QUADRILHA - Oswaldo U. Lopes

 



QUADRILHA

Oswaldo U. Lopes

 

        Nossa história lembra a quadrilha de Carlos Drummond de Andrade. Na nossa, Marilia era casada com Juarez que era sócio de Hamilton que dava em cima de Marilia que achava ele um porre e preferia a companhia de Lúcia, sua melhor amiga, que morava num prédio onde Caldas, legista aposentado, era diretor financeiro e Juarez, o síndico. O zelador era só zelador mesmo.

        Marilia era apaixonada pelo marido, que para variar não ligava muito para ela. Esse é um mistério da biologia, porque as mulheres são mais fiéis e ficam eternamente obcecadas pelo homem com o qual se casaram.

        Ora direis (viva os poetas brasileiros, parabéns para quem reconheceu Olavo Braz dos Guimarães Bilac, duplo parabéns para quem contou o nome dele e descobriu um perfeito decassílabo, para quem acha ele um parnasiano, meio chato, ofereço companhia), nem sempre é assim. O fato de não ser uma unanimidade não invalida o mistério.

        Nossa heroína fazia corretagem de imóveis para ajudar o orçamento, dava para ser notado o dinheiro que conseguia.  Juarez, é claro, fazia de conta que não notava. O seu escritório era razoavelmente bem-sucedido, Hamilton tinha sucesso e proeminência nos negócios advocatícios.

        Fora nos negócios de corretagem que Marilia conhecera melhor Lúcia, também corretora. Amizade sólida, firmemente unidas pela antítese. Lúcia era tudo que Marilia não era. Moravam no mesmo prédio, mas não era lá que trocavam figurinhas e ideias.

        Não dava a mínima para os mistérios da biologia, o marido se mandara com outra, passou a viajar de navio, cruzeiros deliciosos, às vezes longos, ilhas gregas incluídas. Não era raro ter um caso com o cara da cabine ao lado que terminava no porto de chegada, por mais que o tipo insistisse no contato até com o que podia ser chamado das melhores intenções.

        Lúcia preferia as piores e fazia questão de que tudo aquilo fosse apenas uma louca aventura de uma divorciada solta no mundo.

        Era mais eficiente do que Marilia na corretagem, tinha licença do CRECI e embora agisse também por conta própria, faturava alto. Morava em Higienópolis e por ali e nos Jardins conhecia cada rua e cada prédio.

        Gostava de fazer negócios com e para mulheres como ela, independentes e ricas. Não eram poucas, como a biologia fazia supor, ou então, em contraste, as condicionadas pela biologia eram mais numerosas que os grãos de areia da praia.

        Marilia não se conformava, era bonita e sabia disso, tinha um corpo escultural, que enchia de razão a frase memorável:

“ Adão depois Eva. Primeiro o rascunho, depois a obra de arte.”

        A frase, linda, é de autor desconhecido, mas é conhecida em várias culturas e línguas. No Brasil foi incorporada por Sidney de Moraes num poema “ O Casamento”. O poeta é menor, mas a poesia é frequentemente lida em casamentos, sobretudo nos evangélicos.

         Ele a incorporou atribuindo-a maldosamente às feministas. Discordo, basta ser humano, abrir os olhos e ver a obra prima de Deus.

        Por falar em rascunhos, Juarez era dos mais rabiscados, eta sujeitinho cego e pasmo.

        Então, Marilia, resolveu partir para o ataque, feminino com certeza, chamar de ataque o fato de pôr uma roupa linda e justa, com ombros cavados, pintura de rosto discreta, mas realçante, era até covardia, mas o que valia numa guerra era a vitória e ela estava pronta para a parada da celebração. Como diria outro poeta:

        “ Então ela se fez bonita

        Como há muito tempo não queria ousar

        Com seu vestido decotado

        Cheirando a guardado de tanto esperar

        Essa foi fácil, deu para reconhecer Chico Buarque, poeta dos bons, petista, o que não lhe tira a competência nem a aumenta. Os que pensam que todos os poetas são da esquerda, nunca ouviram Cara al Sol de Primo de Rivera, hino das falanges franquistas durante a guerra civil espanhola. Bonita e mais fascista não é possível. A história será sempre escrita pelos liberais, mas a poesia não.

        Bem, sorte ou azar, quem Marilia encontrou no saguão do prédio do escritório do marido? Esse mesmo, o sócio Hamilton que reparou e até prendeu a respiração contemplando aquele magnífico exemplar dos caprichos do Criador.

