Nove Anos de Silêncio - Yara Mourão

 




Nove Anos de Silêncio

Yara Mourão

 

Um nascimento é uma festa, uma agitação. Um renascimento também.

Só que a espera é uma sensação e a esperança é um sentimento.

Se esgueirando pelas portas abertas, a vida quer acontecer de qualquer forma. Ainda que perturbando a ciência e glorificando os céus.

Bento é como um baú enterrado com mensagens para serem lidas no futuro, quando forem descobertas. E, também, é uma testemunha do tempo. De qual tempo? Desse que passa célere e impiedoso, queimando memórias e roubando vivências.

Quando apareceram os primeiros sinais de que Bento acordaria de seu coma profundo, houve uma comoção enorme. Toda a família acorreu ao leito. Entre lágrimas e orações, os apelos de todos fizeram os olhos de Bento se abrirem, suas mãos tocarem outras mãos e ele balbuciou sons incompreensíveis.

Depois que todos se foram, Bento se deu conta de que existia.

Mas, ser um homem, o que seria? Seu corpo lhe era desconhecido; mexer qualquer coisa era estranho e doído. Enxergar luzes e sombras, grandes superfícies ou detalhes pequenos tudo era bem instável ainda. Mesmo perdido nessas sensações, ao menos estava feliz percebendo que ainda estava vivo.

E assim se passaram dias, semanas. Um pouco a cada dia Bento veio ao mundo. Ao mundo que ele não conhecia mais.

Não tinha lógica o que via nos jornais, ou na T.V. O idioma era quase outro, recheado de abreviações incompreensíveis. E aquela maneira silenciosa e interminável de comunicação pelo celular o incomodava bastante.

Bento nem gostava de lembrar de seus anos passados. Já tinha pudor de fazer perguntas, as pessoas se impacientavam com ele. Pois tudo lhe causava espanto e desilusão: “ Brexit? Como assim? Covid-19? O que é isso? A rainha morreu? Tsunami implacável?” Era uma jornada diária de sustos e decepções, o que levou Bento a crer que dormira mais de um século.

Começou a formar uma nova filosofia para a sua vida onde o tempo, ganho ou perdido, era apenas uma questão de perspectiva, e que ele não iria mais se angustiar com isso. Só queria viver.

Assim, seguiu a vida.

E um dia, cansado de tantas voltas que o mundo dá, chamou de lado o companheiro de sempre, e disse assim, meio ansioso: “Sabe, uma coisa eu gostaria muito de saber: será que nesse tempo todo o Corinthians foi campeão?”

Ai, Bento, essa não!

Na verdade, creio que por mais que se filosofe, uma coisa é eterna: o coração dos homens é uma caixinha de surpresas, e às vezes, mais vale uma pequena notícia do que uma grande revelação!

                                                                                                                                                                                                                  

FELÍCIO, O BOM VELHINHO - Antonia Marchesin Gonçalves

 




 

FELÍCIO, O BOM VELHINHO.

Antonia Marchesin Gonçalves.


    

Felício estava em paz naquele dia, havia acabado de enterrar sua mãe querida.

Era filho único, morando no sítio no interior de São Paulo, onde cresceu e desde bem pequeno ajudou os pais, convivendo com o dia-a-dia da agricultura.

Aprendeu a realizar todas as tarefas do preparo da terra, plantio, colheita, armazenamento e venda dos produtos.

Quando os pais envelheceram e adoeceram, ele cuidou deles. Primeiro o pai, e depois a mãe. Apesar do desolamento, via-se com a missão cumprida.

Meses depois, começou a sentir a casa vazia. Era natural o silêncio e arrebatamento com o avançar da idade. Mais tarde, o início de ansiedade e solidão. Foi quando pensou: não posso deixar que a depressão assuma minha vida, preciso fazer algo.

Felício, então, teve uma ideia que lhe parecia satisfatória. Ligou para a Prefeitura, pediu autorização para trazer, uma vez por semana, as crianças da creche ao sítio. Eram crianças de cinco a sete anos. Ele era um homem rico, não teria problema em financiar tudo, desde o transporte até a cozinheira. Teriam as crianças o café da manhã e almoço elaborados com frutas, legumes e verduras colhidas na propriedade. O lanche da tarde teria leite de suas duas vaquinhas.

