O HOMEM QUE TRICOTAVA
Jeremias Moreira
Pesadas
nuvens cinzentas cobriam a cidade como um edredom. Era junho e o inverno
chegara impiedoso. Nas calçadas, as pessoas caminhavam encolhidas expondo seus ares
taciturnos. Ao contrário delas me sentia eufórico a caminho da reunião de pré-produção
de um filme de Galak, que acabara de entrar. Galak é um chocolate da Nestlé e dirigir
um filme para essa empresa era sinônimo de prestígio. A reunião seria na Norton
Propaganda às cinco e trinta da tarde. Esse horário me incomodava porque, certamente,
eu pegaria congestionamento na volta para a produtora. Cheguei à Rua General
Jardim e encontrei uma vaga para estacionar próximo à Rua Cesário Mota Junior. Estava
sem talão de Zona Azul. Fui procurar no bar da esquina e a mulher do caixa
apontou para um homem na calçada, todo agasalhado, usando um gorro de lã na
cabeça, sentado numa caixa de madeira e tendo atrás de si, um varal onde
pendurava bilhetes de loteria e talões de Zona Azul. O curioso era que o homem
tricotava. Achei a cena pitoresca, me aproximei e ele me atendeu bem humorado.
Perguntei o que resultaria do seu tricô:
-
Agasalho para os meninos: - respondeu.
Entendi
que se referisse a seus filhos. Comprei uma folha de Zona Azul com validade
para uma hora. Achava que reunião não duraria mais que isso. Em todo caso, combinei
que se ultrapassasse o horário antes da minha volta, que ele colocasse outra,
pelo lado externo do para-brisa do carro, que depois eu pagaria.
A
reunião se arrastou e saí da Agência por volta da oito da noite. O homem não
estava mais lá, mas havia colocado o cartão no vidro do carro conforme
combinamos. Fiquei sem saber como pagá-lo. Nisso, aproximaram-se dois garotos
negros, de mais ou menos onze anos:
- Oi tio, o Neneco falou para o senhor deixar
o dinheiro com a gente! – disseram.
Fiquei
desconfiado. Durante o processo de realização desse filme iria diversas vezes à
Agência e poderia pagar outra hora. Mas, os meninos poderiam estar dizendo a verdade
e seria desfeita duvidar deles.
Ponderei
que se fosse golpe, não seria o fim do mundo. Eu pagaria dobrado, mas tudo
bem. Dei o dinheiro para os meninos e
eles ainda me pediram uma caixinha por tomarem conta do carro.
Na
quarta feira seguinte voltei à Agência para a reunião produção, onde apresentaríamos
os itens que preparamos para o filme. Apesar de frio um sol radiante dava uma
aparência festiva às pessoas. Consegui uma vaga bem próxima de onde estacionei
na vez anterior. Novamente estava sem Zona Azul, mas agora sabia onde
encontrar. Aproximei-me da esquina e lá estava o Neneco tricotando. Percebi
pela cor dos fios, que se tratava de outra peça de lã. Aproveitei para agradecê-lo
por ter cumprido com o nosso combinado do outro dia e contei que pagara para os
meninos.
-
Ah sim! Eles me entregaram o dinheiro. – explicou.
Desta
vez, comprei duas folhas de uma hora cada e combinamos, novamente, dele colocar
quantas fossem necessários até minha volta.
Sem
me dar conta, minha mente elucubrou uma breve reflexão sobre os dias sombrios que
vivemos, com toda espécie de violência, e que nos obriga a viver sempre com um
pé atrás. E, foi inevitável a comparação com o pequeno acontecimento do qual
eu, o Neneco e os dois meninos fomos protagonistas. Não os conhecia, nem eles a
mim. No entanto, o Neneco foi honesto comigo cumprindo o combinado. Eu fui
honesto com ele, pois me preocupei em pagar. E os meninos foram honestos
conosco servindo de intermediários nessa história.
Recebi
o troco, agradeci e me encaminhei para a Agência. Atravessava a rua quando ouvi
uma voz de criança que me chamava. Virei e me
deparei com um dos meninos:
-
Oi tio, posso cuidar do carro?
Acenei
que sim e reparei que o agasalho que ele vestia, era o mesmo que o Neneco
tricotava na sexta feira. Então, entendi sua resposta à minha pergunta. Ele não
se referiu aos seus filhos, mas aos meninos da rua.
Na
Agência, comentei com o Fefeu, um diretor de arte, sobre essa história e ouvi dele
que o Neneco é uma figura bastante popular e conhecida por ações em favor dos
meninos de rua da região.
Por
um bom tempo minha mente se ocupou com esse homem que vive de subemprego e que
talvez seja a único alento para esse grupo de crianças. Uma coisa leva a outra
e não pude evitar lembrar, quando morava em Jaboticabal, nos anos 1960, e que
se estacionava e deixava-se os carros com vidros abertos, portas destrancadas e
as chaves no contato. Também as famílias não trancavam suas casas.
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