O DESTINO DE FERNANDO
Conto coletivo em andamento.
PERSONAGENS:
Virgínia / Evandro / Jorge, pai
dela / Fernando, filho de Virgínia, Evandro (pai de Fernando), Dolores (companheira do avô Jorge), Queiroz (gerente do haras), Lenita Fragoso (investigadora).
CENÁRIO INICIAL: Rio de Janeiro – Copacabana
CENÁRIO RESIDENTE: Cidade de Lapinha em Minas Gerais
CENÁRIO FIXO: Vassouras, RJ
O DESTINO
DE FERNANDO
Trechos elaborados por:
Ledice Pereira, Yara Mourão, Silvia Villac, Suzana da Cunha Lima e Sergio Dalla Vechia
A VIAGEM
INESQUECÍVEL
CAPÍTULO I
Estava amanhecendo quando o ônibus chegava ao Rio
de Janeiro vindo de Lapinha, Minas Gerais. Uma tênue nuvem de ocre transparente
cortava na horizontal o céu, criando uma silhueta mágica no perfil da cidade.
Virgínia esfregava os olhos, já se maravilhando com
a impressão fantástica que tudo lhe causava. Sempre imaginara estar numa grande
cidade, de arranha-céus, avenidas movimentadas, com muitas pessoas caminhando
apressadas, agasalhadas num frio estrangeiro.
Sua imaginação era, e sempre fora, muito maior que
a realidade.
Naquela manhã de dezembro, entretanto, o Rio fervia
num calor quase insuportável, que há dias pairava no ar. Mas tudo ali estava
posto para grandes acontecimentos, grandes encontros.
Como que para fazer jus à fama da “Cidade
Maravilhosa”, tudo se deu muito rápido para Virgínia.
Ela mal podia acreditar que estava ali, naquele
momento mágico com que sempre sonhara. Ela que vinha de cidade inexpressiva, de
onde nunca saíra. A vida na fazenda lhe proporcionava fartura. Mas almejava
mais, queria viajar conhecendo outros lugares. Receoso, Jorge, seu pai, concordou em satisfazer a
vontade da única filha, permitindo que ela passasse aquele réveillon de sonhos
em Copacabana, Rio de Janeiro.
Foi ali, naquele cenário encantador, embalada pelos
fogos que coloriam o céu de Copacabana que ela conheceu Evandro, um belo rapaz
que a cativou instantaneamente pela simpatia, gentileza, cavalheirismo e
charme.
A “arte do encontro”, como dizia o poeta,
consolidou momentos felizes, com brinde de champagne e votos de um feliz ano
novo.
Sob o efeito da festividade que o momento
proporcionava, brindaram e pularam as sete ondas e quantas mais vieram. O breu
da noite era quebrado apenas pelo luar esplendoroso que fazia companhia para o
casal. Quase não conversavam mais, havia urgências dentro deles. Embalados pelo
momento, ali ficaram até adormecerem profundamente. Ela acordou com o sol nos
olhos, estava feliz, não queria se preocupar em entender que havia passado a
noite ali com um homem encantador.
Ele dormia ainda, sua exaustão o deixava ainda mais
atraente. Ela se ergueu lentamente, sua roupa estava encharcada de água e
areia, decidiu ir embora, precisava de um banho, não queria que ele a visse
assim. Saiu devagar arriscando pequenas olhadelas para trás. Mais tarde,
percebeu que não mencionou onde estava hospedada, nem anotou o telefone dele.
Voltou lá outras vezes, mas não o encontrou.
Virgínia saboreou esse réveillon por dias! Parecia até um sonho! Os dias se
passaram, ela estava intrigada com o acontecido naquele primeiro de janeiro,
guardando para si a imagem do rapaz que ficou registrada nas selfies tiradas
antes daquela meia noite.
Mas, essas nuances foram se dissipando à medida que
o tempo passava, até quando ela se viu voltando, meio realizada, meio
frustrada, para sua cidadezinha mineira, banhada por um belo rio, rodeada de
montanhas, alheia a ventos futuros.
Virgínia voltou para casa, mas não voltou sozinha.
Trazia, junto com muitas lembranças de Evandro, um filho em seu ventre que logo
ela tomaria conhecimento.
Apesar da surpresa e certa indignação, Jorge a
apoiou como sempre o fazia desde a morte da mulher. Ele sabia da importância do
avô na vida da criança, procuraria substituir a figura paterna que, certamente,
não conheceria.
E assim nasceu Fernando, longe de um pai que nem o
sabia, mas que estava em algum lugar, aguardando o destino.
Tornou-se um garoto esperto, cheio de vida e muito
curioso para o aprendizado da lida na fazenda. Tal qual a mãe, era amante da
literatura, e quase não encontrava tempo para amizades. Sua vida era a lida, a
família, e a escola.
A proximidade com a terra, com o gado, com a vida
rural, levou Fernando para a área de Veterinária, e seguiu cursando a
Universidade Federal de Minas Gerais.
Entretanto, a ideia de conhecer o pai, cujas fotos
a mãe lhe mostrara, era uma constante na vida do rapaz que só aguardava o
momento certo para isso.
EM BUSCA DO
PASSADO
CAPÍTULO II
Quando cursava o último ano da Faculdade, vô Jorge o presenteou com uma
viagem para o Rio de Janeiro, para que conhecesse as maravilhas da cidade
litorânea, e também pudesse investigar a identidade de seu pai. Sobre ele,
Fernando sabia o que sua mãe lhe dissera: que chamava Evandro, que era
empresário e que deveria ter pouco mais que quarenta e cinco anos.
O jovem estava ansioso para o que descobriria. Mas, Virginia que tinha a
cena do Réveillon tão viva na memória, trançava dos dedos na esperança de obter
notícia daquele homem que lhe dera a noite mais feliz da vida.
Era como procurar uma agulha no palheiro. Mas, o
jovem era obstinado e resolveu entrar de cabeça em busca do antigo sonho.
O primo de segundo grau, Ary, advogado experiente,
indicou a detetive muito conceituada no Rio, oferecendo-se para ajudar no que
fosse necessário.
Foi assim que Fernando conheceu Lenita Fragoso a
quem relatou sua história. Na verdade, a história de sua mãe, mostrando-lhe as
fotos no celular, selfies tiradas por Virginia naquele réveillon. A
profissional o escutou atentamente enquanto fazia anotações num caderninho
preto.
O rapaz sentiu-se esperançoso com as possibilidades
que ela disse que haveria. A detetive tinha lhe passado uma ótima impressão -
comentou com o primo.
Baseada em suas anotações, Lenita logo colocou a
mão na massa, investigando todos os empresários de nome Evandro que atuassem no
Rio, São Paulo e imediações. Surpreendeu-se com o grande número de indivíduos
com esse perfil. Tinhosa que era, tratou de pesquisar traços da vida de cada
um, colocando Fernando a par do curso das investigações.
Porém, o tempo passou muito depressa. As férias do
jovem estavam terminando e ele teria que retornar, mas deixaria em boas mãos a
elucidação de algo que, para ele, era primordial.
UM
VETERINÁRIO BEM-SUCEDIDO
CAPÍTULO
III
Tão logo se formou, Fernando conseguiu arrumar um
emprego em um haras localizado em Vassouras, cidade a pouco mais de 100km do
Rio de Janeiro. Sendo ele um veterinário de animais de grande porte, os cavalos
sempre foram sua maior paixão.
Fernando estava orgulhoso de ter arranjado esse
emprego. Tudo havia sido acertado on-line, curriculum, entrevistas com o
administrador, salário e horário de trabalho.
Finalmente o dia de sair de casa chegou e, com um
misto de alegria e incertezas, ele partiu para Vassouras, onde o destino lhe
“pregaria uma peça” e tanto!
E logo estava na estrada que o levaria à cidade conhecida
por Princesinha do Café, e aquele frio na barriga foi substituído por um
vendaval de emoções. Embora tivesse pesquisado um pouco sobre a cidade, sempre
o desconhecido o afetava assim.
Como o povo do local o receberia? Como seria
a cidade, quanto à diversão, restaurantes e garotas! Sim, Garotas!
era um rapaz fogoso, em plena juventude e queria se divertir como qualquer
rapaz de sua idade.
Sabia do charme da cidade, de suas históricas
fazendas de café e a possibilidade de tédio naquele lugar era quase
inexistente.
O automóvel de pouco uso, agora seria seu
companheiro mais presente. À medida que chegava, percebeu que mal conseguiu
observar a paisagem por onde estava passando. Cada vez mais excitado,
finalmente estacionou no posto de gasolina à entrada de Vassouras. Perguntou
sobre a pousada que já estava reservada com antecedência; “è bem ali” –
respondeu o frentista apontando para uma rua que corria paralela e finalizava
na praça da Matriz.
