou a reagir, usar palavras feias, os piores palavrões conhecidos e quando os gritava para os colegas, geralmente gaguejava menos.

Ele detestava, principalmente quando os maiores, de anos mais adiantados, passavam também a gozá-lo no recreio. Queixava-se ao pai e algumas vezes fingia estar doente para faltar à escola. Os pais notavam que ele tinha algum problema psicológico!

Naquela época, na cidade, não havia foniatra ou psicólogo infantil, havia poucos médicos que diziam aos país, que diariamente, precisavam exercitá-lo a falar em voz alta, colocando algumas pedrinhas em sua boca durante os exercícios, como fizera Demóstenes, o maior orador grego, que um dia havia sido gago.

 Píndaro, tinha porte mais avantajado que os demais, falava pouco, mas os palavrões saiam de sua boca, a toda hora. Em casa, usava muito o Vai tomar no banho, mesmo para o irmão, irmã e primos. Um dia sua mãe o chamou e disse:
— Filho, não fale “vai tomar no banho”. Fale apenas, ” vai tomar banho”. Ele não entendeu bem, mas assim tentou proceder.

Certa feita, a mãe pediu que fosse até o bar próximo e pedisse duas guaranás e mandasse colocar na conta. Foi ensaiando pela rua para falar rápido, sem gaguejar. La chegando, ao ser atendido, o balconista perguntou o que queria. Disse bem rápido, sem gaguejar:  — Duas guaranás! O balconista perguntou, ”Antártica ou da Brahma?”. Sua fala enroscou e bravo fendeu o atendente com um palavrão e saiu correndo. O atendente ficou parado, sem entender.

Não havia um dia que não brigasse, quase sempre após o chamarem de “breque agarrado”, e interessante é que   nas brigas, mesmo com alguns colegas maiores, quase sempre levava vantagem. Aprendeu que quando a briga estava para começar, ficava parado, com os braços abaixados encarando o adversário, olhando bem em seus olhos e então, subitamente abaixava a cabeça e o corpo, o que era automaticamente, em instinto de defesa, seguido pelo adversário. Era quando ele desferia de lado, um soco forte e certeiro na parte lateral da cabeça, sobre a orelha do oponente, que o tonteava e muitas vezes o desequilibrava, caindo ao solo.  Aí, já era meia luta ganha!

Jogava bem futebol e basquete nos campinhos do grupo. Durante o quarto ano, no período da tarde, fez simultaneamente a admissão, preparatória para o ginásio, com ótima professora. Sua família havia decidido colocá-lo interno no Colégio Arquidiocesano de São Paulo, regido pelos irmãos maristas (IM), onde havia uma prova no começo do ano, para analisar o nível do aluno, para poder ser aceito.

 Quase na época de ir para o colégio, seu pai lhe disse:

— Filhinho querido, você vai ser interno em um colégio de padres e vai ter que se comportar bem. Nada de palavrões e brigas. Ao invés de palavrões, vou lhe ensinar uma coisa interessante. Se estiver nervoso, ao invés de falar estes palavrões que está acostumado e que vão ser recriminados, use outras palavras que parecem xingamentos, mas não são. Assim, o pai lhe ensinou a falar chichisbéu, que significa galanteador, morígero, uma pessoa honesta, bardo, um trovador, X.P.T.O, que é abreviação de cristo e significa ungido, messias, e é utilizada para designar qualquer coisa muito boa, magnífica, grande feito. Estas palavras ditas agressivamente, quem as ouve e não as conhece, interpretam como xingamento. O menino sorriu e prometeu praticá-las.

No quarto ano primário, certo dia a professora teve que se ausentar alguns minutos da sala e pediu que se mantivessem em silêncio. Ele se sentava nas primeiras carteiras. Foi quando ouviu uma vozinha vinda lá de trás: “Breque agarraaado!”.  Píndaro, não deu atenção. Quando ouviu pela segunda vez, levantou-se, olhou para trás e disse gaguejando:

— Quem é o bardo, morígero, XPTO que me chamou deste nojento apelido? Se levante, se for homem! Ninguém se manifestou! Sentou-se e em seguida ouviu várias vozes:” Breque agarraaado!” .

Voltou a levantar-se e disse:  “Amanhã, vou trazer meu estilingue e no recreio, quero acertar uma pedrada no peito de quem assim me chamar!

Vocês são todos uns morígeros e XPTO! Quando falava estas últimas palavras a professora entrou e percebendo a situação, disse a Píndaro:

— Vamos já para a diretoria! Aqui não é lugar de falar palavrões.

