Uma História
Yara Mourão
Buscando um enredo, saí à rua.
Era uma tarde mansa, dessas do fim da
primavera, quando o sol morrendo lança silhuetas escuras na linha do horizonte.
O céu, já meio adormecido, tinha tons de rosa e cinza e anunciava as horas
quietas pelas quais se espera, todavia.
Eu admirava essa conjuntura tão serena quando
meus olhos se encontraram com o formato solene, porém discreto, do Pico do
Jaraguá. Ele também já se envolvia em brumas mas estava ali, presente há
séculos no limite da cidade, como uma sentinela.
O pico é um lugar icônico, com trilhas e matas
e no seu entorno o Jaraguá abriga uma comunidade indígena.
Considerei que os indígenas são quase uma
relíquia, algo a ser muito preservado, pois são os guardiões do que chamo de
¨espanto primeiro¨. Porque sempre me fascinou o que teriam sido os primeiros
encontros dos colonizadores com os indígenas aqui no Brasil.
Quando os portugueses chegaram eles se
depararam com todo um universo oposto ao que conheciam como civilização, e isso
criou esse espanto em ambos os lados.
O que é uma civilização? O que é uma cultura?
O que é um reino ou algo que o valha? Uma aldeia?
Fiquei cismando sobre tudo isso e na
impossibilidade de visitar essa pequena comunidade, pontuei, ao contrário dos
primeiros colonizadores, as semelhanças, essas, sim fascinantes, entre nós e
esses vizinhos.
Para começar, eles são sobreviventes, persistentes, e sabem que ¨a vida
é luta renhida viver é lutar¨. Nós sabemos também, muito embora ainda não
estejamos no limiar da sobrevivência. Eles cultuam seus próprios ídolos, dançam
suas próprias músicas e falam sua linguagem suave e tão significativa. Nós
também mantemos nossas crenças, nosso canto, e agradecemos todos os fonemas deles
incorporados ao nosso linguajar, como os saborosos Anhanguera, Anhangabaú,
Itamambuca, Itaquaquecetuba, Pindamonhangaba, e muitos mais...
Já era noite, resolvi voltar para casa. No
caminho, um garotinho me estendeu a mão e me pediu um trocado. Para meu espanto
o pequeno tinha um rosto moreno, cabelos muito lisos, os olhos um tanto
amendoados. Me curvei para vê-lo bem de perto enquanto buscava moedas na bolsa.
Ele sorriu, disse que estava com fome, que morava longe.
Era meu pequeno indiozinho, de certo, pensei.
Não importa se não era. Um sobrevivente igual. Dei-lhe um dinheirinho e falei
para ele ir até à padaria comprar comida. Me devolveu um rápido ¨obrigado, tia¨
e saiu correndo, virou a esquina. Era meu caminho também, fui atrás. E lá
estava ele, com uma família inteira sentada na rua, envolta em panos, carinhas
sujas, pés no chão.
Da janelinha do ônibus ele me acenou. Dei-lhe
um adeus e então, no letreiro, pude ler o destino: Aldeia Tekóa Pyau, no Pico
do Jaraguá.
Já então, mansamente, a noite abraçava a
cidade.
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