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Aventuras de um rico barão e seu mordomo - Ises A. Abrahamsohn.

 




Aventuras de um rico barão e seu mordomo

Ises A. Abrahamsohn.

 

O barão Lamberto era muito, muito rico... E também muito idoso. Morava em um castelo numa ilha no centro de um belíssimo lago do norte da Itália. A região era encantadora e durante o verão e outono milhares de turistas se dirigiam a esses lagos.

O velho barão morava no castelo com seu mordomo, Anselmo, que lhe servia de companheiro e enfermeiro há três décadas. Anselmo era regiamente recompensado por sua dedicação. Aliás ficava irritadíssimo com os estereótipos das novelas carentes de imaginação que indicavam os mordomos como culpados! Ele vivia em função do patrão e tratava das várias doenças reais ou imaginárias que o afetavam. Para todas havia algum remédio ou alívio que Anselmo, muito cuidadoso, tinha anotado e se apressava  a ministrar. Assim, às dez da manhã havia a queixa de dores nos ossos logo acudida com um xarope do frasco rotulado com o número da doença. Foi o sistema que ele e o barão criaram para que não houvesse dúvidas quanto à medicação. Reumatismo era a doença de número 5, mesmo número do elixir. Soluços e gases intestinais tinham os números 8 e 9 e assim por diante. O que não tinha remédio era o frio e a umidade que desciam sobre a ilha assim que o outono se anunciava, e pior o inverno.  Apesar do aquecimento era época terrível para o Signore Lamberto.

Quando as folhas mudavam de cor, assim também se mudavam o barão e seu fiel mordomo para a mansão no Egito. Todos os anos, a lancha particular os levava para Alexandria onde tomariam o trem na direção de Luxor. O vagão privativo onde viajavam pertencia ao barão e garantia todo o conforto necessário. Era engatado na composição e desengatado em Luxor, onde ficava à disposição para a viagem de volta. Em Luxor, o barão e Anselmo se instalavam em outra esplêndida mansão onde a cada ano passavam seis meses aproveitando o clima quente e seco do país. O Signore Lamberto ficava horas no jardim lendo ou ouvindo música de uma vitrola que o mordomo abastecia com os discos de 78 rotações existentes na época. A coleção era enorme, árias de ópera, concertos de solistas de todos os instrumentos, orquestras, jazz , música folclórica e mais.

 Naquele ano de 1955 o barão tinha completado 93 anos e, como sempre, no outono viajou com Anselmo para o Egito. O Signore estava feliz e antecipava o alívio de seu reumatismo naquele clima ameno. Havia apenas um inevitável desconforto para seu futuro bem estar. O sobrinho e possível futuro herdeiro, Otávio. Era um ser desprezível na opinião do barão e de Anselmo. Jogador inveterado, apostava em tudo e nunca trabalhara. Conseguira arrancar do velho barão um empréstimo sob o pretexto de abrir um negócio, mas torrara os milhões em apostas de todos os tipos. Carteado, cavalos, sinuca, o que houvesse... Só em pensar em Otávio fazia piorar o reumatismo do barão. Aliás, não tolerava nem o nome do sobrinho. Duas vogais idênticas no nome, e pior, no início e fim ladeando o centro como parêntesis de uma quadra sem sentido! Apreciava nomes sem repetição de letras tal como Lamberto. Era um nome perfeito, Humberto seria também, mas neste o H não lhe agradava. Lamberto leu no jornal daquela manhã que o notável herdeiro italiano, Otávio, se encontrava no Cairo para as corridas anuais no hipódromo. “Herdeiro, uma ova, resmungou o barão , se depender de mim não recebe mais um tostão”. Teve que ser acudido imediatamente com o elixir número 5 pelo prestimoso Anselmo que lhe deu ainda uma dose adicional de uma nova poção recomendada para acalmar os nervos. Essa o mordomo sabiamente havia rotulado como número 20 e o paciente a apreciava e elogiava sem se dar conta que se tratava de um excelente vinho do Porto envelhecido por 20 anos. É de fato um excelente remédio para as perturbações da alma. Entretanto os noticiários não deixavam de  mencionar Otávio, alguns até o chamavam de comendador. O que tornava o barão furibundo e piorava a sua artrite. Finalmente leu que o elegante Signore  Otávio acompanhado da senhorita Mirella iriam passar o restante das férias em Mônaco.

