Sodaroman - Sérgio Dalla Vecchia

 


Sodaroman

Sérgio Dalla Vecchia

 

Os casais formados por pessoas que passaram a maior parte de suas vidas intrinsicamente, não deveriam absorver, ao meu entender, o título de eternos namorados. Esse substantivo se adapta muito bem aos principiantes, que se alimentam exclusivamente do amor virgem, de quem nada conhece, mas sonham embevecidos pelo porvir. Isso é lindo!  Entretanto, para nós veteranos pode ser considerado até como um não reconhecimento das nossas proezas.

Logo, o dia dos namorados tradicional não deveria ser comemorado por tais casais.

Esses vencedores, conseguiram sobreviver aos contraditórios da vida por anos a fio, até agora no limiar das suas existências, equilibrando-se sabe Deus como, na gangorra da vida.

Para esses, o doze de junho careceria ser trocado, de dia dos namorados para dia dos sodaroman!

Mas que palavra estranha é essa sodaroman, o leitor curioso poderá perguntar?

Simples, nada mais é que a palavra namorados às avessas e representa fielmente toda a trajetória de vida do casal.

(Só Dá Romance), o ce inseri apenas como sílaba figurante.

Assim para comemorar o dia dos sodaroman, seria gratificante que cada casal criasse seu romance de forma retroativa, repassando toda a vida em comum e decerto capítulos não faltarão!

Que não esqueçam dos filhos, das lágrimas, das conquistas e das tantas outras cenas marcantes, romanceando-as de agora para outrora até culminar no inesquecível primeiro beijo.

Ah! Momentos mais intensos e apaixonantes foram muitos, bem lá no começo do fim!

Feliz dia dos sodaroman a todos os casais veteranos!

12/06/2025

 

 

 

 

EMOÇÃO - Antonia Marchesin Gonçalves

  


EMOÇÃO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

         Minha cidade Jesolo, província de Veneza, Itália. Fui com o um propósito de levar meus livros bilíngues para os meus parentes. Aproveitei para visitar também a Biblioteca da cidade para deixar os dois livros para consulta rotativa. E, para a minha surpresa, pediram mais dois exemplares que fariam parte do acervo da Biblioteca como escritora 

ESMERALDO (PELÉ) - Sérgio Dalla Vecchia

 



ESMERALDO (PELÉ)

Sérgio Dalla Vecchia

 

Esmeraldo era um menino diferenciado. Tomava conta de carros no largo Santa Cecília, em São Paulo. Lá, além da Igreja, havia uma boa loja de tecidos denominada Padrão Chique.

Ele, como outros tantos meninos negros na época, levava o apelido de Pelé. Privilégio daqueles que poderiam ser comparados ao famoso jogador de futebol chamado Edson, mundialmente conhecido e que eternizou seu cognome Pelé.

Esmeraldo, irei retratá-lo doravante de Pelé, enxergava todas as pessoas com a mesma cor. Igual para igual, sem restrições. Respeitava e recebia em troca o respeito.

Assim, com sua simpatia impar e um sorriso da maior boa-fé, conquistou o carinho das pessoas da praça.

Lavava carros, carregava sacolas e distribuía gentilezas, sempre com o sorriso largo que o caracterizava.

Certo dia, a dona da loja de tecidos, habituada aos predicados do menino, achou por bem o convidar para trabalhar na loja.

Pelé já não lavava mais carros, era um ótimo ajudante de serviços gerais.

Passaram-se anos, mas por motivos comerciais a loja de tecidos acabou cerrando as portas. O menino cresceu e já era di maior.

Meire, a dona da loja, preocupada com o futuro do Pelé, fez alguns contatos e conseguiu um emprego em um posto de saúde, onde ele lá trabalhou até se aposentar.

Nesse ínterim aconteceu o casamento dele com Dina e tiveram dois filhos.

Com sacrifício, um formou-se engenheiro civil e o outro seguiu no mercado de trabalho.

Aconteceu que Luiz, primo da Meire, possuía uma construtora e, por conviver com o histórico de Pelé, estendeu a mão contratando seu filho engenheiro. Onde trabalhou durante anos até sair para montar uma pequena empreiteira de obras.

Uma das características peculiares do Pelé foi o reconhecimento das ajudas que recebeu durante seu desenvolvimento como pessoa.

A forma mais carinhosa que encontrou foi levando chocolates para os membros da família na Páscoa e no Natal por anos a fio.

Pelo destino, quase todos da família nos trocaram pelo plano espiritual.

Atualmente, Pelé mora em Atibaia e mantém uma lanchonete com um dos filhos. O outro engenheiro continua firme com sua empreiteira em São Paulo.

Assim, por ser minha esposa um membro da família e eu o conhecer desde o tempo de namoro, temos a regalia de continuar recebendo-o em nosso lar ainda hoje.

Adoçando nossas vidas com chocolates e nos alegrando com seu sorriso despretensioso.

Testemunho essa história viva de superação de quem nada buscava, apenas rasgou seu coração puro para o Universo, que prontamente reagiu, dando-lhe as oportunidades necessárias nos momentos certos.

 

 

 

 

 

DETETIVE APOSENTADO - Antonia Marchesin Gonçalves

 



DETETIVE APOSENTADO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

             Silvio estava inconformado por ter que se aposentar, mesmo após quarenta e cinco anos de intensas atividades.

          Recém-aposentado, decidiu mudar-se para a sua casinha na praia de São Vicente. Recentemente, perdera a esposa após longo tratamento de câncer, tinha certeza de que lá teria qualidade de vida.

           Após um mês da mudança, já estava ambientado na cidade e se aventurava a algumas caminhadas na orla. O sol ofuscava sua vista, para evitar isso, além dos óculos, ele usava o chapéu de palha importado do Caribe. 

         Nesse dia, percebeu que no final da rua havia um grupo de jovens dos seus dezoito anos, rindo muito e brincando entre eles com tapinhas nas cabeças. Eram seis garotos. Ao passar pela calçada, começaram as gozações. Vizinho novo, diziam e um deles pegou o chapéu e, debochando, punha na sua cabeça:

— Oi, fico bem de chapéu de velho?

             Pela sua experiência, Silvio viu se tratar de marginais delinquentes. Lançou a mão na tentativa de tomar de volta seu chapéu.  Foi aí que começaram a passar de uma mão para outra, na brincadeira de “bobinho”. Ele está no meio tentando pegar o chapéu, todos rindo. Irritado, tentou dar um soco no que estava mais perto, foi em vão. Sentiu-se humilhado e furioso, partiu pra cima dos outros, foi aí que começaram os pontapés, tapas na cabeça. Muitas risadas; olha o velhinho querendo reagir, diziam. Foi quando levou um pontapé no estômago e desmaiou.

             Quando acordou, um vizinho que tudo assistiu chamou a polícia. Sentiu-se revoltado, os policiais contaram que não conseguiam domar essa pequena gangue e que tinham a proteção do chefe do morro.  Viu seu chapéu no chão, ainda bem que não estragou, “vou acabar com eles, isso não vai ficar assim” — pensou.

            Nos dias seguintes, Silvio chamou o seu parceiro da polícia João, que também estava recém-aposentado e contou o caso. Juntos, resolveram que iriam dar uma lição nos marginais.

             Lógico que eles, os marginais, demoraram um tempo para voltar na sua rua. Silvio descobriu que eles atuavam nas vizinhanças por diversão e também para pequenos furtos, como dinheiro e relógios, sempre de idosos. Silvio e João convocaram a nova geração de policiais detetives da ativa, seus amigos e armaram um plano. Os dois seriam a isca e ao serem abordados com a escuta, chamariam seus colegas de folga.