A direção da escola considerou que seria um bom aprendizado a vida no campo e autorizou o passeio semanal das crianças. Seria uma atividade de mão-dupla, aprenderiam as crianças e fariam companhia para Felício, o bom velhinho.  Os professores, imediatamente, organizaram aulas semanais ao ar livre, onde aprenderiam a plantar, regar e colher. Com Felício aprenderiam, além de todas as tarefas de cultivo, a manter a casa em ordem, mesmo que estivesse sozinho.

Felício ficou muito feliz com a programação e trabalhava para que tudo fosse prazeroso para as crianças. Chegou a montar um playground completo na vasta área próxima à casa.  

Com o tempo, tudo virou uma encantadora realidade. Os seus gatos e cachorros se acostumaram com as crianças e interagiam felizes.

Certo dia, ele se sentiu muito mal e não conseguiu se levantar. Faleceu ali mesmo, entre os lençóis alvos e o cheiro da grama que entrava pela janela. Naquele dia, mais tarde, as crianças o encontraram morto. Para os pequenos, foi um susto muito grande, já estavam tão acostumados aos mimos de Felício.

O prefeito realizou um sepultamento digno de uma celebridade, a escola fechou para o enterro, as crianças totalmente desconsoladas foram dar adeus ao bom amigo Felício.

No testamento de Felício, o sítio foi doado para a creche como lugar de educação contínua sobre agricultura, resiliência, alimentação saudável e dedicação. Ficaria a responsabilidade de manter a tradição de passar um dia por semana, ou mais, cultivando seus próprios alimentos.

A uma semana do Natal, as crianças o apelidaram de Papai Noel, o bom velhinho. 

 

Conto de Natal - Se fosse hoje em dia - Yara Mourão

 

 

Imagem criada por IA

Se fosse hoje em dia.

(Um conto de natal para 2024)

Yara Mourão

 

 

Era início da noite apenas, mas algumas estrelas de maior brilho já se espalhavam pelo céu, prometendo a paz ainda que duvidosa. Pelas ruas empoeiradas pessoas fechadas em seus silêncios passavam como sombras por entre os carros, carroças e motos, numa pressa de chegar em algum lugar, qualquer um, que pudessem chamar de casa, de abrigo.

José desligou a moto e entrou apressado chamando aflito por Maria. Queria ajudá-la a organizar a partida: o que levar, o que deixar. Eles sabiam que a viagem seria arriscada; a moto não era grande, a estrada não era boa já semidestruída pelos bombardeios. Haveria muitos solavancos e Maria, em final de gravidez, talvez não chegasse sequer próximo a capital.

Mas tinham que partir. Aquele território já não era seguro. Esse filho muito amado, por quem tanto esperavam, estava prestes a nascer. Por isso, antes do amanhecer resolveram partir.

Passaram por muito perigos, medos, aflições. A poeira das estradas criava uma nuvem densa, formando uma cortina esfarrapada de onde se podia ver, por entre as frestas, corpos dilacerados entre escombros. Os bombardeios incessantes, ensurdecedores, eram rajadas mortais.

José seguia sem trégua. Buscava rotas entre as construções destruídas, lamentando o desvario e a fuga da terra natal.

Maria tinha toda a semelhança de uma deusa esculpida em pedra sem os sinais que até os sobreviventes exprimem e com a rigidez impassível de quem já não está mais ali.

Foram muitas horas de angústia até chegarem a um local mais reservado. Procuraram por um hotel. Porém, não havia vagas, pois os senhores da guerra estavam todos ali reunidos para suas decisões de combate.

Continuando numa fuga angustiante, se depararam com um galpão de tanques abandonado nos limites da cidade e ali se abrigaram para passar a noite.

Foi assim, em meio a estrondos e explosões, que Maria, em doce aflição, avisou José: “Chegou a hora, José, ele vai nascer!”

José estendeu seu manto. Maria ajuntou seu xale. No céu, uma estrela brilhou mais que todas.

O menino nasceu!