  Com que dinheiro? rosnou o tio. Deve ter dado algum golpe. E de novo com crise terrível de dores teve que ser acudido pelo elixir 5.

Parece-me que este número 5 não faz mais o efeito que fazia. E nem o de número 20, reclamou a Anselmo. Após uns dois dias e esgotados todos os possíveis elixires e remédios, no correio da manhã junto ao jornal havia um curioso envelope endereçado ao morador. Lamberto avaliou o envelope e o papel, ambos de excelente qualidade, impresso com desenhos de hieróglifos que circundavam a mensagem do Dr. Abdel Gammal, médico homeopata especializado em técnicas de medicina tradicional egípcia. O barão, ainda sofrendo com a artrite, ordenou a Anselmo combinar a vinda do médico à mansão. No dia seguinte, por volta das cinco da tarde chegou o doutor Gammal. Vestia uma longa túnica de linho branco e tinha na cabeça um pano listrado preso na testa e caído sobre os ombros à maneira das ilustrações do Egito antigo. Uma máscara de tecido branco com símbolos dourados cobria a parte inferior do rosto deixando ver apenas os olhos desprovidos de sobrancelhas o que lhe conferia um aspecto esotérico. Aliás, também não se viam cabelos ou pelos nos braços e dorso das mãos. Trazido à presença do barão, conversava em francês intercalando palavras que soavam como árabe. Inteirou-se da situação do barão e ouviu suas queixas de dores. Passou logo ao tratamento  com ministrações que incluíam fumigação, palpação das articulações e um ramo de ervas que era passado pela fronde e ao longo dos braços do paciente. Tudo acompanhado de cânticos em língua desconhecida. O velho barão já estava tonto com os vapores de cheiro penetrante. O mordomo Anselmo, porém, não se deixou impressionar pelo ritual. Quando o exótico curandeiro ofereceu um cálice com beberagem a Lamberto, Anselmo pulou de seu esconderijo atrás das cortinas, deu-lhe um safanão no braço e uma rasteira e acordou o patrão do transe. Arrancou a máscara e o pano da cabeça do curandeiro, logo reconhecido como o sobrinho, Otávio... A beberagem continha um potente veneno de arsênico que causaria a morte de Lamberto em dois a três dias. Otávio destituído da herança foi condenado por tentativa de assassinato. Lamberto e Anselmo voltaram à Itália e viveram ainda bons anos em sossego. O velho barão Lamberto deixou a fortuna para a cidade, algumas obras assistenciais e uma boa parte para o fiel mordomo Anselmo.

 

Lamberto, o esperto - Adriana Silva Frosoni

 


Lamberto, o esperto

Adriana Silva Frosoni

 

Já acostumado ao peso das inúmeras doenças que carregava juntamente com sua vultuosa fortuna, Lamberto deparou-se com mais uma patologia: atrofia deformante. Muito vaidoso, ele preocupou-se em resolver mais essa enfermidade e começou pedindo para o mordomo incluí-la na listinha que ele mantinha para não esquecer de nenhuma, sem deixar de lado a ordem alfabética.

Além dos médicos locais, ele sempre recorria ao um curandeiro árabe, então partiu para o Egito com o objetivo de vê-lo e de lá voltou com as seguintes orientações: deveria tomar um chá das pétalas da flor de lótus, mas esta deveria ser selvagem, não cultivada, e apanhada no pico do Himalaia. Para tanto, ele contratou o melhor alpinista do mundo, deu-lhe todos os recursos necessários e aguardou sua volta.

Concomitantemente, surgiu mais um problema ao qual Lamberto também estava acostumado: um bando de trapaceiros dizendo ser seus filhos e querendo parte de sua riqueza para não lhe causar maiores problemas. Além de rico, Lamberto era muito esperto, então disse aos trambiqueiros que estava disposto a pagar pelo próprio sossego e fazer com que eles se afastassem, mas que o faria apenas àqueles que conseguissem trazer-lhe a flor de lótus selvagem do Himalaia. Como ele já imaginava, foi um festival de sabotagem: um puxando o tapete do outro, um corre-corre danado e ainda lhe trariam as flores do lugar mais próximo que encontrassem.

Quando ele recebeu a flor correta, tomou seu chá e, de pronto, percebeu que faria efeito, afinal, ele tinha extensa experiência com enfermidades e remédios. Mas quando os farsantes apareceram com a flor cultivada, ele pediu que o mordomo fizesse chá de todas as partes da flor e lhes servisse. Diante da reação de estranheza do mordomo, que o conhecia de longa data, ele explicou que o curandeiro o advertiu que uma xícara de chá das pétalas da flor correta teria o poder de cura, mas era necessário ser cauteloso, pois o chá das partes erradas ou da flor cultivada geraria uma amnésia temporária, porém bastante forte.

Então, Lamberto imaginou que isso seria o suficiente para afastar os ladinos que sobraram do bando por, pelo menos, uns dois anos, se bem que ele tinha esperança de que o esquecessem para sempre.

 

 

Reescrita baseada no livro Era duas vezes o Barão Lamberto, de Giannni Rodari

BANDEIRA BRANCA - Oswaldo U. Lopes

 


BANDEIRA BRANCA

Oswaldo U. Lopes                                           

                                     

                                      Bandeira Branca amor

                                      Não posso mais

                                      Pela saudade que me invade

                                      Eu peço paz     

 

         Regina continuava a guiar com os pensamentos a voar e, como sempre, voando longe. Divorciada há tempo, não dependia de pensão ou de nenhum tipo de auxílio, ok nem todas tinham essa condição, mas que raios dera na tal líder feminista para dizer que o homem devia sempre ser o provedor.

         A eterna mistura da biologia e da diferença de gêneros. O bebê humano era de fato especial e tomava tempo para se desenvolver e andar com as próprias pernas. Catorze anos é muita coisa , isso era biologia, a mãe precisa de um companheiro para dar conta desse tempo. Isso era diferença de gênero. Mas, dependência, não.

         Que mulher precisava da força do homem em pleno século XXI?   Depois que a produção de energia, relativamente barata e acessível, apareceu,  quem precisa de força muscular para executar as necessárias tarefas do dia a dia?  Durante séculos a diferença de força e, portanto da capacidade de fazer trabalho, fora um fator de desiquilíbrio entre os gêneros. Agora a realidade era outra. Dois séculos é pouco na história da humanidade? É, mas dai tudo mudara por completo.

         Porque essa maldita música ficava soando na sua cabeça? Pobre Dalva de Oliveira, o Maracanãzinho inteiro cantando com ela e ela pensando no farabutto do Herivelto.  O pior é que eu também não consigo parar de cantar, será que quero paz, não aguento mais?

         O que me faz falta? Não vai dizer que é homem! Em pleno tempo da diversidade, em que são numerosas as possibilidades, os agrupamentos possíveis, LGBTQIAP, tantos, quase quanto às letras do alfabeto, quem precisa de homem? Eu.

         Não no sentido sexual ou por ai, mas o companheiro que está a seu lado e não deixa você se sentir solitária. É, isso ela não tinha, já teve, mas não agora. Pobre Dalva cantando com a multidão, procurando seu par. Bandeira Branca...Tinha lido, em algum lugar, que a música estava concorrendo num festival e mesmo com o estádio inteiro cantando junto, só tirara terceiro lugar. Quem, ainda hoje, sabe ou canta as chamadas vencedoras.

         Pelas sete espadas das dores de Maria, senhora da Piedade, pensou lembrando os tempos no colégio religioso. Cruzando com os sete mil amores da Luiza do Tom Jobim. O profano e o santo misturados na sua cabeça que seguia voando.

         Será que é hora de pedir piedade? Sou humana, o latim de Terencio veio junto com a religião. Com a Pietá de Michelangelo ao fundo, pediu para a jovem mãe sofredora, um pouco da piedade que lhe escorre pelos dedos. Quem trará piedade? Aquele que não é piedoso?

         Com a cabeça a mil e entoando Bandeira Branca, Regina seguiu dirigindo pensando que não ia chegar à parte alguma. Precisava chegar, sem dúvida, mas aonde? Para quem? Isso era outra história que, como nos contos infantis, que lia para os netos, ficava para outra vez.

 

E se essa história fosse minha, como seria? EXERCÍCIOS


Esta semana trabalhamos um olhar diferente para o texto do colega. 

Expusemos alguns trechos de histórias para exercitarmos a escrita partindo do trecho apresentado.

Escolha dois deles, e crie duas histórias:


Abaixo temos alguns trechos de histórias dos colegas do EscreViver. Baseando-se nesse trecho de história, se você fosse escrevê-la, como seria? (A história completa poderá ser lida no blog, faça a busca pelo título ou autor.)

 

“Certa noite dormiu cedo, cansado que estava. Durante o sono sentiu a presença estranha no quarto, abriu os olhos e viu algo ou alguém não identificável, um ser não humano, era um extraterrestre. De aparência dócil, com o corpo magro, estatura alta, pele muito branca, olhos grandes, nariz e boca pequenos, sem pelos, vestia túnica azul com botões dourados, levemente parecido com humanos...” Eu e o universo – Antonia Marchesin Gonçalves.

 

Havia uma trilha muito arborizada, com pequenas aberturas pelas quais o sol iluminava o solo extremamente úmido, de onde foi subindo um cheiro de grama misturado com terra. A umidade do ar facilitava a respiração e os pequenos troncos, colocados cuidadosamente pelo caminho, ajudavam na subida.  Mas tudo isso se esvaía ao final da trilha, pois as árvores se abriam como uma cortina e davam espaço a uma cachoeira, de tamanha exuberância que parecia uma porta para o céu.” – Sonho e realidade – Adriana Frosoni

 

“ Consta que o rapaz conseguiu entrar na pousada pela porta da cozinha e subiu ao quarto da moça. Os proprietários moram na edícula e nada escutaram. A moça loira era a única hóspede.  No escuro, com a lanterna do celular localizou a cama ocupada. Deu dois tiros de pistola com silenciador na direção do travesseiro. Ao sair acendeu o abajur para se certificar de que a vítima estava morta. Foi quando deu um grito alucinado acordando os donos que vieram correndo.” O caso que o detetive não queria investigar – Ises Abrahmsohn

 

“De repente fui retirado do banco pelo tranco violento de uma grande vaga. O mar era outro! Ondas de três metros, com cristas brancas despenteadas pelo vento forte, insistiam em emborcar a nossa pequena embarcação.

As condições meteorológicas eram diferentes, nuvens escuras em forma de hexágono, rolos de nevoeiro passavam velozmente, trombas d´agua despejavam como urina as toxinas do céu raivoso, insuflando ainda mais as turbulentas águas.” – Embarque adverso – Sergio Dalla Vecchia

 

 

Nós estávamos os quatro parados em círculo na entrada do velho casarão. Leila, com as mãos trêmulas, examinava o papel um pouco amassado com fortes marcas das dobras, bem envelhecido pelo tempo. A emoção se espalhava entre nós... deveríamos começar a procura a partir do chafariz do jardim...” – Difícil reparação – Maria Verônica Azevedo.

 

“Conheci um faroleiro que, por ironia do destino, nasceu num farol:  o pai era faroleiro, a mulher foi visitá-lo e o parto se realizou no local sem nenhumas condições, mas felizmente todos sobreviveram.  O menino cresceu sempre tendo o farol como ícone, um misto de medo admiração e angústia. ” – O mar – Ana Maria Pinto

 

“Alguns, com o intuito de contribuir, traziam pequenas vasilhas cheias d’água que mal davam para esfriar os gravetos que estalavam. Os bombeiros tiveram dificuldade para vencer os obstáculos que se interpunham entre eles e a fornalha. Custaram a chegar. Enquanto isso, o fogo devorava tudo que encontrava. Era um cenário de tristeza e devastação. Impossível conter as lágrimas que insistiam em rolar, encharcando meu triste semblante” - A impotência humana – Ledice Pereira.

 

“Depois de fazer as curvas da estrada de terra, a camionete azul parou em cima do mata-burro. Um fim de tarde embruscado, garoa fria, Ignácio desligou o carro, abriu lentamente a porta, desceu e deu uma longa olhada por todos os lados, parecendo absorver cada pedacinho da paisagem que sua vista pudesse alcançar.” “– Bosques de Palermo - Silvia Helena de Ávila Ballarati

 

“Era um vizinho quase invisível. Eu chegava do trabalho às 20 horas e, às vezes, o encontrava no hall do elevador. Eu entrando, ele saindo.  Ambos com pressa. Ninguém sabia qual o seu ganha-pão e não havia motivo para se especular sobre a vida dele.  Não comparecia às reuniões de condomínio, é verdade, porém não reclamava de nada e pagava pontualmente suas contas, segundo o sindico e os zeladores.” – Strike – Suzana da Cunha Lima

 

EXERCÍCIOS:

1 - Se você fosse contar uma história, como seria ela? Aproveite um desses exemplos, inserindo-o em sua história

 

2 -  Utilize outro exemplo, de outro autor, para criar OUTRA história.