        Mais que depressa, ofereceu-se para subir junto no elevador que não tinha ascensorista e podia facilitar terceiras intenções. Não houve tempo para terceiras nem quartas intenções. Pela porta do elevador apareceu um espavorido Juarez que mal notou sua mulher. Já não notaria de qualquer jeito, espavorido então, mal levantou o olhar e fulminou:

— Preciso ir até o prédio, aconteceu alguma coisa no apartamento da Lúcia.

        Acontecera mesmo. O assustado zelador saíra correndo, procurando o Dr. Caldas, quase sem fala porque vira na soleira da entrada do apartamento 304 B um filete de sangue escorrido. Tinha certeza de que a proprietária, D. Lúcia, não saíra, o carro dela estava na garagem, ele o vira ainda há pouco.

        Caldas se aproximou e confirmou a presença de sangue, restava saber se era humano ou não. Coisa fácil de fazer, mas precisaria de um laboratório de apoio. Todos no prédio sabiam que ela tinha um cachorro, se é que se podia chamar aquilo de cachorro. Uma dessas espécies miniaturas, que agora eram moda em apartamentos de gente rica.

        Tim, o zelador, que agora ganhou até nome, informou que já avisara o Dr. Juarez que era o síndico, para que este viesse e autorizasse a entrada no apartamento.

        Caldas ficou irritado, esperar o quê, meu Deus, se você tem chave! Abre essa porra logo.

— Mas, o Dr. Juarez já vem vindo.

— Abre, saco.

        O Dr. Caldas foi suficientemente incisivo para que o Tim o obedecesse, abriu, entraram.

        Surpresa enorme, logo atrás da porta havia o corpo de um homem, de onde escorria o filete de sangue. Deitado estava no pequeno hall que se continuava com a ampla sala. Perto da mão esquerda, havia um revólver que não era empunhado. O Dr. Caldas abaixou-se e confirmou que na mão não havia resíduos de pólvora nem o revólver parecia ter sido disparado.

        Virou ligeiramente a face do falecido e foi então que o Tim, fazendo valer seus vinte anos de zeladoria, exclamou:

— Eu conheço esse cara, é o ex-marido de D. Lúcia.

        Agora sim é que eram elas, quem iria juntar todas as peças dessa quadrilha. O falecido tinha um furo no peito de onde escorria sangue, mas não parecia à queima-roupa. Quer dizer, a camisa não estava queimada. Não havia mais ninguém no apartamento.

        Quadrilha pouca é bobagem, pensou o Caldas, do jeito que vai, o balancê vai ser cumprido.

 

 

QUADRILHA

Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo

Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

Que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos. Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

Que não tinha entrado na história

ESPIRITUALIDADE - Antonia Marchesin Gonçalves

 



ESPIRITUALIDADE

Antonia Marchesin Gonçalves

 

A humanidade está sempre me surpreendendo, não falo só da pandemia, a miséria atual, pois já tivemos durante esses milênios varias delas, tão graves quanto do momento mundial. O que está me espantando é que nunca recebi tantos pedidos e correntes de oração.

Basta acontecerem catástrofes como essa que mata, para todos se lembrarem do espiritual, vem à tona o medo da morte.

Antes, apesar de orientados, suas religiões eram pouco lembradas. A oração, o agradecer por estar vivo, por ter a família, antes um fardo para muitos, por ter trabalho, antes não valorizado até perder, por ter comida na mesa, antes desperdiçada e por ter a certeza do futuro, agora incerto.

Antes dessa pandemia o mais importante era o “ter” e não o “ser”, bens materiais para ostentação sem pensar em doar o amor que a fé prega. Somos feitos por matéria, mas o espiritual é o que nos sustenta, tendo a certeza de que nunca estamos sozinhos, nos dá a segurança confiando que dias melhores virão.

Chorar nossas perdas e consolar nossos semelhantes, tomara que seja o aprendizado que fica, e não só no desespero recorrer aos céus. Que sejamos mais humanos, doarmos mais amor, valorizarmos a fé em algo maior, para um mundo preservado, valorizado e amado.

MAIO - Oswaldo Romano

 




MAIO

Oswaldo Romano

 

 

Ofertas de flores e alegrias, é o mês

da primavera, e do jubiloso

orgulho do ser ... Mãe. São horas esperadas pelos carinhos dos filhos,

na certeza de juntos receberem

a benção de Deus.