Fez-se um silêncio embebido em preces e lágrimas. Até os animais ali abrigados se uniram em murmúrios de mugidos esmaecidos. Aos poucos, na areia agonizante do deserto, passos marcaram o tempo e o lugar da chegada do Amor.

Os soldados feridos vieram, mãos vazias, ornadas de ataduras e, como se fossem reis, curvaram-se e honraram a um ser pequenino, como se fosse a um deus…

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Peça teatral - A Casa do Faz-de-Conta Yara Mourão



A Casa do Faz-de-Conta

 

A Casa do Faz-de-Conta

 

  Ato

 

Cenário: Sala de uma casa luxuosa, bem decorada. O dono anda por ali, observando toda a arrumação.

História de fundo: É uma casa enorme, rica, com vários cômodos; grande jardim, quintal com árvores frutíferas, fonte, recantos bem cuidados. Bom cenário para filmagens, representações.

Personagens:

Mentor: Diego, proprietário da casa. Cineasta.

Dono da casa do Faz-de-Conta: Felipe

Mãe: Amorcito

A empregada: D. Francisca

Filho:

Filha:

1°Colaborador:

2°Colaborador:
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Diego: (andando pela sala, falando ao celular) – Olá, Felipe? Você está disponível para mais uma empreitada?

Felipe: (no celular) – Olá! Como está? Eu estou sempre pronto, Diego! O que você manda desta vez?

Diego: (andando, mostrando a casa) – Sabe, Felipe, eu não consigo ver todo esse ambiente vazio, à espera de realizações. Tenho um projeto em mente, mas queria a sua parceria. Está preparado para um briefing?

Felipe: (animado)-Opa! Mas quem acredita em briefing? Só mais essa vez, hein, já não sei se consigo administrar o caos que seus projetos mirabolantes causam! (risadas)

1° Colaborador: - Ele acha que é ele quem administra o caos! E nós?  Sou eu quem se vira pra fazer as instalações elétricas, ajustar os microfones, os fios por todos os lados...

2° Colaborador:- E eu então, encarando os percalços com os cenários, com os figurinos... Sou um contrarregra à deriva nesse oceano de coisas imprevisíveis.

Diego: (desfazendo dos comentários) – Larguem mão de mi mi mi! Vocês têm aqui o melhor diretor de cena do país, já quase merecendo um Oscar!

1° Colaborador: - Só gostaria de lembrar que é o bam bam bam aqui que tem de deixar tudo prontinho para o show!

2° Colaborador: -Sem falar que sou eu que tenho de dar conta da burocracia com os contratos, pagamentos de horas-extras, lanchinho para os intervalos...

Diego: (rindo) -Lá vem a choradeira! Saibam que isso aqui é o filÉ mignon da arte criativa! Um reality show privé made in Alto de Pinheiros!

Diego: (senta-se e fica sério) -Bom, lá vai! Desta vez vou patrocinar uma história grandiosa, inusitada. Entretanto, preciso contratar um staff apurado, nada de amadores. A não ser para a peça principal; ali, neste lugar, preciso de alguém que tenha uma presença imersa na realidade, entende o que quero dizer?

Felipe: (intrigado) -Seja mais preciso, Diego; não estou conseguindo inserir fato e fake no mesmo bolo!

Diego: (entusiasmado, levanta-se e caminha pela sala) -Calma, Felipe. O conjunto se explica no jogo do faz de conta. A peça principal, que dará a “cola” em tudo, será a empregada.

Felipe: (surpreso)- A empregada?

Diego: (didático) – Sim, a empregada! Por isso terá que ser muito bem talhada, expedita e sensível, porque vai ter de dar conta da casa e das pessoas. Conhece alguém capaz de encarar  essa empreitada?

Felipe: (pensativo) -Olhe, conheço uma senhora que nos servirá com total segurança; trata-se de D. Francisca conhecida de minha família há anos. Pessoa de Minas, trabalhadeira, crente, fiel.

Diego: (aliviado) -Ótimo, Felipe. Então, traga a senhora já praticamente contratada. Quero iniciar os trabalhos o quanto antes. O cachê deve ser sedutor o suficiente para ela se engajar logo de início.

Felipe: (irônico) -Mas, então, Diego, e o tal do briefing? Vai dar ou não?

Diego: (senta-se pensativo) -Ok! Queria contar com o fator surpresa, mas aqui vai todo o escopo: os trabalhos serão uma sequência irreal da vida de uma família rica, composta por um casal e dois filhos.

Felipe: (atento) – Seja mais detalhista, por favor.

Diego: (continuando...) -Ok!  Temos um pai na pele de um irritadiço e grosseiro dono da casa; uma mãe na pele de uma socialite fútil, sempre ligada nas mídias sociais; e os filhos, jovens individualistas, um tanto alienados, com comportamentos e atitudes bem esquisitos.

Felipe: (um tanto surpreso, irônico) -Mas é um contexto de TDAH, de TEA? O que pode redundar disso tudo?

Diego (animado)-Aí é que se insere “the heart of the matter” ! D.Francisca, a empregada! Ela será a pessoa mais normal e verdadeira de toda essa circunstância. Ela não pressentirá, nem por um instante que estará participando de uma espécie de reality show.

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II Ato

(Cenário a meia luz; entram os figurantes; foco de luz em um de cada vez até todos aparecerem)

Filha: (admirando a casa) – Nossa, que bela sala! (rodopia) Um cenário caprichado, não é mesmo gente?

Filho: (encenando, teatral) – Ser ou não ser. Eis a questão! Que tal? Isso aqui combina com Shakespeare, não acham?

Mãe: (admirando a sala) – Essa decoração é um capricho!   Espero ser a estrela da peça, circular por esse espaço charmoso... Combina bem comigo!

Pai: (pondo fim aos comentários) – Podem baixar as expectativas, pessoal. Ninguém aqui vai brilhar sob os holofotes tanto assim. Na verdade, teremos que apresentar nossas piores expressões faciais, verbais e gestuais, coisa nada fácil como vocês bem sabem. Afinal, interpretaremos uma família estressada e eu serei o mestre do mau humor patriarcal.

Filho: (desmunhecando um pouco) – Eu que não vou ser a vítima de nenhum tirano aqui, falou?

Mãe: (afetada) – Se eu vou ser a esposa de um mal-humorado acho que mereço um cachê bem alto, certo?

Filha: (divertindo-se) – Pelo jeito vou poder deitar e rolar na teimosia, nas discussões. Sou boa nisso, sabia? Treino em casa direto!

Diego: (sério) – Calma, calma todo mundo. A coisa é séria. Conto com vocês, artistas já escolados na dramaturgia, para dar veracidade à fábula do “show de Truman!”  E lembrem-se bem que a personagem de D. Francisca não é uma artista; trata-se de uma pessoa comum, contratada para trabalhar para essa família rica, entretanto esquisita e mal-educada.

Pai: (sério) – Diego, pode contar conosco. Já trabalhamos juntos antes e rola um bom entrosamento entre a gente. Vamos representar tão bem que D. Francisca não vai nem acreditar com o final da peça!

(Mudança de cenário: agora todo iluminado, tal uma manhã de sol. D. Francisca chega, se arruma num canto pondo um avental e uma touca)

D. Francisca: (discreta, expressão satisfeita) – Êta dia bonito pra começar num emprego novo! Sorte eu tenho, porque é uma família pequena, um casal e só dois filhos – valha-me Deus!- já crescidos; melhor, não darão trabalho!

(Põe a mesa para o café com cuidado e esmero e fica aguardando o pessoal chegar. Entram todos juntos)

Todos: (Jovens emburrados) – Bom dia!

Pai:(arrogante) -Como é, esse café está pronto ou não está? Pode servir, então, em vez de ficar aí parada como uma estátua!

(Sentam-se à mesa com caras de pouco caso)

Mãe: (antipática) – Vejo que essa mesa não está bem-posta! Onde aprendeu a pôr as louças desse jeito? Fique esperta, hein, D. Francisca, que meu marido é muito exigente!

Pai: (autoritário) – Oh, D. Francisca, olhe aqui, o meu guardanapo é colocado ao lado esquerdo do prato; não se esqueça mais disto, entendeu?