Não use o trecho de história de sua autoria.

Use sempre o trecho completo que um colega criou, pode ser na abertura, no meio da sua história, ou como desfecho de seu conto

ERA DUAS VEZES O BARÃO LAMBERTO - OBRA DE GIANNI RODARI - EXERCÍCIOS




Era duas vezes o Barão Lamberto

 de Giannni Rodari

No meio das montanhas fica o Lago Orta. No meio do lago, mas não bem no centro, fica a Ilha São Júlio, e dentro da Ilha de São Júlio fica mansão do Barão Lamberto, um senhor muito velho (ele tem 93 anos), ele é muito rico (ele tem 24 bancos na Itália, na Suíça e em Hong-kong etc), e que vive doente. Ele tem 24 doenças e só mordomo Anselmo se lembra de todas elas. Elas estão anotadas no caderninho em ordem alfabética: arteriosclerose, asma, atrofia deformante, bronquite, cistite e assim por diante. Até o z de zonzeira.  Ao lado de cada doença, O mordomo anotou os remédios para tratá-la, as horas do dia ou da noite em que devem ser tomados, os alimentos permitidos e os proibidos, as recomendações médicas: "Regular o açúcar que ataca diabetes", "Evitar emoções, as escadas, as correntes de ar, a chuva, o sol, a lua"... De A a Z, Lamberto padece de tudo um pouco.

Quando chega o Inverno, os velhos ossos do Barão têm por hábito ir apanhar o sol do Egito. É lá que se dá o encontro com o curandeiro árabe que lhes fornece a cura para todos os males do velho. “O homem cujo nome é pronunciado permanece vivo”.

Então, um belo dia, chegaram a sua mansão mais seis empregados, contratados por um alto salário para ficar dia e noite repetindo o nome do barão. O trabalho era simples, mas muito, muito estranho! O segredo guarda-se no sótão, onde passam a viver umas quantas criaturas contratadas exclusivamente para invocar, dia e noite, o santo nome: - Lamberto, Lamberto, Lambertooooo...

Pelo meio, há um desfile de personagens: É o caso de Otávio, o sobrinho protótipo do escroque que anseia a morte do tio para herdar a grande fortuna,  ou dos 24 bandidos, todos de nome Lamberto, que exigem 24 milhões da fortuna do velho barão.

Pois bem, este livro conta a história do barão Lamberto que era um homem muito velho, muito rico e muito doente, graças a um remédio egípcio muito antigo, vê a sua saúde melhorar consideravelmente, entre outros efeitos surpreendentes.

 

O jornalista e escritor Gianni Rodari (1920-1980), ganhador do prêmio Hans Christian Andersen, foi considerado um dos melhores escritores de literatura infantil, Neste livro aprendemos que as palavras são, afinal, brinquedos. É com estes brinquedos que podemos exercitar o maravilhoso poder de inventar.

 

No link abaixo, você encontrará parte do livro para leitura:

ERA DUAS VEZESO BARÃO LAMBERTO-pt 


EXERCÍCIO: criar outras doenças estranhas para o Barão. Desenvolver um conto onde o Lamberto descobre estranhas doenças que o fazem mudar a rotina.


O tio rico de Angola - Ises A. Abrahamsohn

 


O tio rico de Angola

Ises A. Abrahamsohn

 