               Assim foi. Num final da tarde, caminhavam pela orla quando viram o bando, os mesmos seis.

             Ao passarem, foram abordados e as mesmas brincadeiras com as agressividades, Silvio deu o alarme na escuta e mais quatro amigos vieram de imediato. Deram a maior surra nos delinquentes. Apavorados, prometeram não mais voltar. Finalmente, Silvio e João puderam gozar de suas aposentadorias em paz.

            

 

            

            

Lembranças da Escola. - Sérgio Dalla Vecchia

 



Lembranças da Escola.

Sérgio Dalla Vecchia

 

Grupo Escolar Érico de Abreu Sodré, inaugurado há duas quadras da nossa casa na Rua Luiz Góes. Ano esse que coincidiu com a idade apta para se ingressar na Escola Primária na época.

Pérsio e eu somos irmãos gêmeos univitelinos, portanto, juntos fomos matriculados naquele Grupo novinho em folha.

A emoção foi grande para os nossos poucos sete anos.

Primeiro contato com os colegas, a professora Alcione, a cartilha de alfabetização Caminho Suave, a merenda e tantas outras novidades. Enfim, um novo mundo surgiu!

Nesse período de adaptação, algumas crianças sentiram o impacto do inusitado, disciplina, ordem e tarefas a se cumprir. Daí surgiam choros, birras e outras manifestações. Assim, aflorou no meu irmão uma reação de insegurança. Ele não conteve a emoção e a descarregou nas próprias calças. Era cocô mesmo!

A diretora atenciosa tomou as providências e nós fomos para casa! Pérsio, envergonhado, cabisbaixo, me segurou e, de mãos dadas, lá fomos nós para os braços seguros da Mamãe Yvette. Os dois choravam, ele pelo cocô e eu por solidariedade, mas nada que um abraço caloroso de mãe e um bom banho não curasse.

Eu me senti um herói pela segurança que lhe ofereci, escoltando-o pela Rua Acarapé.

Esse fato ocorreu só uma vez, pois ele logo entendeu a nova vida e a aceitou tranquilamente.

Assim, tudo se acomodou e o aprendizado ia muito bem, éramos bons alunos.

Vieram as esperadas férias de julho e a família foi para a fazenda do vô Chico, no município de Ibitinga.

Era só alegria, passeios a cavalo, mergulhos no poção, ordenha das vacas, leite purinho na hora, laranjas no pé e gomos de cana-de-açúcar para mascar.

Tudo ótimo, mas acabaram-se as férias.

Saída de madrugada, vô Chico e vó Maria emocionados no portão nos acenando, e o Ford 51 partiu para a jornada de quase seis horas, com direito à estrada de terra e suas sequelas.

Enfim, São Paulo!

Jururus, seguimos para a Escola logo no dia seguinte. Flashes das férias ainda pipocavam nossas mentes.

Ocorreu que, no auge da aula, uma angústia incontrolável me envolveu e cresceu a cada segundo até extravasar em lágrimas.

Envergonhado diante dos colegas, debrucei-me sobre a carteira escolar. Surgiram soluços e logo a professora me acudiu, dirigindo-me à diretoria.

Serenado com as palavras carinhosas da diretora, fui contendo o choro até que ela, em momento propício me indagou:

— Por que você está tão triste, Sérgio? Pode desabafar comigo, querido!

Ainda melancólico, encarei, foquei firme os olhos dela, criei coragem e lasquei o verbo:

— Saudades de Ibitinga!

Lá se foram os gêmeos de mãos dadas outra vez para casa.

Pelo menos dessa vez, sem cocô, somente lágrimas.

 

 

 

Cheiros de São Paulo - Sergio Dalla Vecchia

 


Cheiros de São Paulo

Sergio Dalla Vecchia

 

Na minha longa trajetória de engenheiro civil de infraestrutura, oportunidades não me faltaram para conhecer diversos lugares, pitorescos às vezes e nem tanto em outras.

