Dentro do nosso projeto MEU CONTISTA BRASILEIRO, Adriana Frosoni fala sobre Drummond e sobre O presépio.
Presépio
Carlos Drummond de Andrade
Dasdores
(assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa do
Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de
meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado.
É
difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar
ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se
o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras
passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas,
que se diriam jaulas.
Dasdores
e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda,
pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais
exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro
mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar
sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher?
Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é
impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem
tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda.
“Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o
diabo desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para
sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providência mil
coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações
enfadonhas. Em seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando
ou alisando o cabelo com brilhantina, está Abelardo.
Das
mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre
na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai
delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho…
Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe
combinar o movimento dos braços com a atividade interior — é uma conspiradora —
e sempre acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém, veio
encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por armar, a noite
caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é íntima do
relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo povoado
o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que
ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma
tia já morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase
dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino,
e aí do presépio que cede a novidades.
As
caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a
primeira satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação do
presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e Dasdores
prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais
lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José.
Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não amolassem,
e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a paisagem de água e pedras,
relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura. Nem todos os animais
estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia
consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve
querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção com os
cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e participam da
natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da
natureza da família. Através de um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo
é uma coisa só, e não há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com
ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo.
Alguém
bate palmas na escada; ô de casa! Amigas que vêm combinar a hora de ir para a
igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta
visita come mais tempo, matéria preciosa (“Agarra-me! Agarra-me!”). Quando
alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante
e que exige não somente largo espaço de tempo, mas também uma calma dominadora —
algo de muito importante e que não pode absolutamente ser adiado – se esse
alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda, e o trabalho
começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não pertence a
essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente,
dos fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores,
interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe
esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados
nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte.
A mão
continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio dispondo-as onde convém.
Nada fará com que erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto,
o prazer de distribuir as figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de
vidro os patinhos de celulóide, está alterado, ou subtraí-se. Dasdores não o
saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o
primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo? Ou um sentimento de
culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando, talvez, preferência a este
último, pois, no fundo da caminha de palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o
que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já
sabeis de quem.
Aqui
desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo,
acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela
carece para cumprir com sua obrigação, vestir-se violentamente, sair com as
amigas — depressa, depressa, ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja
vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso
atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra natureza,
diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira
acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a
matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles
que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o
relógio, e este vai mastigando seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos.
Se nos esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador furta
um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro
imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria
reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para localizar
condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém. Começa a
fazê-lo, e o tempo dispara de novo. “Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que
espiam pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se
debruçar sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda
interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais para caber em
instantes tão curtos, no calor que começa a fazer apesar das janelas
escancaradas — há uma previsão de malogro iminente. Pronto, este ano não haverá
Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.
Mas
Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na
imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição devida e peculiar à
adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério
prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em
torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro
— quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo fumava na outra
rua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário