A CASA DE MAMÃE - Suzana da Cunha Lima




A CASA DE MAMÃE
Suzana da Cunha Lima

(Raul, sentado à mesa, manuseia papéis, usa a calculadora  com ar cada vez mais desanimado.  Resmunga sozinho, como se seus problemas não tivessem solução. 

Em dado momento entra Celina, sua mulher, senta junto).

- O que foi? Muita coisa para pagar?

- Uma montanha de papéis e não vejo como saldar estas dívidas. Já entrei no especial há muito tempo,  e outro dia, tive que vender minhas abotoaduras de ouro, que ganhei de meu PAI, lembra?

(Celina faz um gesto de enfado, olhando desdenhosamente para o marido)

- Claro que lembro, é só no que você fala desde que casamos. Sou filho único, papai me deixou estas abotoaduras, o relógio Rolex e uma câmera Cannon, profissional. E uma casa, não se esqueça.

(Raul olha para a mulher acusadoramente, impaciente)

- A casa só vai ser minha após a morte de minha mãe, você está cansada de saber disso. E o relógio e a Cannon já se foram há muito tempo, para pagar todas estas frescuras suas. (revolve os papéis, pega um)

- Olha só, massagista, Pilates, cabeleireiro toda semana, e também tem... (procura algo  na papelada) um tal de peeling e mais limpeza de pele, drenagem linfática... Uma loucura estes preços... Simplesmente não posso pagar, vamos ter que acabar com tudo isso.

(A mulher dá de ombros) Quando eu me casei já fazia isso tudo e combinamos que eu não ia abrir mão de nada. Tenho culpa se você é um incompetente e não sabe como segurar um emprego?

(Raul se levanta furioso) = Você acompanha as notícias de jornal? Não soube da tal reengenharia que trocou gente experiente sênior por estes mocinhos saídos das fraldas, porque era mão de obra mais barata? Você é totalmente alienada e eu sou culpado porque  atendi a seus caprichos caríssimos e até comprei esta casa enorme com piscina, que nem sei como vou pagar, muito menos fazer sua manutenção.

 – E  eu com isso, Raul? Você tinha uma posição na firma, devíamos mostrar que estamos bem. Agora não sei bem o que você vai fazer, mas pense naquela proposta que fiz.  Chamamos sua mãe para morar conosco e vendemos a casa onde ela mora de favor, pois é sua. Com o dinheiro pagamos todas as dívidas. Pronto, está resolvido.

- Minha mãe não mora de favor, coisa nenhuma. Papai deixou a casa para mim e para ela. Eu não podia cortar a casa no meio, não é? E ela sempre morou lá, foi lá que nasci e cresci. Imagine se vou arrancar minha mãe de um lugar que ela gosta tanto...Onde já se viu tamanha maldade?  Vamos é cortar despesas, isso sim e vou começar baixando seu limite no cartão de crédito.

(A mulher levanta-se num salto )- Pense bem Raul.  Você está neste emprego agora, porque meu pai lhe ajudou, pediu ao Dr. Fonseca. E tem até uma promessa de promoção quando fizer seis meses no cargo. O que você acha que vai acontecer quando eu disser a papai que você quer cortas meus gastos? (Celina sai da sala triunfante)

(Raul senta outra vez, empalidece, junta todas as contas, coloca numa pasta e fica pensando, enquanto remoe a raiva)  Vou ter mesmo que conversar com mamãe.  Não sei o que ela vai dizer, mas acho que vai gostar de vir para este bairro, é mais chique e terá os netos mais perto. (E pega o telefone para marcar uma visita.)

(No outro lado do palco, está montada uma sala modesta mas aconchegante. Vê-se uma senhora no fogão – Pode-se fazer dois cenários, com o recurso de iluminar somente aquele onde ocorre a cena. O telefone toca, a senhora que estava na cozinha enxuga as mãos no avental e vem atender)

- Alô, quem é? Raul? Que bom ouvir sua voz, meu filho. Parece preocupado. (silêncio, ela está ouvindo a resposta) Só quer me dizer pessoalmente? Então venha almoçar hoje comigo, Raulzinho. Por sorte, estou fazendo aquela carne assada que você gosta tanto, com vinho, sabe? Hein? Aceita? Então estou lhe esperando. Chegue meio dia, para dar tempo de conversarmos.

(Raul chega na casa de mãe e fica olhando com ar de saudade para a rua, a praça com o colégio onde estudava, e o cheiro bom do jasmineiro cultivado com carinho pela mãe. Toca a campainha. Vem uma senhora atender alegre, de braços abertos, abre o portãozinho, abraça o filho)

- Oh, Raulzinho, que bom ver você... Está mais magro, filhote? 

- Estou no peso, mãezinha. Não se pode ficar gordo nesta idade, sabe, o colesterol, veias entupidas... (entram abraçados na casa – sala modesta, um sofá com almofadas, uma cadeira de balanço, televisão grande, vasinhos de flores, paninhos bordados. Sentam-se no sofá)

- Mas diga meu filho, o que o trouxe aqui?

- Saudade, mãe, tem tempo, não é? Você nunca vai lá em casa, daqui a pouco os meninos não vão saber mais quem é a avó deles. Ah, Celina lhe mandou um abraço.

- Mas imagina... Se você, que tem carro, é difícil aparecer aqui para visitar a velha mãe, que dirá eu, que dependo dos outros ou de um ônibus que só vem de hora em hora?:(olha mais séria para Raul, faz um afago em sua mão) Acho também difícil que Celina tenha me mandado um abraço, aquela ali... só pensa em chiquezas e dinheiro e está doida para eu morrer para vender esta casa. – (suspirou Raul que não sabia o que dizer, estava com aquela cara de paisagem, quando se diz mentira – passou a mão em volta do ombro da mãe e começou a conversa, a mais difícil de sua vida). 

- Celina é assim mesmo, mamãe, mas é de bom coração. Hoje mesmo ela estava me dizendo como está preocupada com a senhora, aqui sozinha e tão longe. E não tem jeito de você gostar de celular.. Se ocorrer alguma coisa não vai dar para a gente vir aqui correndo. Então pensamos juntos que seria realmente bom a senhora vender a casa e ir morar com a gente. Que acha da ideia?

(A mãe olha surpresa para o filho, abana a cabeça.)

-Ah, Raulzinho, não tem jeito de eu sair daqui não. E onde eu moraria na sua casa? Só tem 3 quartos e seus filhos ocupam um quarto cada um. Com certeza vocês estavam pensando em me botar naquele quartinho úmido dos fundos, não é? O que era da empregada.

- Mãezinha, a gente reforma o quarto, pinta tudo bonitinho e lá o banheiro ia ser só seu.

- Você já reparou que o chuveiro daquele banheiro fica em cima do vaso? A gente tem que tomar banho com os pés na tampa do sanitário, imagine... E a janela do quarto dá para a área da vizinha. Eu sou sua mãe, Raulzinho, a pessoa que lhe pôs no mundo. Cuidou de você o tempo inteiro. Seu pai comprou esta casa para mim, porque eu gostei muito dela. Tem um quintalzinho na conta certa para eu pendurar minhas roupas  e um jardim pequeno que eu mesma cuido.  Por que eu ia querer sair daqui, diga? Estou muito bem, não preciso de celular, o telefone da sala funciona muito bem. Meus vizinhos nos conhecem há tempos, estou há quase cinquenta anos aqui. É uma vida, sabe? (enquanto a mãe fala, vai apontando para os lugares que cita e ficando agitada)

- Sei disso, mãezinha, não fique nervosa, por favor. – (Raul tenta levar ela para o sofá outra vez)

- Bom, se foi para isso que veio perdeu a viagem. – Se quer almoçar, num minuto ponho tudo na mesa e podemos conversar de outras coisas.  (ela olha para o filho inquisitivamente, ainda de pé)

- Almoço com você, mãezinha.  (Raul se senta no sofá – a mãe vai à cozinha e traz os pratos de lá para colocar na mesa. – carne assada e macarrão com olho de tomates – os dois se sentam e ela vai servindo ao filho e conversando)

-Quando você pôs os pés aqui em casa, já vi tudo. Você está com problemas e não quer me contar.. O que é? Vá, menino, sou sua mãe, não uma estranha qualquer. Em primeiro lugar eu vejo que seu casamento vai mal das pernas. Estou certa?

- Verdade, mãezinha. Eu e Celina brigamos muito por conta dos gastos excessivos dela. Ela não sabe viver com o que eu ganho. O pai sempre deu uma gorda mesada e continuou dando, mesmo depois de casarmos. Isto é uma humilhação para mim.

- Não vou dizer “Eu não disse”? Porque é sacanagem. Mas vocês dois não combinam em nada. Assim te olhando, posso jurar que há muito tempo nem transam mais. (ela vai servindo o filho e também se servindo, enquanto conversa)
- Mãe, isso é lá coisa que se pergunte?( Raul embaraçado quase enfiava a cara no prato)

- Mas está na tua cara, meu filho. Que é que tem? Acontece com qualquer casamento. Só precisa saber a razão disso. Para curar, se der.

- Acho que para o meu não tem mais jeito a dar, não. (Raul leva o guardanapo à boca, toma um pouco d’água) Somos diferentes em tudo. 

- Bom, não é o fim do mundo. Tudo se ajeita. Dá metade do que tem para ela e resolve com o juiz as visitas dos filhos. Pronto, não precisa fazer esta carinha de cachorro escorraçado.

- Ainda tenho dívidas a pagar, mãezinha. E se eu me separar acho que nem seguro o emprego que estou.

- Arranja outro, porque este deve ser o que o pai dela arrumou para você, não é? É uma situação ruim, esta, Raulzinho. Você deve ter um emprego que você mesmo buscou.

- Sei bem, mãezinha e tem razão. Hoje já vai começar a brigalhada porque vou dizer que você não vai vender a casa de jeito nenhum.. Ah, espero que você dure muito ainda, mãezinha. Sinto muito sua falta (e Raul sai da cadeira e se ajoelha perto da mãe, aos soluços) 

(A mãe acarinha seus cabelos e o leva para outra cadeira)

- Isto tudo vai passar mais depressa do que imagina. Vou trazer a sobremesa. Ovos nevados,  sei que gosta muito. Dá trabalho, mas vale a pena para ver o sorriso de alegria nos rostos de vocês.

- Vocês? Não estou vendo ninguém mais aqui.

- Mas vai ver. Ele sempre chega na sobremesa. Dá plantão na Igreja até uma da tarde e depois está livre para fazer seus bicos. Conserta qualquer coisa..  Mas antes passa aqui para filar minha boia. (a mãe sorri alegre, enquanto tira os pratos sujos, e coloca outros, limpos, mas a terrina do doce na mesa. )
(Raul fitava a mãe perplexo):

- Mãezinha, não entendi nada.. Pelo amor de Deus, tem tanto vigarista no mundo. 

Você deve estar correndo um risco danado. Agora sou eu que estou preocupado em lhe deixar sozinha. Quem vem aí?

A mãe sorriu com aquele sorriso aberto, contente.

- O Jeremias. E antes que você pergunte, eu lhe digo:  o conheci na Igreja. Eu estava levando a sobra do almoço para lá.

. - E por que você fazia  tanta comida assim, para que sobrasse, mamãe? 

 -Na esperança que você viesse almoçar comigo, como era nosso costume, antes de você se mudar para tão longe. Tudo por capricho de sua mulher que tem mania de grandeza.

- Nem sei o que dizer mamãe. E aí, o que tem o Jeremias com isso?

- Ele estava na Igreja nesta hora,  porque lá dão almoço para quem precisa.

- Mãe, esse Jeremias é homem de rua? (Raul estava ficando cada vez mais nervoso com aquela história maluca)

- Era mais ou menos, até me conhecer. Eu já estava levando a sobra há uns quinze dias, e me sentindo muito triste, porque estes homens de rua não tem paladar para apreciar minha comida. Praticamente devoravam tudo, quase sem mastigar. 

Eu estava pensando em dar outro destino para minha sobra de almoço, quando dei de cara com ele, o Jeremias.  Olha, foi na hora, bati o olho nele e pensei: Este é um homem que vai saber apreciar a minha comida. Vê-se que é um homem fino, tem maneiras educadas..

-  Como, só de olhar para ele? Devia estar maltrapilho, até cheirando mal, pois não dormem na rua?

- Não, Jeremias é diferente. É muito asseado, anda bem limpinho. Dormia na casa dos padres, faz muito serviço por lá. No quarto de despejos, onde se guarda toda sorte de cacarecos. O que sei é que arranjaram um lugarzinho, colocaram um colchonete e pronto!  Tudo que ele precisa a vizinhança arruma, porque é um homem jeitoso com tudo, conserta, reforma, tem a maior boa vontade.

- E como esse homem veio parar aqui, mamãe? Já não tinha um lugar com os padres?O que é que você tem a ver com esta história?

- Ora, tenho muita coisa a ver, sim senhor. Ele precisava muito mais do que um lugar para dormir. Precisava de atenção, de uma boa conversa, de quem cuide deles, lave direito suas roupas, essas coisas..Homem sozinho não sabe se virar bem, como nós, mulheres. Além do mais o lugar onde ele morava era muito apertadinho.  Então resolvi trazer ele para aqui. Tem espaço sobrando.  Precisa ver como o Jeremias anda agora.  Peguei umas roupas boas que era de seu pai, ele tem quase a mesma altura, ajeitei tudo, lavei e passei, ele anda por aí que nem um executivo. E agora eu tenho uma companhia para almoçar. Não é uma beleza? (ela olha pela janela e diz) Lá vem ele, bem na horinha.

(Raul abre a boca para dizer qualquer coisa, mas antes de emitir qualquer som,  sua mãe abre a porta  e no seu mais largo sorriso lhe informou:

- Aí está ele, o Jeremias, meu namorado, meu filho.
- FIM


(Baseado livremente no filme argentino “´Conversando com Mamãe”.

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