Na diretoria, jurou não ter dito nenhum palavrão e repetiu as palavras ditas. Ninguém sabia o significado e tiveram que consultar o dicionário. Ele voltou para a sala, com a professora abraçando-o.

 “Valeu!”. Pensou ele. Graças a meu pai.

Foi aprovado em sexto lugar entre mais de cem concorrentes, apto para frequentar o ginasial do famoso colégio Arquidiocesano, localizado na Vila Mariana.

 No começo do ano letivo, o pai o trouxe para São Paulo, com todo o enxoval solicitado, juntamente com a linda fardinha azul que o colégio exigia, para ser usada em festividades e desfiles. Ficou orgulhoso ao vestir sua farda! Sentiu-se importante como um soldado.

Quando seu pai o deixou no colégio, sentiu-se quase desesperado, inseguro, acabrunhado, sabendo que ia ter dificuldade com sua gagueira.

Já interno, nos primeiros 15 dias, sentia saudade de casa e à noite já deitado, chorava baixinho até se acostumar!   

O colégio era bem grande, vários andares com cerca de 350 alunos internos, fora os semi-internos, distribuídos em divisões separadas: os menores, submédios, médios e maiores, conforme o tamanho e ano letivo em que estavam. Lá, tinha também o curso científico.

Na primeira série do ginásio, foi para a divisão dos submédios, onde havia um grande salão de estudos, um grande pátio fora do prédio principal, com campo futebol, de vôlei, basquete e em uma parte coberta com mesas de pingue-pongue, duas mesas de sinuca e os banheiros. Local onde passavam os recreios. Cada divisão era regida por dois maristas. As salas de aula, com cerca de 40 alunos cada, ficavam no primeiro e segundo andares.

A capela era grande e bonita, com missas diárias às 7 horas da manhã e uma notável gruta no grande pátio de entrada, parecida à de Lourdes, entre duas escadarias curvas do térreo ao primeiro andar.

A gagueira de Píndaro, logo chamou a atenção dos colegas e professores. Os maristas não admitiam qualquer gozação. O regime era um tanto militar. Nas filas, ninguém podia falar, comer ou mesmo rir. Qualquer deslize, o aluno era colocado no toco, de pé, olhando para a parede e muitas vezes tinham que decorar poesias como o I. Juca Pirama, Canção do exílio, Cântico do calvário...

Para atender os alunos do colégio, havia um médico e um psicólogo. Frequentemente, crianças afastadas dos pais, podiam ter problemas.

O regente da divisão, vendo a gagueira de Píndaro, logo o enviou ao psicólogo. Após algumas sessões, a conclusão foi de que era um canhoto contrariado, por ter sido obrigado a escrever com a mão direita, o que não era mais admitido em sinistros! Pelo menos na cidade de São Paulo.

O psicólogo chamou aos pais, quando após um   mês, vieram do interior para visitá-lo.

Explicou a eles que temos dois hemisférios cerebrais e  dominância de um deles. Nos destros, o hemisfério dominante é sempre o esquerdo, que contém os centros da fala, da escrita. Nos canhotos o hemisfério dominante tende a ser o direito, o contrário. Uma criança canhota, obrigada a escrever com a mão direita, pode desenvolver   gagueira.

No canhoto, o uso da esquerda faz parte de sua natureza e não é um costume ou hábito que tenha adquirido.

Não existe treinamento algum que a faça mudar.

Se obrigarmos uma criança usar a mão menos hábil na realização das tarefas, os resultados podem ser frustrantes para ela, tornando-se tímida, insegura, esgotada, em desvantagem, resultando transtornos como a gagueira e a dislexia. O canhoto já tem uma preocupação, em se adaptar em um mundo feito, onde a grande maioria é destra. Nos casos de pai, mãe ou ambos gagos, pode haver um fator genético associado, que varia de 5 a 15%, mas não era o caso do Píndaro.

Avisem isto em sua cidade para as professoras que assim agem, que nenhuma criança deve ser corrigida, envergonhada, por causa da mão que escreve. Isto provoca uma disfemia, gagueira!

— Meus queridos pais, analisando as provas feitas pelo Píndaro ele nos pareceu muito, muito bom mesmo em todas as matérias, principalmente em português. Deve ser tido ótimos professores.

Peço a vocês, para eu ter a colaboração de uma fonoaudióloga capacitada, que conheço, para iniciarmos um tratamento em seu filho, tentando eliminar a gagueira. Evidentemente, isto vai custar uma soma de dinheiro, mas certamente vai compensar. O pai disse que era delegado, vivia de seu ordenado que não era muito, mas faria um grande sacrifício, se não fosse muito dinheiro. Tudo foi acertado!

