A escada - Mario Augusto Machado Pinto



A ESCADA
Mario Augusto M. Pinto

Aquele homem que estava por ali passando e olhando pra mim disse: Ah, se essa escada falasse diria cada coisa... E foi subindo pelos meus pés.

Então eu pensei: vou tirar o dia pra conversar com todo mundo. Não é bem conversar porque eu vivo numa cidade de surdos. Por mais que eu me esforce, ninguém escuta minhas palavras e olha que eu já venho falando há muito tempo.  É tanto tempo que eu já disse que esse falatório seria de horas e horas seguidas.  Aprendi essa frase outro dia. Tirei da conversa de dois homens velhos porque achei bonita.

Eu não sei falar direito. O que eu sei foi de ouvir os outros que passam e agarotada que vive aqui do meu lado.

Oi pessoal, gente, escuta! Eu vivo aqui bem no meio disso que chamam de cidade, debaixo de uma marquise – bonito, não? - que me abriga um pouco da chuva, do vento e do sol mais quente. Aqui passa muita gente pra ir prá parte mais alta onde fica uma rua que, por sinal, nunca vi  Aqui é donde vejo e escuto as pessoas que passam.
Deste meu lado tem uma rua chamada formosa. Vocês já imaginaram uma ladeira ainda com pedras no chão (vocês chamam de outro nome), suja com o lixo das lixeiras espalhado por cachorros nas calçadas esburacadas, ser chamada de Formosa? É o fim; vocês arranjam cada nome...

O meu outro lado já é melhor: há uma bacia com esguicho, duas figuronas que estão sempre do mesmo jeito e uma prima, pequena, uma escadinha de três pés ao seu redor. O pessoal chama de fonte. Quando faz calor, algumas crianças que moram aqui na calçada ao meu lado tomam banho e quando isso acontece escuto gente gritando “vai derreter, vai derreter”... Fico contente ouvindo os gritos, as risadas e até os palavrões dessa garotada.

Se olhar pra frente tem um gramado muito verde, bonito, com caminhos de pedrisco – ouvi o homem que meche ali falar que é assim que se diz - e uns lugares com plantas de folhas grandes e altas e outras que tem uns copinhos dependurados durante o tempo todo. Eles aparecem, ficam grandes, caem no chão e aparecem novamente. Não sei como não se cansam. Algumas pessoas pegam esses copinhos e levam pra passear. Eles reclamam, dizem que vão ficar doentes; as pessoas não escutam. Claro, só tem surdos por aqui, só surdos... Reparando bem, surdos só para a nossa voz. Até agora não entendo porque acontece isso; já pensei até que é pouco caso.

Eu escuto muita fala das gentes que passam ou param pra conversar encostadas nos meus braços que elas chamam de corrimão. As mãos não correm!!! Elas se apoiam nesse meu braço!

Bom, mas como eu estava dizendo, tem todo tipo de conversa. Só para vocês fazerem uma ideia outro dia duas mocinhas estavam subindo e conversando.  Uma dizia pra outra: Imagina se eu vou ficar com o Sérgio na sala depois do expediente. Ele é um safado (?).  Você viu, a Clara ficou várias vezes e só foi promovida depois que ela disse que ia contar tudo pra todo mundo. Lembra? Foi uma discussão braba com ele.  

Elas continuaram, subiram conversando; não deu pra ouvir mais nada.

Tem gente que sobe ou desce bem devagar; outras não tão devagar e umas vão com pressa e até muita pressa pulando os meus pés.  Ai eu posso reparar nos sapatos que tem. Antes eram com sola de couro, de borracha em dias de chuva; as mulheres sempre com sapatos de salto alto. Hoje, hum, é todo mundo de tênis. Tem um até que se chama reboque...

E as roupas... Já houve tempo em que os homens – inclusive garotos como esses que moram aqui do meu lado– andavam de roupa diferente, camisa branca com ou sem lenço. Hoje é tudo chamado de moletom; inclusive as moças usam. Ouvi dizerem que assim tem mais liberdade – do que? - não precisam se preocupar com os olhares e piadas dos outros. Elas comentaram muito sobre anágua. Anágua? Não sei o que é. Eu sinto falta dos vestidos. Eram de todo jeito. As mulheres estavam sempre bonitas e mudavam muito de vestido. Eu via as pernocas delas e quando as saias eram mais largas e ventava chegava a ver por dentro. Mas isso só acontecia de vez em quando.

Outro dia veio até aqui um bando com um professor – acho que era porque era o mais velho, os garotos diziam assim. Ele mandava o pessoal calar a boca e ninguém achava ruim. Ele explicou que antigamente aqui foi um lugar importante. Era aqui que ficava o pessoal nas festas do governo (?). Falou uma porção delas; disse que a maior era a do sete de setembro. Não sabia desse nome. Eu me lembro das festas, dos meninos e dos soldados, até dos aviões que faziam uma barulheira enorme. Depois diminuiu o barulho com uns tais de jatos.  Nunca entendi que jato. Eu conheço jato d´água. Da primeira vez entendi “gatos”, já imaginou a bruta confusão? Agora diminuiu e quase não tem mais dessas festas.

Agora, bom mesmo é ver e ouvir os namorados que vem aqui por causa de um canto escurinho. Eles pensam que ninguém vê ou ouve. Eu estou aqui, ó gente! Escuto e vejo tudo que acontece e me lembro!

Eu sempre pensei que os moços começavam esse negócio de esfreguncho, mas não, são as meninas. È interessante ouvir os moços dizerem coisas para as moças com a voz melosa e rouca. Deixa, bem. È só um pouquinho. Elas dizem alto, Você está maluco? Nem que a vaca tussa!  Há aqueles que dizem que vão dizer uma poesia: são palavras que não entendo e há abraços e beijinhos rápidos. Eu observei um casal de namorados durante bastante tempo. Era só beijinho e abracinho. Outro dia não sei o que aconteceu e a moça gritou  NÃO E NÃO, JÁ DISSE! Mas eu não consegui ver e entender o que era porque estava muito escuro.

Agora, tem um dia que vem um pessoal diferente: são pais com filhos, grupinhos de moços, até um grupo que canta junto umas músicas muito bacanas.

Agora, há coisas muito, mas muito chatas que acontecem. É uma falta de respeito e consideração total. Afinal, faço parte da cidade. Uns caras vêm passear com os cachorros e eles deixam  fazer xixi e suas necessidades nos meus pés; alguns pegam mas a maior parte deixa por ai mesmo. E uns, então, que chegam á noitinha. O pessoal os chama de Zumbi. O que é Zumbi? Enrolam-se em panos sujos, se arrastam pelo chão, vomitam e deixam lixo por todo lado. Brigam, gritam, assustam as gentes que tem que passar por aqui e ninguém faz nada! Ninguém diz nada! Eles ficam uma parte do meu tempo. Por causa deles só consigo descansar quando é muito tarde e logo, logo começa a luz e o movimento novamente.

Hoje foi diferente. Vou aproveitar essa calmaria e descansar um pouco... Opa, opa! Mas o que é isso? O que é eu estou vendo!. Olha quem chegou! Gente há quanto tempo você não passava por aqui! Lembra? Você estava naquela escola do largo, e passava todas as noites indo e voltando e não ligava pra nada e pra ninguém, muito menos pra mim. Você pulava meus pés de dois em dois. Não vá embora assim sem falar comigo... Ai, não faça isso...Ó, eu me lembro da musiquinha que você e seus amigos sempre cantavam praquela moça morena. Aposto que você não se lembra

Vouz que passez sans me voir
Sans meme me dire bon soir
Donnez moi un peu d´espoir
Ce soir...

Você podia ter parado e cantado. Você foi muito mau... Ao menos, podia dizer Tchau.

Bem o tempo todo é assim... Às vezes.

Com essas e outras vou descansar.

Tchau. Vai...

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