D. Francisca: (espantada, consente com um aceno de cabeça.)

Pai: (dirigindo-se aos filhos, áspero) – Não quero comentários à mesa. Quem quiser se manifestar, saia para o quintal e fale com os passarinhos. (dirigindo-se à esposa, bem seco) – “Amorcito”, (diz afetado) vai sair hoje outra vez? Para que? Não quero que se encontre com sua amiga Dolores, entendeu? Essa mulher é péssima companhia para você, muito metida a ser dona da verdade!

(D. Francisca se afasta, assustada. Não consegue falar nada. Encolhida num canto murmura baixinho)

D. Francisca: (Encolhida num canto, murmura baixinho)- Que família estranha!


UM NATAL DIFERENTE - Suzana da Cunha Lima

 




UM NATAL DIFERENTE

Suzana da Cunha Lima

 

O VELHO Samuel estava só, muito só. Olhava desanimado para os campos vazios varridos pela poeira.  Seus vizinhos haviam se mudado há tempos. Um solo rebelde a qualquer plantio os haviam afastados e os mais próximos estavam a uns 30 minutos de caminhada.  Muita estrada para suas pernas fraquejantes.

Não ouvira os apelos da família que o aconselharam a ir morar com eles na cidade grande ou arrumar um cantinho no lugarejo, onde ainda tinha alguns amigos.  Não houve jeito. Era turrão, queria as coisas ao seu modo... e assim foi ficando cada vez mais só.

Falando sozinho, visão embaçada, juntas doloridas e sentindo cada vez mais o peso da solidão. Ao dormir, cabeça no travesseiro e ninguém ao lado, pensava e até chorava:Ninguém!

Para trocar ideias, compartilhar uma cerveja, jogar um carteado, ou discutir o futebol. Ninguém para aquecer seu corpo que se arrebentara na faina diária naquela terra árida e nada generosa. A angústia se apossou dele de maneira avassaladora.

E foi se agravando naquele ano especial, quando o inverno chegou mais cedo, as folhas caíram e ventos frios congelavam os ossos. Mas, sabia ele, era tempo de Natal!

Podia até escutar o badalo do sino da igrejinha distante, tocando alegre e imaginava as casas se enfeitando, as ruas cobertas de luzes piscantes, as crianças agitadas pedindo brinquedos a Papai Noel.

Uma estrela cadente riscou o céu e parou um pouco em cima de sua casa. O que fazia aquela estrela ali, imóvel, brilhando como uma joia num estojo escuro? Samuel teve uma epifania.

Lembrou-se imediatamente de sua infância, ele e os irmãos enfeitando a árvore que seu pai buscara na chácara de o seu Nestor, sua mãe preparando as rabanadas, inigualáveis, até sentia o cheirinho do açúcar com canela estalando de gostoso.

E o mais importante, que ela deixava para o fim: o presépio.  Era sempre o mesmo, Maria, José e o Menino, deitadinho na manjedoura.  Todos lindamente esculpidos em madeira nobre. E ainda havia os bois e vaquinhas e as ovelhas, e todo ano ela acrescentava um animal, ou pastores, depois os Reis Magos e muito verde e flores. E iluminava o presépio de tal maneira que aquelas delicadas figuras pareciam vivas.

— É isso, pensou! Farei igualzinho! Tenho dinheiro guardado para quê? Farei um Natal para a criançada do orfanato.  Com certeza vão ter um Natal simples e triste como todo ano. Mas este ano, não — pensou — Vou dar para eles tudo que tive, quando menino, e, se Deus me ajudar, todo ano até eu morrer.  Telefonou para o orfanato, combinou tudo, enviou roupas novas para todos, e no dia de Natal, apareceu com duas vans carregadas de guloseimas, brinquedos e a árvore.

E enquanto as crianças enfeitavam a árvore do jeito delas mesmo, com muita algazarra e risadas, ele preparou um lindo presépio, do jeitinho que sua mãe fazia. Antes mesmo de pronto, a criançada foi-se achegando, curiosa para saber quem eram aquelas figuras.

“Esta criancinha aí na manjedoura nasceu em Belém.  Seu nome era Jesus. Seus pais eram muito pobres e não havia lugar para eles nos hotéis da cidade. Assim, o dono da estalagem cedeu seu estábulo e arranjou uma manjedoura como berço e os pastores trouxeram panos como sua primeira roupinha.