Minha área de atuação era na cidade de São Paulo e municípios adjacentes.

Por tanto dirigir o automóvel pelas ruas e avenidas, meus sentidos se acostumaram e gravaram determinados aromas, odores, cenas características de locais, sensações prazerosas e tantas outras nuances da terra de Piratininga.

O cheiro, decerto, locai, mesmo antes de lá chegar, meu GPS humano informava as coordenadas, era meu Waze.

Descrevo abaixo algumas sensações captadas pelos meus cinco sentidos que me tocaram:

Quando chegava a São Paulo pela rodovia Castelo Branco, já na confluência do Rio Tiete com o rio Pinheiros (Cebolão), já salivava com os cheiros adocicados de uma fábrica de aromatizantes naquela região, ora cereja, ora uva, morango e tantos outros sabores.

Na construção da av. Escola Politécnica, o aroma dos panetones ao forno na fábrica ali instalada na época melhorava em muito o meu humor.

Na zona Leste, em São Miguel, durante a construção de um coletor de esgotos, o trajeto passava defronte a uma pequena fábrica de biscoitos champanhe. Ali, o aroma dos farináceos rodando pelas esteiras pós-fornada me seduzia.

Convidado pelo proprietário da fábrica, tive o prazer de degustar alguns desses biscoitos quentinhos retirados na hora. Inesquecível!

Já na zona Oeste, em Itapevi, tive o privilégio de ir à inauguração da Casa Suíça da Wickbold. Lá presenciei a extrema qualidade dos bolos, acompanhando a produção e degustando fartamente cada produto, hipnotizado pelo cheiro dos fornados quentinhos.

Na zona sul, existia uma fábrica de pães da Pullman, de longe eu a identificava. Que delícia!

Não poderia esquecer das cores e perfumes das orquídeas, mantidas em luz, temperatura e umidade ideais, nos orquidários do Parque do Estado, onde peixes coloridos desfilavam em pequenos canais de pedra, completando o cenário paradisíaco. E, na área ao lado, o canto dos pássaros e os urros das feras do Jardim Zoológico descerraram as cortinas do palco.

Não citei o mau cheiro dos rios Pinheiros e Tiete, pois notei, presentemente, evidências de revitalização, como dragagem do leito, paisagismo das margens, construção de usinas de tratamento de esgotos, efluentes e outras medidas oportunas.

Assim, finalizo este texto revigorado pelo oxigênio das Matas do Horto Florestal na zona Norte!

Sou otimista, ainda teremos uma São Paulo de rios piscosos, despoluída e repleta de cheiros agradáveis.

Difícil, mas não impossível!

 

 

 

 

Filía, a formiguinha corajosa - Adriana Frosoni

 


Filía, a formiguinha corajosa

Adriana Frosoni

 

Num jardim cheio de folhas, flores e cheirinhos gostosos, vivia uma formiga muito especial: Filía. Ela era uma formiga batedora, aquela que ia à frente procurar comida para todo o formigueiro. E olha... isso não era tarefa para qualquer uma! Filía tinha um faro afiado, patinhas rápidas e um coração do tamanho do mundo.

Ela adorava explorar. Enquanto suas amigas formigas preferiam ficar perto de casa, Filía queria ver o que havia além das pedras, além da cerca, além do mundo que conhecia.

Certo dia, bem cedinho, Filía sentiu um cheiro diferente no ar… doce e delicioso. Era um pêssego maduro caído no quintal do vizinho. Só que o pêssego estava longe, muito longe. Mesmo assim, Filía nem pensou duas vezes. Saiu em disparada, deixando seu caminho marcado com feromônio — um perfume mágico que as outras formigas entendem como um “siga por aqui!”

Quando Filía chegou ao pêssego, ficou com os olhinhos brilhando. Era enorme, dourado e suculento. Ela deu uma pequena mordida e quase dançou de alegria!

Mas… quando tentou voltar para casa… cadê o caminho?

Uma criança havia pisado, sem querer, justo em cima do seu rastro! O cheirinho que mostrava o caminho de volta havia sumido completamente.

Filía ficou parada, com as anteninhas tremendo. Estava sozinha. Muito longe de casa. E pela primeira vez… teve medo.

Então, ela lembrou-se da voz de sua mãe:

— Filía, ser corajosa não é não sentir medo. É seguir em frente mesmo assim!

E foi aí que Filía teve uma ideia brilhante: se ela não podia voltar, que tal chamar as amigas até lá?

Então ela começou a andar em círculos, soltando um aroma — diferente do primeiro — que significava:

“Venham! Achei um tesouro! Estou aqui!”

E não é que funcionou?

Logo, uma linha de formiguinhas apareceu! Vieram seguindo o cheiro da Filía e, juntas, carregaram pedaços do pêssego de volta para casa.

Nesse dia, Filía virou heroína. Mas ela não ficou parada para ouvir os elogios. No dia seguinte, antes mesmo do sol acordar, lá foi ela de novo:

Nariz empinado, o passo apressado e um sorrisinho de conquista escondido.

Afinal, ser batedora é isso: ter coragem de ir aonde ninguém foi — e nunca esquecer o caminho de casa, nem os conselhos da mamãe.




Cabelos perfumados - Ledice Pereira

 




Cabelos perfumados

Ledice Pereira


 

Aquele cheiro de cabelo lavado invadia o ambiente. Tudo ali cheirava a xampu. Mas, onde andaria Gabriela? Procuraram por todos os cantos. Vasculharam cada centímetro do quintal, do ateliê, que ficava no fundo, das ruas de terra, adjacentes. Nada.

Há alguns dias, Gabi não respondia aos chamados telefônicas da família. Estavam todos preocupados. Os rastros de pé molhado indicavam que ela havia saído do banho em direção à porta que ficara semiaberta.

Todos se perguntavam aflitos o que teria acontecido. Cada grupo saiu para uma direção à procura de sinais que levassem a alguma direção.

Aquele perfume os levaria a algum lugar.

A família se perguntava por que não tinha impedido a jovem de se enfiar naquele fim de mundo cercada de floresta por todos os lados.

Os cheiros de mato se misturavam. Eucaliptos, Pinheiros, Manacás, Bromélias, Capim Cidreira, tudo fazia com que os cães farejadores pudessem se perder na procura daquele perfume molhado dos cabelos de Gabi.

Estavam a perder a esperança quando deram com aquela figura que vinha trôpega em sentido contrário. Não se parecia com a jovem cheia de vida que todos conheciam. Ao vê-los, deixou-se cair sem sentidos.

No hospital, para onde a levaram, passou por exames. Havia marcas de amarras em seus punhos, seu corpo estava marcado por picadas de insetos, os cabelos estavam emaranhados, embora ainda exalassem aquele perfume adocicado que direcionaram os cães, e as roupas rasgadas revelavam sinais de agressão. Teriam que aguardar que ela saísse do coma para se inteirar do acontecido.

Só sabiam que não permitiriam mais que ela vivesse ali isolada.

 

 

 

 

Cheiros e Lembranças

 

Ainda hoje posso sentir aquele gosto amanhecido de pãozinho francês, que me remete aos momentos de infância passados na casa dos meus avós.

Fecho os olhos umedecidos pela saudade e enxergo a figura do meu avô, lépido e baixinho, preparando com amor o lanche da tarde.

Era ele que passava o café que perfumava o ambiente atravessando o cômodo e atraindo-nos para a cozinha.

Como esquecer aqueles momentos tão simples, tão sinceros?

Saudade de uma infância com cheiro de carinho.

 

Com Netuno não se brinca - Sérgio Dalla Vecchia

 



Com Netuno não se brinca

Sérgio Dalla Vecchia

 

Lua de mel, período marcante para os casais, momentos felizes com muito amor e novas experiências, normalmente vividos em terras além-mar por noivos mais afortunados.