O psicólogo, ainda disse que fariam duas sessões por semana, com exercícios para o relaxamento dos lábios, da língua, melhora da tensão muscular, coibir os sentimentos de medo, ansiedade, timidez, com pausas na fala, para ela ficar automática. Ainda, que pediria aos irmãos, para que o colocasse no orfeão da escola, cantar em coro, que poderia melhorar sua fluência. Seria interessante também que aprendesse violão, para cantar. Falar é diferente de cantar, inclusive pelas áreas ativadas pelo cérebro.

O lado direito é mais musical, o esquerdo é a fala.


Os gagos podem cantar normalmente, enfatizou. Quando sozinhos, não travam tanto a fala, mas piora quando fala com alguém que o deixa tenso, com ansiedade.

 No final da conversa, disse que os irmãos em de sua divisão, tinham observado que jogava muito bem futebol, o que seria um handicap positivo para ele.

— Os canhotos podem ser melhores nos esportes, confirmou.

Durante as férias escolares, em julho e quase três meses em dezembro, vocês irão aprender como proceder; vamos ensinar-lhes tudo. Evitar criticá-lo quando gaguejar ou completar suas frases. Quando apresentar dificuldade, não o interromper, animá-lo a terminar a frase. Começar uma frase e pedir que continue.  Não   deixar qualquer familiar lhe dar apelidos, gozá-lo.

Vai fazer exercícios de sopros, encher bexigas, balões, assoprar velas. Ler em voz alta e outras coisas mais! Trabalhar a respiração diafragmática. Acreditamos que em dois anos ou pouco mais, tenhamos um excelente resultado.  Agora, vão despedir-se dele e feliz regresso à sua cidade.

Os pais saíram muito satisfeitos, confiantes.

Píndaro começou o tratamento, terapia vocal, entrou para o orfeão do colégio, do qual fazia parte alunos dos diferentes anos e divisões e passou a ter aulas de violão. Autorizaram-no a escrever com a mão que lhe aprouvesse! Acabou se tornando ambidestro! O colégio lhes proporcionava tudo.

O ensino era excelente, aprendiam também o latim, francês na primeira e segunda séries e inglês a partir da terceira. Durante o dia, tinham o período das aulas, de estudo e recreios, com a prática de esportes. Píndaro, Na segunda série, já fazia parte do time principal dos submédios. Tudo o que treinasse, jogava bem, incluindo a sinuca. Tinha facilidade para os esportes, os quais adorava e fazia amigos facilmente.

No futebol, corria muito, driblava bem, dava passos precisos e seu chute com a canhota era forte e certeiro. Não perdia um pênalti e o goleiro sempre pulava do lado oposto àquele que a bola entrava. Apesar da gagueira, com a qual ninguém mexia, era querido e admirado por seus colegas. Evitava falar palavrões e quando os usava eram aqueles ensinados pelo pai, e outros, que encontrou no dicionário: gárrulo, facundo, debicador, deífico, donoso, dadaísta, nefelibata, etc. Além de estudar bem as matérias, sempre estava lendo um ou dois livros, retirados da grande biblioteca.

No recreio, frequentemente, se isolava em um canto para ler em voz alta, onde também cantava canções próprias da época. Seu pai lhe comprou um violão. Gostava muito de ouvir Nelson Gonçalves com aquele vozeirão lindo, pronunciando bem as letras da música. Adorava cantar Bohemia! Soube que o Nelson era gago, o que ninguém percebia quando cantava!

O professor de Música, contratado, que conduzia o orfeão do colégio ao receber Píndaro, fazendo o teste para ver se era apto, ficou entusiasmado com seu ouvido musical e ainda, com o timbre diferente de sua voz. Cantando, realmente quase não gaguejava. Várias músicas lhes foram ensinadas dentre elas Rosa, de Pitanguinha, No Rancho Fundo de Ari Barroso, o Velho realejo.

Logo Píndaro, estava cantando, sem gaguejar.

Este orfeão, sempre se apresentava em festividades   comemorativas da escola. No dia 6 de junho, na comemoração do dia do Padre Champagnat, o fundador dos irmãos maristas na França, havia festa o dia todo.

À noite no amplo teatro, o orfeão se apresentou e Píndaro, pela primeira vez, sozinho ao microfone, cantou “O velho realejo” com excelente voz, sem desafinar: -Naquele bairro afastado... Onde criança vivias...A remoer melodias...De uma ternura sem par! ...E daí vai.