Não, não nasceu em hospital, com médicos e enfermeiras, não teve ultrassom, nem chá de bebê, nem fotógrafos.

Mas mesmo assim, Ele dedicou sua vida para nos ensinar Respeito, Solidariedade e Compaixão e deixou um único conselho:

Ama teu próximo como a ti mesmo.

Depois Dele, o mundo não foi mais o mesmo".

 

A truta encantada - Conto de Natal - Ises de Almeida Abrahamsohn

 

 



A truta encantada - Conto de Natal


Ises de Almeida Abrahamsohn 


Todas as tardes ele caminhava pela trilha da mata até chegar à praia do lago. Em um dos ombros trazia as varas de pescar e o embornal com as iscas e anzóis.  Do outro pendia o estojo do violino. Ninguém mais conhecia aquele lago. Apenas Joaquim. A casa, o lago, a trilha ficavam a 100 km do vilarejo, este também perdido num vale esquecido da dita civilização.

O músico escolhera lá viver, isolado do mundo, há três anos. Foi sua resposta ao destino ou, quem sabe, à cruel divindade que lhe roubara a mulher e o filho num acidente de automóvel.  Só restara ao violinista a companhia do fiel instrumento e o canto dos pássaros. Acostumara-se à solidão que se impusera, acreditando que a música e a meditação o reconciliariam com seus semelhantes.

 Gostava do silêncio no entorno do lago enquanto esperava algum peixinho desavisado morder a isca e proporcionar-lhe o almoço do dia seguinte. Um ou outro pássaro ainda cantava à tardinha antes de se recolher. O músico começava então a tocar para as águas mansas do lago e para as árvores que o vento fazia sussurrar. Sempre começava tocando Schubert. A melodia da canção “A truta”, die Forelle.  Fechava os olhos e via a truta, alegre, saltitando ao nadar entre as pedras de algum riacho gelado. E assim também aconteceu naquele dia de dezembro, antevéspera de Natal.

Ao terminar a melodia, abriu os olhos e viu a linha de pesca ser levada para o meio do lago.  Devagar enrolou a carretilha. Era um peixe grande. Estranhou mesmo, porque naquele lago só pescava lambaris. Quando puxou o peixe para fora viu as pintas e as escamas coloridas. Ora, pensou, é uma truta. Nunca vi trutas neste lago.

Delicadamente retirou o anzol. Estava indeciso sobre o que fazer com o peixe, que parecia fêmea carregada de ovos. Devia jogar de volta na água. Foi quando a truta lhe falou com sua voz de truta:

Vamos, Joaquim, me devolva para a água, amanhã é véspera de Natal. Assim, daqui a um ano haverá muitas outras trutas neste lago que você poderá chamar com a sua música.  O que vai fazer neste Natal? Mais um Natal sozinho? Você também tem que voltar a viver.

Joaquim, assustado, jogou a truta na água. “Devo estar ficando maluco. Peixes não falam. E trutas, então, por que falariam?” Catou as linhas, anzóis e o violino e retomou rápido a trilha de volta para casa. Era quase Natal. Tinha esquecido. Mas o Júlio, que lhe trazia as encomendas do empório da vila, havia comentado há uma semana. Era uma boa pessoa, esse Júlio, mantinha com dificuldade a família, mulher e um casal de filhos. A truta perguntou, o que faria no Natal?  Seria igual aos anteriores?  Não, não!  O estranho peixe falante tinha razão. Voltar a viver. Precisava voltar a viver. Ver gente, crianças, se alegrar com a felicidade alheia...

Ligou para o empório. O Júlio ainda estava por lá.
— Que é que manda, seu Joaquim? Quer um panetone para o Natal? Ainda estamos entregando amanhã cedo.

Mas, Joaquim não queria apenas um panetone. Convidou Júlio e a família para passarem o Natal com ele e para ele trazer tudo o que mais gostassem para comer e beber e brinquedos e doces para as crianças.  Júlio, espantadíssimo, perguntou se ele estava se sentindo bem? Ao que Joaquim respondeu:

 Estou ótimo, Júlio. Será por minha conta. Você vai ver. Traga seu violão e juntos, com o meu violino, tocaremos muita música alegre. Só não traga nenhum peixe para a ceia de Natal!