Lucila era recém chegada na família. Casara-se há um ano com Bernardo, um dos cinco irmãos que deixaram Portugal buscando melhores oportunidades no Brasil. Os outros ficaram na Europa. Havia uma irmã casada que também viera para o país . Foi num almoço de domingo  que costumava reunir as famílias na casa do mais velho que Lucila ouviu pela primeira vez sobre um tio, muito considerado, o tio Alberto que morava na África. Parece que era muito rico e não tinha filhos ou outros parentes vivos. Mantinha contato com a família por cartas, uma por semana, que chegavam sem falhar e eram endereçadas para os dois irmãos mais velhos, Abílio e José. As cartas passavam de mão em mão lidas atentamente nos almoços de domingo. Ora em uma carta ora em outra havia conselhos dirigidos a cada um dos irmãos sugerindo que fizessem isto ou aquilo, no mais das vezes diretrizes ou conselhos para alguma transação de negócios, compra e venda de imóvel, aplicações etc. Aparentemente todos na família o tinham como um gênio financeiro e seguiam a maioria dos conselhos. Afinal o homem devia entender mesmo de negócios em vista da fortuna que amealhara na África. As fotografias da mansão onde residia e dos carros de luxo atestavam seu sucesso e sua riqueza. Entretanto apesar de vários convites o tio nunca se dispunha a visitar os sobrinhos no Brasil. Alegava ter artrite que o afligia muito e mal-estar gástrico que o obrigavam a dieta rigorosa. Porém seu aspecto nas raras fotos parecia bastante saudável. Lucila achava estranha a reverência dos cunhados para com tal tio Alberto e não concordava quando seu marido recebia diretrizes sobre assuntos financeiros. Na última carta, o intrometido tio indicava que Bernardo devia se associar aos irmãos Eládio e Abílio para abrirem um bar. Lucila foi absolutamente contra. O dinheiro que tinham economizado era para dar entrada na compra de uma casa. Depois de alguma discussão convenceu o marido a ignorar o conselho. Porém dois meses depois o tio voltava à carga com o mesmo assunto. Lucila ficou desconfiada de tanta insistência. Após o almoço quando todos estavam tomando café na varanda foi até o aparador da sala de jantar e lá encontrou em meio a outros papéis, o envelope da última carta. Anotou o nome do missivista, Alberto Pereira Marques e o endereço na cidade de Nova Lisboa em Angola. Na época era difícil encontrar alguém, sem Internet e telefonia cara. Porém foi no consulado onde conseguiu a informação. O cidadão desse nome havia morrido há cinco anos. De quem seriam as cartas, então? Lucila decidiu investigar antes de falar com o marido e com a família. No próximo almoço fez uma nova incursão ao aparador onde numa antiga fruteira a família jogava recibos, cartões de lojas, contas e também cartas e envelopes. Ao lado havia uma bandeja com uma garrafa de vinho do Porto e cálices. Lucila tinha começado a revolver a papelada quando viu um dos cunhados entrar na sala. Teve a presença de espírito de agarrar a garrafa de vinho. O cunhado zombou: Ora , ora a dona Lucila também gosta de um vinhozinho! Deixe-me servi-la e também tomo um golito. Dizem que cura todos os males! O vinho era realmente muito bom, mas ela ainda teve que aguentar sorridente a longa explicação sobre os vários tipos de Portos. O sujeito esvaziou logo o cálice quando alguém o chamou da varanda e Lucila segurando o cálice numa mão pôde vasculhar os papéis na fruteira. E teve sorte. Dobrou o envelope, escondeu dentro do sutiã, e tomou um último golinho do vinho do cálice antes de voltar à varanda. No dia seguinte no escritório onde trabalhava examinou o envelope cuidadosamente. Nada indicava sua origem, era comum, tinha sido fechado com cola e selado. E foram os selos que chamaram atenção de Lucila. Os selos eram de Angola, porém o carimbo era estranho. Um dos selos parecia ter uma mancha como parte de um semicírculo com a data borrada e num sentido diferente via-se a impressão de um círculo borrado e era impossível ler a data ou lugar de expedição. Aí tem coisa, pensou Lucila. Tinha uma amiga que trabalhava no prédio central dos Correios. A amiga olhou o envelope e disse ter quase certeza de que o carimbo era falso. Iria levar a um colega especialista. De fato, dois dias depois Lucila teve a resposta. Tratava-se de uma falsificação grosseira, feita em casa mesmo, ele imaginava com tinta diluída. Qualquer pessoa mesmo sem habilidade conseguiria fazer melhor.

Sabendo da falsificação, Lucila tinha que identificar os envolvidos. Suas suspeitas recaíram em Abílio ou José, ou ambos. Não queria ainda levar o caso a Bernardo. A letra manuscrita no envelope não tinha nada de especial. Como conseguir uma amostra da letra dos irmãos? O aniversário de Bernardo se aproximava. Decidiu comprar um livro caro sobre história da arte em Portugal e pediu aos cunhados e à cunhada que escrevessem uma dedicatória ao irmão. E aí veio a resposta. Era a letra de Abílio. Lucila deixou passar o aniversário de 30 anos de Bernardo, muito comemorado, para contar ao marido o esquema dos irmãos mais velhos. A letra era de um, mas José também tinha cartas do falso tio endereçadas a ele. Quando confrontados, os dois se defenderam dizendo que só davam conselhos para o bem dos irmãos. Mas na verdade quando a irmã e os outros não envolvidos se deram conta viram que perderam dinheiro que era habilmente desviado para os dois irmãos vigaristas.