 Foi muito ovacionado.

Ele realmente tinha dom! Foi adquirindo uma autoconfiança que o ajudava muito em tudo, principalmente com sua gagueira!

Tornou-se o primeiro aluno da classe por suas notas excelentes, sempre classificado como primeiro ou segundo da classe. Chamava a atenção do professor e dos seus colegas, como escrevia bem redações de português. Usava muitas figuras de linguagem, parecendo que teria futuro, se um dia viesse a ser escritor.

Ficou na divisão dos submédios dois anos. Na terceira séria, com 14 anos, foi para os médios, onde o campo de futebol era maior, com medidas profissionais. Os futebolistas que já o conheciam por suas qualidades neste esporte, ficaram empolgados. Na ocasião, com apenas 14 anos, estava com 1,75 metros, era forte, musculoso, pois também fazia barra fixa.

Nas férias, quando ia para o interior, todos notavam seu desenvolvimento físico e que sua gagueira, ainda ligeiramente presente, havia melhorado muito. Todos queriam sua companhia e os tios diziam que era o sobrinho preferido, principalmente um deles, que também adorava cantar ao violão! No clube, nos rachas, era sempre o primeiro a ser escolhido, mas também jogava basquete e nadava. Ia ao clube todas as tardes, e à noite, ao cinema ou jogar sinuca com os amigos. Tinha namoradinhas, assistia, com os primos e amigos, “o footing”, vendo as mulheres desfilando na rua principal, após a saída do cinema nas terças e quintas e após a missa das 10 horas aos domingos.

Quando na quarta série ginasial, vieram buscá-lo no colégio porque seu avô materno, com 65 anos havia falecido no interior. Este avô, que viera da Ilha da Madeira no final do século XIX, mesmo sem instrução, mas devotado trabalhador da roça, havia, conseguindo após anos, comprar fazenda, onde plantou o café, o chamado “ouro verde”.  Mais 10 anos estava rico, tendo construído excelente casa, comprado casas bem localizadas na cidade e fazendas umas próximas, outras distantes, na barranca do Rio Tiete. Deixou muita coisa para suas cinco filhas e três filhos, quase todos casados e com filhos. Com a herança da mulher, o pai de Píndaro deixou a delegacia, tornou-se fazendeiro de café, além de ficar com a metade de uma grande casa comercial, de secos e molhados, localizada na rua principal da cidade.

Voltando ao Píndaro, na quarta série ginasial, prestigiado pelos colegas, além da autoconfiança, tornara-se expansivo, sem qualquer complexo, timidez.   Nada restara de sua gagueira, graças ao psicólogo e sua foniatra.

Passou a adorar falar em público, tinha boa retórica, com uma gesticulação manual própria, que ninguém sabia onde conseguira aprender. Era dom!

Houve uma grande festividade no final do ano, no término da quarta série, no encerramento do ano letivo do ginásio! No dia seguinte seria a festa do científico. Eram muitos pais e parentes presentes. Todos os alunos fardados!

No amplo auditório, primeiro houve a apresentação do coro, do qual Píndaro fazia parte há quatro anos. Em seguida, a distribuição das medalhas pelo Reitor, àqueles com melhores desempenhos nas notas das 9 matérias do quarto ano. Os alunos premiados eram chamados na frente do palco e o reitor, ele próprio, colocava as diferentes medalhas de ouro, prata e bronze em seus peitos, citando as matérias em que haviam sido os primeiros, segundos ou terceiros colocados. Pareciam heróis de guerra!

Os pais ficavam sentados nas primeiras fileiras levantando-se, quando seu filho era chamado para subir no palco. Durante a premiação, um silêncio absoluto!
Píndaro foi chamado, seus pais se levantaram. Foram colocadas, três medalhas de ouro, duas de prata e duas de bronze. A plateia se levantou para aplaudi-lo, seus pais choravam. O pai falou baixo no ouvido de sua mulher: — Esse é meu filho! Eu sabia que me daria orgulho!

Em seguida, a entrega dos diplomas de término do ginásio e finalmente, o discurso do orador da turma, escolhido pelos próprios colegas do quarto ano.

O orador escolhido, quem foi? ... Píndaro!

No palco, peito cheio de medalhas, subiu no pequeno púlpito, ajeitou o microfone próximo à boca, com voz firme, pausada, gestos manuais precisos, deu início ao seu discurso. Cumprimentou inicialmente todas as senhoras e senhores presentes, pais, parentes, amigos dos formandos. Em seguida, referiu-se aos componentes da mesa diretora, composta pelo reitor, o capacitado maestro, os vários irmãos maristas presentes, fazendo referência especial ao já envelhecido irmão marista, com o apelido de Carrasquinho, que diariamente, há anos, tocava órgão na igreja, durante as missas.

Continuou falando da convivência com seus professores   irmãos maristas, grandes educadores, plenos de conhecimentos e, que seguiam religiosamente o que foi determinado pelo venerando Padre Champagnat, ao criar  a ordem dos Irmãos Maristas, com a função precípua de educar os jovens.

 Dirigiu a palavra a seus colegas, lindas palavras, envolventes, entusiasmadas, denotando a felicidade de nascerem em nosso gigantesco país, que ansiosamente aguardava pelo nosso futuro brilhante e, que cada um cumprisse com o seu dever. Gozando, citou o nome de alguns colegas, que junto com ele, faziam parte do time principal de futebol e, que embora fossem os campeões do torneio Interescolar, levaram a lavada recente de 4 a 1, dos reservas do time do Santos.

 Após muitas outras considerações, inclusive filosóficas, chegando ao final disse:
— Está guardada no baú de meu imo, a primeira vez, que pisei no pátio central deste colégio, com a visão da gruta da N.S de Lourdes em minha frente! O meu primeiro contato com os irmãos maristas, com meus colegas de divisão, a sala onde tive a primeira aula, a primeira missa, a visão do pátio da divisão dos submédios!

 Fez uma pausa e em seguida enfatizou o temor, o medo que sentiu, ao ficar só, sem sua família quando aqui me largaram e se despediram. Eu era pequeno, inseguro, nervoso e mais que tudo,  um gago, bem gago!

Graças à convivência com os irmãos maristas, com meus verdadeiros colegas e amigos e, principalmente, à ajuda do meu donoso psicólogo Eustáquio e à deífica foniatra Claudia, consegui me livrar da incômoda, insólita, prejudicial, inaceitável gagueira.

Disse que naquela exata ocasião se sentiu acabu..acrabu...aaacrabru, com dificuldade em falar esta palavra, como se tivesse voltado sua gagueira.. Parou um pouco e em seguida substituiu a palavra que queria falar por, abatido, prostrado, magoado por trazer em sua alma, aquele deprimente apelido que trazia de sua cidade “Breque agarrado”.  

Sorrindo, mostrando confiança, disse que felizmente, em pouco tempo sentiu-se normal, e que gostaria que os presentes, compreendessem que, às vezes, a língua emperra e não conseguimos falar a palavra acabrunhado! Acabrunhado! As palmas vieram em seguida.  

Terminou com um agradecimento especial a todos os pais presentes, que, sem dúvida fizeram sacrifício, trabalharam arduamente, para que seus filhos pudessem frequentar tão bom colégio. Olhando em direção a seus pais, colocando sua mão direita sobre o lado esquerdo do peito, enfatizou:

Um enorme e caloroso beijo em seus corações! Muito obrigado!

Foi o último dia a permanecer no Colégio Arquidiocesano de São Paulo.



O MURO DO BEM QUERER - Sérgio Dalla Vecchia



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O MURO DO BEM QUERER
Sérgio Dalla Vecchia



Sabiá sabia,
Em lindo amanhecer
Que saíras saíram
Para frutas comer
No muro do bem querer.

Sabiá, não sabia
Que sanhaços e tiês
Também buscavam
O muro por merecer.

Luta colorida da passarada,
Na percussão das batuqueiras,
Quem não bateu em retirada,
Foi só fim-fim e as beiradas.

Do banquete ofertado,
Com prazer o provedor
Viu a festa com reparo,
Até  o fim do fim-fim.
O sábio sabiá, sabia!



A descoberta - Ledice Pereira



Bitcoin e altcoins: a nave que sempre volta para buscar novos ...


A descoberta
Ledice Pereira




Aquelas férias prometiam ser inesquecíveis. Alugamos a casa dos sonhos, indicada por amigos, no meio do mato, onde teríamos sossego, ouviríamos o piar dos pássaros, apanharíamos frutas daquela quantidade de árvores que cercavam a casa e ainda poderíamos nos banhar no rio que a circundava. A casa perfeita no cenário mais do que perfeito.

Elvira, a caseira estava encarregada de fazer a comida e os quitutes prometiam ser dos deuses.

No primeiro dia, depois de fazer o reconhecimento do terreno, caímos na piscina, não sem antes experimentar os deliciosos drinques feitos pelo caseiro, Valmir.