 

modelo de ROTEIRO DE TEATRO - OLHOS ABERTOS E AMOR NO CORAÇÃO

 

 

 


 

 

PEÇA DE TEATRO

 

OLHOS ABERTOS E AMOR NO CORAÇÃO

 

Roteiro: Gustavo Gonçalves e Maria das Graças Rojas Soto

 

 

 

Personagens: Felipe, Isabela e Camila

 

Cena 1 – Casa do Felipe

 

(Felipe é um jovem adulto de classe média que perdeu seu emprego durante a pandemia e passou por algumas dificuldades financeiras nos últimos meses. Recentemente conseguiu uma vaga como vendedor em um supermercado e está dando melhor de si para se mostrar produtivo em sua nova oportunidade.)

 

A cena começa com Felipe acordando para um novo dia. O despertador toca alto e ele com muito sono e um semblante desanimado o desliga, ele para por um instante e como se se lembrasse do motivo de estar acordado sua expressão fica feliz imediatamente, em um gesto de gratidão por mais um dia.

 

Segue uma sequência de takes bem curtos: ele lavando o rosto, tomando café da manhã, escovando os dentes e pegando um ônibus no ponto de ônibus.

 

 

Cena 2 Mercado

 

(Já no seu trabalho ele aparece atendendo algumas pessoas, entre elas Isabela. Os dois conversam brevemente):

 

Isabela – Felipe! Como as coisas estão caras, meu Deus! Que feijão de ouro é esse???

 

Felipe – Pandemia, Isa! O que a gente vê é o feijão, mas se você parar pra pensar, tudo na nossa vida está interligado... com este vírus muita gente adoeceu, alguns se foram, outros precisaram ficar reclusos em casa, a forma de trabalho mudou em todo lugar, de locomoção também... até chegar a esta prateleira esse feijão foi grão que teve que ser semeado, colhido, ensacado, transportado, embalado, ... Muitas pessoas e situações estiveram envolvidas nesse processo. Como tudo ficou complicado para todo mundo, muita coisa se reflete nos preços...

 

Isabela – É, tem razão, na verdade, é em tudo mesmo! Quem ia à escola teve que parar de ir, os pais tiveram que achar formas diferentes de cuidar e trabalhar ao mesmo tempo. Se inventou por todo lugar, aula pelo computador, pela TV, trabalho remoto... Mudaram também as formas de convivência em casa, quem se via pouco passou a ficar muito tempo junto, pra algumas pessoas isso fez bem, pra outras tornou a convivência insuportável. Quem diria, hein??? Uma reviravolta causada por algo tão microscópico que sequer vemos!!!

 

Felipe – Incrível, né? Mas foi o que aconteceu. Agora vamos ter que ficar bem espertos e aprender algo com tudo isso. Não é possível passar por tanto sofrimento, tanta transformação  e não mudar nada na gente, e a gente não mudar nada no mundo. Agora é a hora: olhos abertos e amor no coração!

 

Isabela – Mas filosofou bonito, hein rapaz! Uhuuu mudanças da pandemia...

 

Felipe – Ah, para, Isa, hora de ir p casa que Clarinha te espera.

 

 

 

Cena 3 – Casa da Isabela

 

(Isabela é uma mulher jovem que precisou mudar de rotina para se adaptar aos desafios da pandemia. Tem uma filha ainda criança, Maria Clara, que está atualmente estudando em casa. Isabela divide seu tempo entre seu trabalho remoto, os afazeres domésticos e ajudando sua filha nas aulas online. Isabela chega do mercado e passa direto para a cozinha):

 

Isabela – Tudo bem aí, Clarinha?

 

Maria Clara (ao longe, em off) – Tudo bem mamãe, estamos aprendendo sobre vírus hoje com a professora.

 

Isabela – Isso vem muito a calhar, filha, presta atenção e depois ensina a mamãe! Qualquer dúvida, dá um grito!