É ocasião de reavaliar sua felicidade, não esquecendo que muitas mães ficam só, numa ilusão. Guardam no coração muitas lembranças, imaginando-se culpadas de não ter dado mais abraços, mais amor, segurá-lo fortemente apertado junto ao peito, para que não escapasse da família.

Às que tem filhos ausentes, e nesse mês não são lembradas, fica outro tipo de dor. Dor de abandono, superado só quando suas lágrimas secam.

 

Em maio paira no ar, a leveza da

vida, da reprodução, a pureza do carinho de

mãe. Carinho recíproco, esperado de longe, alguns do além, embalados em lembranças. Chegam tão naturais que se fazem sentir tocáveis.

É o mês que tem fragrância, reflete

a imagem do ano, exala perfume no ar.

Mãe

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UM MERGULHADOR OBSTINADO - Antonia Marchesin Gonçalves

 


UM MERGULHADOR OBSTINADO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

A possibilidade de descoberta de raríssimos tesouros levou meu amigo Rafael a se tornar mergulhador profissional, não um mergulhador comum, mas um especialista em antigas embarcações.  Para ele não foi complicado, ele sempre nadou com perfeição. Na praia não tinha medo do mar, aliás, o mar o encantava, mesmo com chuva, nada o impedia de surfar, esporte de sua adolescência.

Ao entrar na faculdade optou pela Engenharia Naval se formando com louvor. Foi trabalhar em um navio de grande porte sendo misto, passageiros turistas e carga.  

Numa dessas viagens, ao atracar na Grécia, viu uma embarcação singular que lhe chamou a atenção. Não, não era de pesca, era um navio de médio porte sendo carregado com diferentes objetos e equipamentos, que lhe indicava ser de exploração submarina.

Aquilo o atraiu deveras,  logo se aproximou fazendo perguntas. Era mesmo um navio explorador especializado em localizar embarcações naufragadas. Ali estavam cientistas, biólogos, fotógrafos subaquáticos, e mergulhadores profissionais. Não teve dúvidas, ofereceu-se para qualquer serviço, precisava ser no projeto,  tamanha empolgação que sentiu. Estava a equipe com falta de um mergulhador de grande profundidade, a sorte estava ao seu lado. Foi aceito na entrevista com o comandante. Teve tempo só de transferir sua bagagem e pedir demissão. Emocionado como uma criança, embarcou numa nova aventura.

Eram todos profissionais em caça de tesouros e naufrágios, tinham fama e dinheiro, sem compromisso com nenhuma bandeira. Eram autônomos, mas o empresário responsável pela expedição, era um explorador inglês, homem muito rico, o melhor nessa área.

Zarparam todos, sendo ele instalado em uma cabine com mais três companheiros. Ao chegarem ao alto mar, todos foram convocados ao convés para iniciarem os trabalhos, ele como novato não foi escalado para mergulhar e sim para ajudar os outros no manuseio dos equipamentos a bordo. Mas, Rafael era muito curioso, e após dois dias já tinha dominado o sistema de limpeza,  o sistema de segurança de oxigênio dos respiradores, e zelava pelo tempo máximo de permanência no fundo.

Impaciente foi falar com o comandante, a resposta foi um não, dizendo que ele não iria arriscar com um novato de primeira viagem, teria que ter paciência, sua vez chegaria. 

Mas, a equipe não estava com sorte, nada de localizar destroços ou qualquer indício de destroços. O custo era alto para essa atividade. Foi aí que Rafael não se conteve.  Ele acordou mais cedo no dia seguinte, em silêncio foi ao convés, preparou todo o equipamento, e decidiu que desceria sozinho, sabia do risco, mas assim mesmo foi. Pulou logo depois de ter lançado uma âncora com corda para se nortear. Foi descendo maravilhado com a paz da vida marinha que seguia seu rumo, vegetação bailando com o movimento da água provocando encanto no mergulhador.  Foi se afastando sem perceber a hora passar, notou que o oxigênio estava chegando ao limite, teria que voltar. Foi quando percebeu ter se afastado da corda, pois não a via mais. Arriscou ir para a sua direita e aos poucos foi enxergando o que a expedição procurava, a nave naufragada já coberta por algas servindo de refúgio para alguns peixes, parecia ainda em bom estado. Sabia que não teria condições nem de chegar perto, corria o risco de falta total de oxigênio.

Voltou para a sua esquerda, não posso entrar em pânico, parou, olhou em volta e decidiu seguir seu instinto. Tentando fazer o mínimo de esforço para poupar o oxigênio foi seguindo devagar, até perceber um cardume grande de pequenos peixes,  e mais adiante um grupo de golfinhos, resolveu segui-los, sabia que eram espertos e aproveitavam as embarcações para se alimentar dos dejetos que eram jogados pela tripulação. Foi a sua salvação! Logo avistou a corda e conseguiu emergir.