Após nos deliciarmos com um almoço incrível, servido às 15 horas, nos espalhamos pelos diversos cômodos, uns dormindo, outros lendo, as crianças montando os quebra-cabeças que trouxemos especialmente para elas, os jovens, com seus microfones, ouvindo suas músicas prediletas ou vendo séries de filmes em seus celulares.

A casa era grande e permitia que cada um fizesse o que preferisse.

Elvira veio nos servir o cafezinho feito na hora com pequeninos biscoitos amanteigados.

Eu mal podia acreditar que finalmente iria descansar da labuta diária. Ultimamente, o trabalho vinha sendo intenso e eu estava muito estressada.

Éramos dezesseis pessoas ao todo. Meus irmãos com as respectivas famílias e nós quatro. A irmã de Flávio viria no outro final de semana para passar o natal. Aí seríamos vinte pessoas.

A semana passou rapidamente. Estávamos adorando tudo. O silêncio, o sol, as brincadeiras, os banquetes servidos por Elvira, os lanches que improvisamos, as pizzas feitas pelos meus irmãos. Enfim, tudo estava perfeito.

Quando Clovis e Jane chegaram completaram nossa alegria. Trouxeram lembranças para as crianças que ficaram eufóricas.

Naquela noite, fizemos esfihas de vários sabores e bebemos vinho trazido por Clovis. Ficamos até tarde, conversando na varanda. Um a um, fomos nos dirigindo aos nossos cômodos, combinando de acordar cedo para fazermos uma caminhada. Na madrugada, fomos despertados por um ronco de motor estranho o que nos levou a ir verificar do que se tratava.  

Eu me beliscava para ver se não estava tendo um pesadelo. Aquilo não poderia estar acontecendo comigo. Eu, que sempre havia duvidado da existência de discos voadores, naves espaciais, ataques marcianos ou que tais, tinha diante de mim um enorme disco, cujas luzes piscavam sem parar, estacionado no meio do mato que rodeava a casa.

A princípio, ficamos estáticos, fazendo conjecturas, com medo do que aquela suposta nave poderia esconder.

Lentamente, fomos deixando a casa, nos aproximando daquele OVNI, que soltava ruídos desconexos e desconhecidos.

Os jovens fotografavam excitados. Nós, mais prudentes, tentávamos protegê-los e às crianças, que se aninhavam em nossos colos. Andávamos pé ante pé e, apesar de todos os cuidados, de repente, fomos arrebatados para dentro da nave, sem que pudéssemos resistir.

Uma nuvem de fumaça encobria os seres estranhos que observavam nosso grupo, num misto de curiosidade, medo e fúria. Eram todos iguais. Podíamos ver que tinham uma espécie de olho na altura do estômago. Não tinham nem pé nem cabeça. Eram revestidos por uma pele grossa e enrugada e soltavam uns sons ora agudos, ora graves, absolutamente ensurdecedores. Tinham uma espécie de armadura verde num tom um  pouco mais escuro do que seu tom de pele. Estávamos em pânico.

Pareciam comunicar-se entre si através dos tais sons, cuja potência deveria atingir uns 120 decibéis.

Um deles parecia querer estabelecer contato. Parecia ser menos agressivo do que os demais. O olhar, eu me arriscaria a dizer, era mais terno. Tentou aproximar-se. Tocou na minha mão com sua mão áspera o que me causou certo arrepio. Talvez quisesse transmitir tranquilidade.

Aos poucos, percebemos que a nave estava se movimentando. No início, bem devagarinho, até que rodopiou várias vezes, dando finalmente uma arrancada que nos fez cair uns sobre os outros, provocando o que devia ser uma espécie de risada frenética naqueles seres, um verdadeiro horror! Apavorados, nos perguntávamos aonde aquilo nos levaria. Se voltaríamos. Por nossas cabeças passavam inúmeras perguntas sem resposta. Estávamos totalmente à mercê daquelas criaturas.

Aos nossos questionamentos, pareciam divertir-se, soltando ruídos cada vez mais desconexos.

O Etezinho, apelido que demos àquele estranho ser mais cordato, tentava comunicar-se. Ofereceu até algumas espécies de luzes, dispostas no que seria uma bandeja redonda, grossa, com cores cintilantes e piscantes.

Agradecíamos,  com gestos e  reverências, pois tínhamos medo de nos queimar.

Ele pareceu decepcionado. Aquele único olho soltou o que imaginei ser uma lágrima que, ao cair, logo congelou.

Os três longos dedos tentavam alcançar-me. Eu disfarçava, querendo me afastar. Ainda podia sentir aquela sensação nada agradável do toque inicial arrepiante. Entretanto, resolvemos aceitar. Aquilo dava a impressão de nos manter alimentados.