Bom, agora é pra valer mesmo – pensou – Vamos lá,
Vassouras! Me mostre o que tem de bom!
No centro, deparou-se com um casario alinhado ao
longo da estreita rua e imaginou-se morando numa daquelas casinhas. A cidade já lhe parecia acolhedora. Encantado,
mas um pouco receoso. Mal sabia que tinha muita razão para isso...
Fazia muito calor apesar de o relógio da igreja
mostrar 18 horas. O ar denso parecia estar nas costas de Fernando. Ele estava
cansado. Ouviu o lamento do sino anunciando a Ave-Maria. Viu um grupo de
senhoras se benzendo ao entrar na igreja matriz. Lembrou do avô tão religioso,
tão positivo. “Deve estar rezando a esta hora, como sempre fez” – pensou.
Na mente e no coração, os pensamentos e as
lembranças se misturando, Fernando decidiu abraçar a própria história naquele
momento. Começou a alinhavar todas as emoções, as esquecidas alegrias, a mãe
tão dedicada, o avô grande exemplo de vida, o pai que ainda não conhecia, e construir
sua fortaleza a partir do que viria.
Com a determinação de lutar batalhas e vencer as
guerras, traçou os rumos que queria seguir. Instalou-se na pousada Vila
Hibisco, era a mais próxima do haras. Não era exatamente o que havia imaginado,
mas era um local limpo, arejado e bem frequentado, apesar de que isso não
importava. Precisava mesmo estar próximo daquele local para tentar conseguir
regularizar sua situação no trabalho.
Na manhã seguinte apresentou-se ao haras. Observou
com encanto o gramado verde se estender diante dos olhos, as cercas brancas
delimitando pastos, alguns animais a trotar ali e acolá. O cheiro que vinha das
baias se misturando ao cheiro de grama aparada. Tudo tão organizado e limpo.
O gerente,
Queiroz, um homem
grande com vozeirão solene, cheirando a água de colônia, deu-lhe as
boas-vindas. Apresentou-lhe a propriedade. Disse que o proprietário não morava
ali, mas visitava o haras semanalmente. “Aqui tudo tem que estar sempre em
ordem, os animais saudáveis, os funcionários satisfeitos” – disse o gerente
trocando um olhar levemente severo com Fernando. Dali a alguns dias, haveria um
evento bem importante no haras, acontecia anualmente: seria uma semana inteira
dedicada ao Bem-Estar Animal, quando todos os cavalos seriam devidamente
examinados, vacinados, higienizados e preparados para a maior competição do
Brasil. Viriam de toda a região, todos animais competidores e valiosos, por
essa razão o haras o contratou. Outros veterinários trabalhariam no evento,
todos contratados exclusivamente para essa época. Muitos deles permaneciam no
haras, outros buscavam novas oportunidades.
Esta lhe pareceu uma ocasião bem propícia para
mostrar sua capacidade de atendimento de qualidade, no posto de veterinário
visitante que o haras estava oferecendo, pensou Fernando.
Assim foi que na manhã de seu primeiro dia, o
nascer do sol o encontrou já de pé na varanda da pousada com uma fumegante
xícara de café nas mãos. Estava seguro, ansioso pelo que viria.
As tarefas diárias no horas, corriqueiras para um
veterinário, não punham em teste a qualidade de atendimento de Fernando.
Até que começou o movimento Bem-Estar-Animal e uma
grande agitação tomou conta do lugar. Havia muitos cavalos e seus respectivos
proprietários chegando quase ao mesmo tempo. Todo o staff estava presente,
orientando ou conduzindo proprietários para a sede ou para as baias onde os
animais seriam alojados.
Fernando estava exultante com o vaivém de
convidados, jornalistas, empresários e animais. Reconheceu grandes criadores
como Tolentino, Rezende e nomes que não imaginou conhecer tão cedo. Devido à
grande movimentação, Fernando preferiu ficar nas baias cuidando do bem-estar
dos cavalos do seu patrão. Tinha um animal preferido, a égua Neblina com pelagem
cobre, crina esbranquiçada e olhar, indiscutivelmente, hipnotizador, puro-sangue
inglês, raça considerada como a mais veloz entre todas, sempre presente em
provas do turfe e hipismo. Foi Fernando que a conduziu até a pista da prova, queria
passar tranquilidade para ela, pois a conhecia o bastante para saber que essa
agitação interferiria em seu desempenho.