Bruno e Cintia casaram-se, sendo agraciados com uma viagem para a Europa bancada pelos pais.

Primeiro Lisboa, depois Madri e finalmente Paris, foi a rota escolhida.

Já em Paris, alugaram um automóvel e rumaram para a Normandia, região litorânea dos ventos incertos, fortes, grandes marés e lindas falésias escarpadas.

Cenas de guerra, naufrágios e os imponentes faróis convidaram o casal a conhecê-los in loco.

Após serpentearem pelas pitorescas estradas, chegaram à cidade de Étretat. Lá se encontraram com falésias, que erodidas pelo mar por anos a fio formaram diversas grutas e também praias paradisíacas.

Empolgados, pisavam na branca areia, carimbando-a com as solas dos pés, enquanto rodopiavam de alegria em abraços unissos.

Assim, fotografando, fazendo poses, caminharam até chegarem a uma gruta.

Curiosos transpuseram a apertada boca de entrada, reclinados com água nos joelhos.

O que viram foi deslumbrante! Havia uma piscina natural azul, que, contrastando com a incidência dos raios solares, formavam uma aura singular.

Radiantes penetraram mais a fundo, singrado o azul da piscina salgada, de onde tiraram mais fotos, trocando beijos e carinhos intermináveis.

Assim, o tempo foi passando e a maré subindo.

O casal só se deu conta do ocorrido quando se desenroscou dos carinhos e resolveu retirar-se da gruta. Era tarde demais, não havia mais saída, a maré recheou por completo a entrada.

O desespero aflorou. O que fazer! Martelava nas cabeças dos jovens.

Então Bruno, observador que era, notou vestígios deixados pela maré nas pedras, e a que lhe pareceu mais segura para se protegerem das águas foi uma rocha grande mais ao fundo. Rápido, tomou a esposa nos braços e para lá se dirigiu.

Já sobre a pedra, desceu a companheira, que, apavorada, não parava de gritar.

— Vamos morrer, socorro!

O marido, a muito custo, conseguiu acalmá-la, prometendo que não morreriam ali de forma alguma. Netuno não permitiria!

Assim, abraçados como nunca no topo da pedra grande, somente ouviam o som do mar raspando nas pedras acompanhado pelo bater acelerado dos corações.

Nada a fazer, apenas aguardar!

Flashes de momentos passados pipocavam o casal.

O início do namoro há cinco anos era o que mais pensavam:

A mão na mão, arrepios e logo mais o inesquecível primeiro beijo que selou o início do namoro.

O casamento parecia estar acontecendo naquela gruta, tamanha a lucidez dos noivos, acuados pelo destino incerto e abraçados tremendo de pavor, aguardavam a providência divina.

Assim, lavando os pés dos jovens, a preamar atingiu sua cota máxima e passou o bastão da esperança para a baixa-mar, que a levou junto ao corpo até transpor a estreita saída para a vida.

Netuno não se arrependeu de salvá-los.

O amor prevaleceu!

 

 

 

Memórias de um tempero - Yara Mourão

 




Memórias de um tempero

Conto Sensorial: Olfato

Yara Mourão

 

O restaurante estava cheio. Muita gente falando alto, garçons apressados, tudo o que estraga um bom almoço de domingo.

Isso me causou um distanciamento do que estava à minha volta e tive uma fuga mental para bem longe dali. Na verdade, foi o tempero de um peixe assado que me transportou para lugares entre pessoas de outro tempo e lugar. Para um dia enfumaçado na memória, quando meu irmão chegou do Canadá com uma sacolinha de temperos estrangeiros. Ele comprou um peixe e, amigo e companheiro, veio em casa preparar o legítimo peixe assado canadense!

Mas que dia feliz!