Nossos relógios marcavam nove horas e quarenta minutos. Tínhamos sido arrebatados às três e meia da madrugada. Entretanto, a sensação era de que havia passado apenas alguns minutos. Muito estranho.

Não conseguíamos pregar o olho. As crianças continuavam adormecidas em nossos colos. Os jovens demonstravam certa excitação ao mesmo tempo que exibiam desconforto, o que os levava a aproximar-se de nós, sentindo-se mais protegidos. Meus irmãos trocavam ideia entre si sobre como estabelecer algum contato com nossos sequestradores. Clovis e Flavio queriam proteger-nos. Eu procurava não demonstrar pavor, para transmitir alguma segurança aos filhos e sobrinhos. Intimamente, rezava para todos os santos, pedindo ajuda e proteção.

A partir de um momento, os  seres foram apagando suas luzes, caindo uns sobre os outros, ficando inertes.

Apenas o provável piloto (se é que se podia chamar assim), com cara de poucos amigos (cara?), permanecia atento ao trajeto. Etezinho fazia-lhe companhia, emitindo sons agudos demais, seguidos de grunhidos graves. Dava-nos a impressão de que estavam batendo um papo animado.

Fomos obrigados a nos acomodar como podíamos pois não havia nenhuma perspectiva de retorno. A nave, o disco, ou o que quer que fosse aquele veículo, continuava a subir em círculos e por uma pequena fresta podíamos ver as estrelas brilhando lá embaixo. Acho que até enxerguei um grande círculo azul que imaginei ser a terra, mas foi tão rápido que não deu para eu me certificar.

Para onde estaríamos indo, nos perguntávamos baixinho, temendo irritar nosso amável condutor.

O medo, a incerteza, o desconforto e a dificuldade para respirar acabaram por nos levar a um sono profundo , ou seria um desmaio...
Ao acordar, pensei que despertaria de um pesadelo, mas não. Estávamos rodeados por aqueles estranhos seres que nos observavam atentamente como se os ETS fôssemos nós.

Estranhamente, não sentíamos fome. Parecíamos alimentados da luz, que Etezinho continuava a nos oferecer constantemente.

Cheguei a comparar com a nossa água, sem o quê, não viveríamos. Talvez a luz deles fosse tão essencial quanto o nosso líquido precioso.

Em certo momento, nosso passeio parecia ter chegado a um fim. Veículo estacionado, notamos que toda a lateral se movimentava como se fosse içada e franzida. Eu arregalei os olhos. Minutos antes, aquelas paredes pareciam intransponíveis. E agora, assemelhavam-se a folhas de papel. Incrível!

Pelos gestos, concluímos que estávamos sendo convidados a sair. Ao alcançarmos a parte externa, não conseguíamos dominar nossos passos. Sentíamo-nos leves, flutuávamos, não tocávamos aquele  solo árido. Onde estaríamos, perguntávamo-nos entre nós, num outro planeta, na lua, na via láctea? Havia um trânsito de pisca-pisca que ofuscava nossos olhos, despreparados para tanta luminosidade.

Uma mistura de medo e curiosidade tomou conta de nós. Eu tentava um contato com Etezinho, que parece ter sido proibido de relacionar-se conosco. De repente, ficara arisco, olhava-nos com o rabo dos olhos, parecia querer dizer-nos algo, mas sempre havia um deles a espioná-lo e repreendê-lo. Tivemos que nos entregar à nossa própria sorte.

Estávamos impacientes. A brincadeira havia ido longe demais. Eu tinha medo de que nos deixassem naquele solo árido de tom terroso, cheio de depressões. Os indivíduos pareciam estar tranquilos no seu habitat. Não flutuavam. Andavam lentamente, de um lado para o outro, formando grupinhos aqui e ali.
O ar era rarefeito. Começávamos a sentir dificuldade para respirar. Sentíamo-nos absolutamente desconfortáveis.

Nossos homens resolveram confrontá-los. Através de gestos, pediram explicações. Demonstraram não estar gostando da situação. Precisavam saber onde estávamos, quando voltaríamos e o que queriam de nós.

Estavam tão sérios e demonstravam total aborrecimento, curiosidade e perplexidade que um deles tentou comunicar-se, emitindo alguns sons exóticos, que mais pareciam uma música chinesa ou árabe. Fizeram até uma demonstração em conjunto que mais parecia um ballet coreografado.