Da cabeceira da pista, Fernando examinou o
ambiente. Os cavalos que ali estavam eram altamente competitivos. Foi quando
avistou uma moça alta, longilínea, de cabelos castanhos claros e olhos verdes,
uma imagem significativa para Fernando. A jovem afagava calmamente a pelagem escura
de um puro-sangue árabe. Sentiu Neblina dar um tranco na rédea, de alguma
maneira, ela se sentia desconfortável. Voltou os olhos para a moça que avistara
há pouco, mas não a viu mais.
Neblina
passou com louvor na prova e se classificou para a etapa seguinte. De repente, o
sino da sede badalou, chamando os convidados para o almoço.
Queiroz, muito
ocupado nesses dias, encarregou Fernando de algumas atividades da gerência para
ajudá-lo na empreitada do evento.
Havia
vários garçons e copeiras – alguns Fernando reconhecia como empregados do haras
– circulando bebidas e hors d’oeuvres. O living estava lotado de visitantes, as
conversas soavam daqui e dali. Entre tantos, lá estava ela novamente,
conversando com um senhor mais velho. Os dois pareciam se conhecer.
“Fernando,
Fernando, tome sua linha e não invente sarna para se coçar”, ele disse para
si mesmo. “Isso tudo é muita areia para seu caminhãozinho”. Mas
ela parecia ser especial! Aquele tipo de pessoa que não se esforça para ser
elegante e chic e, mesmo sem querer, chama a atenção para si, com seus traços
delicados e modos finos.
Seu
pensamento é afastado quando ouve alguém dizer “o almoço está servido”, e logo começou
um movimento em direção ao buffet, e depois seguiam para a mesa com lugares
previamente marcados.
A maior
surpresa para Fernando, foi constatar que o lugar reservado para ele era
exatamente ao lado de Tereza Cristina, “Que situação, meu Deus!”. Com o peito em alvoroço,
sentou-se: “Com licença”. Imediatamente se serviu da água à sua frente. Alguma
coisa precisaria fazer para aplacar a inquietação que o dominava. Foi quando
ela lhe disse: “Sem dúvida, Neblina é uma égua especial”.
A partir
daí, falaram muito sobre equinos, sobre competições, sobre a raça puro-sangue. Nem viu as horas passarem. A noite chegou
devagar, tomaram um chá ali mesmo. Só se deu conta de ter anoitecido quando ela
disse que já estava tarde, iria se retirar, precisava poupar forças para o dia
seguinte.
Ele teve
uma noite agitada, acordou várias vezes, não conseguia parar de pensar no dia
anterior, no quanto havia sido agradável o almoço com Tereza Cristina.
Desceu cedo
para o café de manhã e já havia hóspedes conversando alegremente àquela hora. Ouviu
alguém ao lado mencionar o nome Tereza Cristina.
“Sim,
ela voltou da Espanha há 2 semanas, veio para o casamento que deve ocorrer
daqui há 1 mês e meio”. O José
conseguiu, finalmente, encontrar uma pretendente para aquele inútil do filho
dele”.
Foi como se
Fernando tivesse levado um soco no estômago.
Quem era
ela, afinal? Pensava Fernando.
Entre um pensamento e outro, faiscava também algo
que o deixava tenso: recebera um e-mail de Lenita Fragoso. Ela falava de suas
pesquisas, comentava as possibilidades, as coincidências e os enganos que
encontrara. Gentil, ela se despedia com um abraço. Mas havia um P.S. que
assinalava uma informação intrigante: “Coincidência com seu propósito de
carreira, dentre os Evandros pesquisados, encontrei um que ama cavalos de
raça e possui alguns garanhões que costumam participar de competições., é o
Dr. José Evandro
Polinesi, mas não há evidência nenhuma de que ele seja o homem que
procuramos, não ainda”
O NOVO MUNDO DE VIRGÍNIA
CAPÍTULO IV
A vida de Virgínia, após o nascimento de Fernando,
resumiu-se em cuidar dele e ajudar o pai na fazenda. Os afazeres tomavam quase
todo seu dia, fazendo com que ela não tivesse tempo de ver a vida passar.
Acordou quando Fernando foi para Vassouras.
Aos quarenta e poucos anos, desejou mais. Queria
conhecer pessoas, viver sua própria vida. Havia parado os estudos quando de sua
gravidez e nunca mais voltara para entrar na Universidade, embora o pai a
tivesse estimulado a voltar.
Conversou com o pai. Demonstrou sua vontade de
retornar aos estudos. Ele, mais uma vez, a apoiou.