Tudo começou no limpar o bicho ao som de Vivaldi; daí, temperá-lo com nobre esmero: sabores distantes, aroma de neve, capricho talhado no prazer de agradar.

Enquanto o peixe assava, ouvíamos as histórias daquele país longínquo, contado em detalhes amorosos por meu irmão, que sabia o quanto eu apreciava tudo aquilo.

E foi a fumaça mágica do forno e também o cheirinho estrangeiro que se insinuou pela casa, a música e o frio outonal, que marcaram um instante de imensa saudade na minha memória.

Embalada por esse quase sonho, fui retornando ao restaurante barulhento. Olhei à volta e nem me aborreci mais. O cheiro do tempero daquele peixe assado foi o melhor guia de sentimentos felizes num mero domingo, cercada de gente barulhenta, num almoço nada especial, mas que me trouxe um tesouro escondido de saudade sem fim.

 

UM ESPÍRITO INCOMODADO - Sérgio Dalla Vecchia




UM ESPÍRITO INCOMODADO

Sérgio Dalla Vecchia

 

João, é assim que irei chamá-lo. Poderia ser José, Antônio ou outro nome bíblico qualquer.

Yvette era a companheira e esposa. Poderia ser também Odette ou outra ette qualquer da bela época.

João e Yvette casaram-se, ele viúvo, e ela novinha nos seus dezessete anos, com uma vida pela frente.

Dessa união surgiram quatro filhos em intervalos de quatro anos cada.

O casal vivia muito bem, ela dona de casa exemplar e ele advogado sério e formal.

A harmonia existia naquela família até que, num certo feriado, o casal foi repousar após o almoço, quando do nada a porta do quarto se abriu e um só saiu do quarto em desespero. João ficou paralisado na cama por um AVC.

Ambulância, prantos, hospital e logo o funeral. Lá se foi o João. De cima, seu espírito incomodado observava a confusão.

Não entendia nada. Como pôde haver uma mudança tão brusca na sua existência? Da cama para o etéreo!

Deveriam ter me avisado de que morreria naquele feriado. Mas assim, de supetão, um advogado não pode aceitar. Vou impetrar na justiça e quero ver quem ganhará!

Assim o fez, mas Themis sobrecarregada com as causas do mundo, colocou o processo por baixo da pilha. Assim, João, enquanto aguardava o andamento, aproveitou para rondar os arredores da casa da família.

Observava o primogênito formado engenheiro já trabalhando na profissão.

Os outros filhos cursando também a faculdade de engenharia.

Isso o confortava muito. Missão cumprida enquanto vivo.

Mas a minha Yvette! Como está linda nos seus quarenta anos. Percebeu agora a diferença de idade de quatorze anos que havia entre eles. Isso doía.

Seu espírito se contorcia feito uma toalha molhada espremida, dela só vazavam ciúmes e ciúmes!

Yvette logo arrumou um namorado, que ainda por cima era médium.

Certo dia, o namorado estava na sala sozinho, quando de repente surgiu João vindo em sua direção! O namorado médium entendeu que poderia ser um parente da Yvette e logo levantou-se para cumprimentá-lo. O encontro dos dois foi hilário. Se trombaram, o namorado querendo cumprimentar e o João, com o punho fechado, desferindo um violento soco na cara do rival. Ele, além de não sentir nada, confuso, viu aquele vulto saindo pela parede. Nem desconfiou que era a alma do marido.

Frustrado por perceber que alma não consegue dar soco, João voltou triste para o etéreo, mas conformado de que agora estava em outra vida e que sua passagem pela terra foi promissora.

Passaram-se alguns anos e o namorado da Yvette faleceu.

Não sei o que aconteceu quando encontrou João no plano espiritual.

Será que lá o soco pega?

 

 

 


A vida dá reviravoltas - Silvia Villac

 

 


A vida dá reviravoltas

Silvia Villac

 

 

 

— Papai esteve aqui? Perguntou Laura, tão logo abriu a porta de entrada.