Aquilo funcionou como num passe de mágica. Por alguma razão inexplicável, nos tranquilizamos como por encanto. Não sei se a delicadeza da tal melodia, não sei se a tentativa de uma explicação, ou a presença constante de Etezinho, que procurava nos transmitir segurança, calma, serenidade, apesar da proibição imposta. Só sei que tivemos a certeza de que voltaríamos sãos e salvos daquela viagem interplanetária.

Nunca saberemos dizer quantas horas durou aquela aventura, ou desventura. Nossos relógios acabaram por parar no tempo. Nunca saberemos com quem estivemos, por que fomos escolhidos e nem para onde fomos transportados.

Só sabemos que nos trouxeram de volta. Da mesma forma que nos arrebataram, nos retornaram. Sem nenhuma explicação, sem despedidas, sem comunicação, sem desculpas. Apenas Etezinho, com aquele seu único olho arregalado e lacrimejante, demonstrava uma espécie de emoção.

Elvira e Valmir tinham uma expressão enigmática. Não nos fizeram nenhuma pergunta. Aquilo nos fez pensar que não era a primeira vez que aquela nave atracava por ali.

Deixei para mais tarde apertar o casal para que nos dessem alguma explicação. Naquele momento, só desejava um bom banho, uma comida quente e uma cama macia cheia de cobertas cheirosas.

Na manhã seguinte, logo cedo, fui atrás da caseira. Ela e o marido deviam ter alguma explicação para o ocorrido.

Eles discutiam. Ele tentava convencê-la de que deviam guardar segredo.   Ela chorava, e eu pude ouvi-la dizer que tinha o dever de revelar.

Não me contive. Empurrei a porta e fui logo perguntando:

─ O que você tem o dever de revelar, Elvira. Vá falando logo. Estou aqui para ouvir.

Ela debulhou-se em prantos e começou a falar sem parar. Valmir ainda tentou, em vão, impedi-la. Aquele segredo devia estar sufocando-a.

Contou que, desde que conseguiram aquele emprego, mantiveram contato apenas com um intermediário dos proprietários, que jamais apareceram por ali.  Imediatamente, foram contatados e ameaçados de morte por extraterrestres, que se faziam representar pelo tal intermediário, um homem estranho no olhar, no falar e no vestir.

Se quisessem garantir o emprego, teriam que manter segredo.

Os estranhos seres sentiam-se proprietários daquelas terras e desejavam fazer dali seu ponto de partida e de chegada na terra. Para isso, costumavam assustar as famílias que ali se hospedavam que, após serem abduzidas, cancelavam a estadia, invariavelmente.

Essa revelação deixou-me extremamente irritada e desconfiada. Contei aos outros e resolvemos que não iríamos embora dali antes do combinado.

Flavio e meus irmãos acharam a história muito fantástica e resolveram investigar. A princípio, por conta própria, mas depois acharam que o caso requeria gente especializada. Contataram um delegado amigo que se interessou pelo assunto.

Rastreando a conta bancária do intermediário, o delegado chegou a  uma bela soma. Pesquisando aqui e ali, descobriu que  os velhos proprietários, ambos com idade avançada e com problemas mentais há anos encontravam-se numa casa de repouso.

 Coincidentemente, a casa de repouso pertencia ao tal homem que, em troca pelos cuidados prestados na casa de repouso, além das aposentadorias de cada um, alugava o imóvel a eles pertencente. A tal nave dita espacial, nada mais era do que uma construção fajuta maquiavelicamente projetada por ele, que a escondia no meio do mato ao redor da casa para no meio da noite trazer para perto, ligar as luzes, e aquele motor infernal que davam a nítida ideia de um disco voador.

Os homens verdes nada mais eram do que contratados para fingirem ser verdadeiros ETS.O tal lugar onde achamos que descemos era um cenário bem feito que bem representava um outro planeta.

Com isso, as pessoas abandonavam a casa antes de vencer o prazo combinado e o dinheiro pago, conforme item do contrato, não era devolvido.

O intermediário foi desmascarado. Seu nome revelado em todas as páginas dos jornais locais.

Os velhos, foram encaminhados para um local idôneo, escolhido pelas assistentes sociais da prefeitura.

Resolvemos empregar Elvira e Valmir nas nossas casas.

Ainda bem que não havíamos revelado nossa experiência a ninguém. De certa forma, valeu pelo que aprendemos sobre OVNIS e ETS. Acho que nunca mais seremos enganados por seres estranhos. Serviu para ficarmos espertos. 

Sabe, ficou uma frustração. Cá entre nós, bem que eu gostaria de ter andado numa nave espacial de verdade.