 

(Na cozinha Isabela lembra e fala consigo mesma):

 

Isabela - Ei, tá na hora! Eu tava quase esquecendo da reunião!

 

Acessa o celular e conversa com sua colega de trabalho por videochamada enquanto lava a louça que ficou da manhã

 

 

Cena 4 – Reunião online

 

(Do outro lado da câmera aparece Camila, a cientista, que está de jardineira, boné, um pouco descabelada e com umas plantas nas mãos):

 

Camila – Oi Isa! Como você tá? Desculpa não poder conversar com calma com você, esta pandemia deixou este espaço uma loucura!

 

Isabela – Sei o que é isso, mas é bem rápido, só pra acertar uns detalhes sobre a palestra que você vai dar lá na empresa; agora que as atividades estão voltando a ser presenciais achei importante. A coisa por lá vai ser híbrida, ou seja, vamos ter pouca gente no auditório e muita gente online te acompanhando.

 

Camila – Ótimo! Sabe, Isa, eu fiquei muito feliz com seu convite, por ver vocês se interessarem por meio ambiente e desenvolvimento sustentável

 

Isabela – Camila! Você é a melhor pessoa para este momento. Estamos todos pensando no futuro, em como fazer para ter um mundo mais saudável. Esta pandemia esparramou na nossa cara que estamos fazendo tudo do jeito errado, mesmo querendo muito acertar! A gente precisa aprender alguma coisa com tudo isto! Se continuarmos com essa nossa relação de só querer tirar coisas da natureza sem nos importarmos em como o ambiente reage a isso, esta pandemia pode não ser a última...

 

 

 

Camila – É... tudo isto tem sido tão ruim... não é possível que vamos sair disto fazendo tudo do mesmo jeito que sempre fizemos...

 

  Isa – Engraçado... Logo cedo ouvi uma coisa bem parecida...

a vida precisa ficar melhor p todos.

 

Camila - E por falar em vida... Ei! Vamos fazer um piquenique pra comemorar seu aniversário na próxima semana? Eu não esqueci desta vez, tá vendo???

 

Isabela – Eitaaa e não é que lembrou mesmo??? O mundo de ponta cabeça, a gente sem se ver parece que faz séculos e você tira isso da cartola?!

 

Camila – Tô louca, mas não desalmada, amiga, continuo amando muito meus amigos. Tô morrendo de saudade de você e do Felipe, a gente não se vê faz quanto tempo? Um ano e meio??

 

Isabela – Por aí... tempos duros estes, mas a gente tá conseguindo, não é? Com paciência e persistência as coisas vão melhorando.

 

Camila – Então, tá vendo??? Nada melhor do que celebrar a vida!

 

 

Cena 5 – Piquenique

 

(Camila, Isabela e Felipe aparecem distantes entre si, cada um em cima de sua toalha, comendo e bebendo alguma coisa, felizes e conversando):

 

Camila – Felipe, você já tomou todas as doses da vacina, então?

 

Felipe – Sim, tomei faz umas duas semanas.

 

Isabela – Ai, que coisa boa... todo mundo vacinado então, eu nem me lembrava mais como era sentir um ventinho no rosto, conversar com amigos... Antes parecia tão fácil! Uma coisa é verdade, as pequenas coisas são muito mais valiosas agora, não é?

 

Camila – Demais, tava com saudade até da risada estranha do Felipe (todos riem)

 

Isabela – Mas como será que vai ser agora daqui pra frente, hein, gente?

 

Camila – Olha, isso aí a gente não consegue saber nem pela faculdade, nem pela bola de cristal, mas acho que muito vai depender da gente, de todos nós, humanos, da nossa vontade de fazer diferente... muitas coisas já aprendemos neste período ingrato: a natureza é nossa amiga e precisamos ter carinho e cuidado por ela, as pessoas nos fazem muita falta então precisamos cuidar mais das nossas relações. Não tem preço um dia de sol como hoje, tendo em volta pessoas que amamos, jogando conversa fora e comemorando que Aqui Estamos!

 

Isabela - Como me disse um sábio uma vez: Olho aberto e amor no coração! (piscando para Felipe)

 

(A cena termina com todos rindo).