Passou a estudar assiduamente, com o intuito de
prestar vestibular na metade do ano. Gostava mais da área de humanas. Nesses
anos todos, havia devorado uma quantidade de livros. Ler era sua paixão e única
diversão. Empenhou-se com ideia fixa.
Quando Fernando recebeu mensagem da mãe, contando a
novidade, deu-lhe o maior apoio.
Havia momentos em que ela se questionava. Pensativa,
sentada na varanda da casa quando se punha a fazer uma retrospectiva da vida.
A sensação que tinha é que o tempo havia sido
congelado e que nada de muito proveitoso havia feito. Desde que seu filho
nascera, vivera exclusivamente em função dele e, quando o menino cresceu, sua
vida virou-se em direção do pai que, embora mais velho, não se entregava à
idade, e ainda trabalhava na roça dando ordens e acompanhando os serviços.
Há dois
anos Jorge conheceu Dolores na “Feira da Roça”, evento que acontece anualmente
em Lapinha. Dali por diante trocaram muitas conversas, passeios e amores. Ela,
quinze anos mais jovem, tinha uma história de vida e perdas familiares que
quase a levou à depressão. Mas, motivada pelo que lhe parecia ser o novo amor
de sua vida, deixou sua casinha na cidade e foi morar com Jorge na fazenda. Para
Virginia, um alento ver o pai apaixonado àquela altura da vida.
As pessoas se desafiam, provocam mudanças na rotina
da vida, até meu pai e Dolores, pensava Virginia.
Mesmo atuando com muito afinco no trabalho
voluntário da Associação de Combate ao Câncer, onde comparecia duas vezes por
semana, exercendo trabalho burocrático, de secretária, administradora e
levantadora de fundos, promovendo bingos, bazares, sorteios e tudo o mais, apesar
de todas essas atividades a vida de Virginia clamava por mudanças.
O amanhecer
ainda tardaria, mas essa era a hora em que ela acordava. Nos últimos tempos seu
corpo se habituara a poucas horas de sono. Isso estava causando muito incômodo
durante o dia porque ela se sentia cansada demais, a ponto de ter um ataque de
nervos.
Não era para
menos. Ela vira sua vida mudar rapidamente, da mansidão do convívio familiar
para a distância das pessoas e das realizações que fizeram parte de seu dia a
dia.
Virgínia queria
seguir na esteira das novas experiências, adquirir conhecimentos e habilidades
que sua idade ainda poderia oferecer. O sucesso profissional do filho a
entusiasmava. Tinha grande orgulho de ter podido criá-lo, prepará-lo para uma
carreira bonita. Ela até o invejava, pois queria que ele também se orgulhasse
dela. Por isso decidiu partir. Deixar o aconchego da casa do pai, se aprimorar
no que fazia.
Suas decisões
eram corajosas, mas demandavam muitas considerações. Por isso não conseguia
mais dormir direito. Passava os dias preparando a partida que é muito mais do
que um “adeus” na porta de casa.
Um dia, sem
hesitar muito, disse ao pai:
— Pai, como já
falamos, vou ao encontro de meu filho. Tenho saudades e preciso estar com ele.
— Entendo,
filha, na verdade, eu também sinto falta do nosso Fernando, suas risadas, seu
abraço apertado...
— Mas, escuta,
pai, vou ficar por lá uns tempos, vou morar por lá.
— É mesmo? –
Jorge sentiu uma fisgada no estômago, mas imediatamente recebeu um olhar de
correção vindo de Dolores. Então ele disse: “Faça isso, a vida é curta,
menina.”
—Vocês ficarão
bem. Voltarei com grandes novidades certamente! Vou estudar e, se tudo der
certo, farei uma bela carreira!
— Vá, minha
querida. Siga seu destino. Deixa que eu cuido do nosso Jorginho – Disse Dolores
em tom bem animado.
— Te desejo
sucesso, filha! A vida traz oportunidades impensadas. Siga seu coração e seja
feliz!
Assim faria
Virginia.
Aproveitou que, coincidentemente, a Associação mudou
a sede física para Vassouras, ela decidiu que também era hora de provocar
mudanças em sua vida.
Mudou-se para Vassouras, lá também estaria perto de
Fernando, isso a deixava tranquila. Cortou os cabelos, emagreceu 7 quilos.
Seria Assistente Social e, quem sabe, se tornaria a presidente de sua querida
Associação...
VIRGÍNIA PODEROSA!
CAPÍTULO V
Ela mesma não acreditou em sua mudança física, após
emagrecer e tomar “um banho de loja”.
E o mais notável foi sua mudança interior. Estava
feliz, sentia-se bonita e pronta para a vida, seja lá como ela se
apresentasse. Com pouco mais de 40 anos, não pensava mais em príncipes
encantados. Agora é minha vez, pensou.
A cidade era bem maior que Lapinha, parecia tão
aconchegante com aquelas casas alinhadas. Tratou de alugar uma casinha jeitosa
no centro da cidade, bem perto da Universidade. O imóvel já estava
mobiliado com o essencial, o que muito lhe convinha. Tudo muito arrumado e cujo
preço cabia bem no seu bolso. Além disso, tudo era bem pertinho. Uma feira
enorme aos domingos, um pequeno cinema local e, na pracinha, perto da igreja,
da Prefeitura, dos Correios, ainda havia uma lanchonete muito visitada, que
servia também de parada rodoviária intermunicipal.
Tinha suas economias, mas pretendia logo arrumar um
emprego, não mexeria em sua poupança.
— Esta será a nova Virgínia! — pensou.
Assim, sorrindo por dentro, sonhou por instantes.
Esparramou-se na cama e suspirou algumas vezes.
Murmurava para o travesseiro, como estava feliz.
A casinha servira anteriormente de república para
moças, era bem aconchegante. Os ambientes ainda estavam perfumados pelo blend
de lavandas das colegas que ali habitaram antes dela.
Ela estava excitada com sua nova Virgínia. De cara,
contratou Dona Sebastiana para a arrumação, limpeza e refeições. Dona
Sebastiana cozinhava na república para as estudantes, e agora seria mensalista para
atender Virgínia. Seriam amigas e parceiras.
Mal podia esperar pela primeira aula no curso que a
levaria à sua meta de carreira: assistente social.
Assim, de posse de um caderno espiral,
recém-adquirido na papelaria próxima, contendo a foto do Roberto Carlos na
capa, partiu poderosa para sua nova fase de vida!
Fez questão de pisar com o pé direito na escadinha
de acesso, após caminhar cinco minutos-luz até ali.
Foi quase impossível não pensar em Fernando naquele
primeiro dia tão atribulado. Queria muito saber como o filho estava se
ajeitando no haras. Assim que terminar de arrumar a casinha, vou chamá-lo para
jantar e tomar um pé das coisas, planejava.
FERNANDO E O PROJETO OUSADO
CAPÍTULO VI
Enquanto isso, Fernando ia se enturmando no
trabalho, apesar de haver pouca gente fixa para trabalhar. Diante daquele haras
tão bem cuidado, animais tão saudáveis, pensou em estabelecer um planejamento
de coleta de sêmen cujo seria um caminho financeiro moderno para o haras, já
trabalhavam com qualidade e competições. Tinha estudado muito o sistema, participou de
muitas atividades correlatas. No evento de bem-estar-animal, catalogou os
melhores reprodutores, registrou estabelecimentos e sentiu a necessidade de
terem ali mesmo um Centro de Coleta e Processamento de Sêmen. Conversou
longamente com Queiroz, mostrou planilhas, pesquisas, exigências, leis, e
principalmente um demonstrativo de ganhos no primeiro ano. O gerente ficou
surpreso com a dinâmica do jovem veterinário. “Muito bom, Fernando! O patrão
deve gostar dessa iniciativa. É um processo caro, mas em se tratando de uma alavancada
financeira como essa, tenho certeza de que pode levar adiante o projeto. Já
peça uma avaliação zoogenética, isso demora uns dias para que o laudo chegue
para nós. O chefe está viajando, estará aqui no mês que vem. Teremos tempo para
alinhavar os caminhos. Prepare tudo para nossa conversa”.
Era isso! Fernando estava tomando as rédeas de sua profissão.
Estava focado, mal arranjava tempo de ir à cidade. Sabia
que a mãe estava bem alojada no centro e isso significava muito para ele. Conversavam
por videochamada quase todos os dias. Notava o encanto em sua voz quando lhe
contava sobre pequenas passagens na sala de aula. Por outro lado, Virginia estava
orgulhosa pelo audacioso projeto que Fernando estava estabelecendo para o
haras.
Combinaram que ele a visitaria em breve. Afinal,
ele queria ver como era o imóvel, queria conhecer a querida Sebastiana, já tão
comentada em suas conversas. Precisavam falar também sobre as buscas pela
identidade de seu pai.