— Você sabe que não! Respondeu sua mãe com uma voz meio exasperada. — Aquele homem jamais colocará os pés aqui novamente!

O perfume que Dr. Paulo sempre usara a vida inteira ainda estava impregnado nos ambientes do apartamento.

— Mamãe, temos que reformar e pintar tudo por aqui, para ver se conseguimos apagar essa maldita lembrança olfativa.

Após 33 anos de casamento, Dr. Paulo resolvera sair do armário e comunicou a todas — sua mulher e as duas filhas — que estava saindo de casa para viver com seu novo grande amor: o dentista da família!

O que era para ser um dramalhão acabou por se tornar a própria tragédia grega. O almoço que estava servido, cuja iguaria lembrava um típico bistrô francês, permaneceu intacto e só se ouviu o arrastar da cadeira quando ele se levantou e saiu pela porta da frente.

som da batida da porta ecoou como um estrondo de uma pedreira sendo dinamitada e, por alguns minutos, que pareceram horas, só se ouvia aquele silêncio perturbador tomando conta do ambiente.

Laura foi a primeira a se manifestar, dizendo ser o fim dos tempos. A mãe, visivelmente chocada, não conseguiu balbuciar uma única palavra sequer e foi Isabel, a filha mais velha, que tomou as rédeas da situação, informando a elas que aquele velho sem vergonha ia ficar sem um tostão: 

— Ele perde o dinheiro e nós perdemos o dentista!

 

Mar Aberto - Adriana Frosoni

 

 


Mar Aberto

Adriana Frosoni


Camila o sentiu antes de vê-lo. O perfume amadeirado e cítrico de Rodrigo, seu ex-amante, atravessou os três anos de ausência como uma flecha. No convés do cruzeiro, cercada pelo cheiro de sal e pela culpa, ela congelou. Henrique, seu marido, distraído entre os amigos, não percebeu.

Camila temia que um gesto em falso ruísse o frágil castelo de silêncio que sustentava seu casamento. À noite, enquanto fingia tranquilidade ao lado de Henrique no jantar, a fragrância de Rodrigo voltou a invadir o ar — e a memória. Ele surgiu com um blazer branco, sorrindo com a velha insolência. Era o mesmo: envolvente, descomprometido, devastador.

Mais tarde, sozinha na cabine, ela relembrou a noite em que tudo começara a desmoronar — um beijo ignorado por Henrique, a frustração silenciosa, o fim da intimidade do casal. Tudo isso culminou na entrada furtiva de Rodrigo em sua vida. As lembranças foram interrompidas por um bilhete deslizado por debaixo da porta:

“Cruzeiros são ótimos para encontros inesperados. Convidei o acaso e ele aceitou.”

Sem assinatura. Sem data. Sem remorso.

Na manhã seguinte, Camila subiu ao convés. O bilhete ainda pesava no bolso. Ela se apoiou na balaustrada quando sentiu o calor de uma presença atrás de si. Não se virou.

— Vá embora, Rodrigo. Você não sabe mais nada sobre mim.

— Sei o suficiente — disse ele, numa voz insinuante. — Sei que entre o desejo e a convenção, você escolheu o primeiro. Mas depois me enterrou como se eu fosse um erro.

Ela se virou de frente para Rodrigo:

— Quer saber? Conte ao meu marido, vá em frente! Faça deste cruzeiro um espetáculo. Não tenho medo de você, nem dele.

Rodrigo murchou. Ela, não.

Em passos firmes, Camila desceu para a aula de yoga.

Ao voltar para a cabine, Henrique despertava.

— Foi ver o nascer do sol?

— Fiz um pouco mais que isso — respondeu, serena.

E, naquela manhã clara, enquanto o navio cortava o mar, Camila descobriu uma liberdade que era só dela. Íntegra. Ancorada. Pronta para navegar, ainda que viessem tempestades.