Quando na superfície, toda a tripulação estava no convés, ansiosos o ajudaram. O comandante o recebeu aos berros, desconsiderando-o com palavras grosseiras.

Rafael respirou fundo, tinha uma grande revelação a fazer,  e aí sim contou ter localizado uma embarcação naufragada.

Nem preciso dizer que o contrataram e ele passou a integrar definitivamente a tripulação, principal, inclusive como engenheiro naval, ganhando bons bônus a cada descoberta.


RETORNO DO COLÉGIO - Maria Luiza Malina

 



RETORNO DO COLÉGIO

Maria Luiza Malina


Rua Teresópolis. Assim que despontava na rua, Zepeln vinha correndo em minha direção. Era nosso primeiro cachorro, um Daschund preto, esperto e brincalhão como ele só.

Eu estudava à tarde. Naquele final de tarde ele não estava me esperando. Estranhei. Desci correndo a rua. Era um dia quente. Com sede entrei voando em casa. Mas, parei, e esqueci da sede.

— O que aconteceu? Perguntei a empregada e, logo apareceu a cozinheira. Nada responderam. Inquieta fui na direção do quarto de minha mãe. Elas me seguraram. Joguei minha pasta escolar, de couro verde, no chão. Desvencilhei-me.

— Onde está minha mãe? Repetia, e repetia. O quarto desmontado, e elas caladas, atrás de mim. Faltavam móveis na casa. Com muita dificuldade tentaram me deter. Corria pela casa, não parecia mais ser minha casa. Os móveis da varanda. As coleções de Gloxínias, Avencas, Violetas, as estantes vazias. Descontroladamente, subi as escadas. O nosso quarto. Desarrumado.

— Onde estão todos?

Cansada. Desci a escada. Sentei-me no primeiro degrau. Uma delas já estava com um copo de água. Tomei a água bem doce. Quando estendi o copo, ela o pegou e sentou-se ao meu lado. Maura era o seu nome. A outra não recordo o nome. Então, ela explicou que minha mãe foi levada para a casa dos pais dela, em outro estado, porque estava muito doente. A casa estava vazia porque nós, os quatro irmãos, iríamos fazer uma viagem de avião para São Paulo, que era para lá que a mudança havia seguido.

Não consigo lembrar do vazio que imperou em mim. Perguntei do meu gato malhado de amarelo, Miki. Disseram que estava pelo jardim. Procurei, mas não o encontrei. Ele gostava de subir nas árvores. Nada. Na horta também não. No galinheiro, só as galinhas que já procuravam o poleiro. Perguntei pelo Zepeln. Responderam que Dr. Camargo o levara. Senti confiança.

Suada. Com o uniforme bege do colégio, sem gato e sem cachorro lá estava eu sentada no degrau da varanda vazia. Ela me parecia tão grande. Lembrei da correria das brincadeiras de bandido e mocinho com os amigos de meu irmão. Levantei-me para ver se havia alguma bicicleta escondida atrás da mesa de ping-pong. Nada!

O degrau da varanda. Olhava a poeira do meu sapato preto de couro. A meia branca cansada das correrias de pega-pega no recreio merecia um descanso. Descalça, assim meu pai me encontrou. Estava de plantão naquele dia. Explicou-me coisas que, como criança, filha ... o nada e tudo entender era o mesmo que  NADA.

Então encontrei meus irmãos já instalados no Hospital. Tudo era novidade. Ficaríamos por dois dias lá hospedados, até o dia da chegada do avião. Nossas malas. Nada lembro.

Acredito que o susto do vazio, do nada recolheu-se numa estratégia bem-sucedida pelo meu pai. Era médico cirurgião. Não sabemos se foi proposital ou se queria nos pontuar quanto a uma futura profissão na área da saúde... o fato é que nos convidou a assistirmos "uma simples cirurgia de apendicite"... lá fomos nós. Os três maiores. Quietos. Encostados na parede branca e fria. O bisturi deslizando na barriga e o sangue rompendo... minha irmã e eu desmaiamos ao ver a cena.

O irmão aguentou firme. Mas ninguém escolheu a medicina.

Assim, num voo de 1959 aterrissamos na cidade grande de São Paulo. Estava no terrível ano de exame de admissão para a quinta série.