GURU DOS INCRÉDULOS - Sergio Dalla Vecchia

 



GURU DOS INCRÉDULOS

Sergio Dalla Vecchia

 

Moça inteligente, culta que meteoricamente galgou os árduos degraus do sucesso, deixando as pessoas com muita inveja.

Ela possuía capacitação para tanto, mas tão rápido assim era até para desconfiar. Algo fora do comum ou até espiritual a impulsionou, pensavam os colegas.

Certa tarde, após bebericar dois morritos durante um papo em um happy hour, uma amiga íntima dela me confidenciou um segredo e me fez jurar não revelar a ninguém.

Assim, ela sentindo-se segura, relatou que o sucesso alcançado pela amiga, aconteceu por ela seguir piamente as orientações do seu guru.

— Mas, que Guru foi esse? Curioso, indaguei.

Depois de várias insistências, nada. Apelei para um recurso não muito ético, mas válido. Pedi dois gins-tônicas. Não demorou para ela me contar que o guru nada mais era do que o nosso conhecido horóscopo. Surpreso, logo senti a mão dela apertar meu braço e uma risadinha incrédula mexeu seus lábios. Gostei, o papo foi esquentando e entre algumas carícias ela contou tudo que sabia.

Disse que a amiga desde adolescente obedecia às dicas do horóscopo: dia não propício para iniciar uma relação amorosa, cuidado com pessoas próximas, dia bom para apostas, seja mais cordial no trabalho, Vênus sugere boas relações afetivas e assim por diante.

Não saía de casa sem consultar o horóscopo do dia. O humor oscilava como as ondas das frases do guru.

Entretanto, vez ou outra ela saia apressada.

Foi o que aconteceu certa manhã, quando saiu atrasada e na calçada esbarrou num rapaz, deixando cair a pasta de documentos. Gentilmente ele abaixou-se para ajudá-la, foi quando seus olhos trombaram com os dela. O choque foi mútuo, quase paralisante, mas suficiente para tomarem um café juntos. Daí por diante tudo aconteceu em 5G até o casamento esplendoroso junto ao mar, digno das colunas sociais. Pudera, o noivo era uma das grandes fortunas da cidade.

Assim a noiva, radiante tornou-se poderosa do dia para a noite e até esqueceu, que o horóscopo do dia em que o casal se esbarrou recomendava o seguinte:

“Dia não propício para iniciar um relacionamento”

Depois disso, minha amiga nunca mais leu um horóscopo.

 

 

 

 

O grande Xamã - Ises A. Abrahamsohn

 


O grande Xamã

Ises A. Abrahamsohn

 

Dr. Carlos se arrastou paquidermicamente até a porta. O velho médico já terminara o atendimento do dia. Espiou pela fresta. Era uma mulher acompanhada por uma criança de uns quatro anos.

Escancarou a porta: Vou lhe atender num instante.

Foi recompensado com um olhar de gratidão. Ela não estava habituada aos costumes da cidade. Não que Itaperuna fosse cidade grande mas para quem vivia no fim de mundo, seis horas em lombo de burro, era a metrópole. Aceitou a cadeira e, se assentou, timidamente, ajeitando a saia.

É o menino, doutor, balbuciou. Já tem três anos e não fala.

O médico olhou o garoto que fisicamente parecia estar bem e olhava insistentemente a prateleira atrás da mesa, onde entre outros brinquedos havia carrinhos destinados a distrair seus pequenos pacientes. Perguntou:

Qual deles você quer? Eu pego para você. O menino parecia não se dar conta da pergunta. O menino nada de responder quando repetiu a pergunta, mas, sem titubear, apontou o carro vermelho de bombeiros. O médico entregou o brinquedo à criança que logo começou a brincar puxando e empurrando em todas as direções.

Perguntou à mãe se ele nunca falara, e dela ouviu que era um menino muito calmo e que respondia ao seu chamado, mas nem sempre. Ela já tinha pensado que ele poderia ser surdo, mas tinha certeza de que ele entendia o que ela dizia, nem sempre, mas entendia. Já fizera várias benzeduras, mas não resolveu.

O experiente médico não precisou muitos testes para chegar ao diagnóstico.

— Minha senhora, seu filho é surdo, por isso não fala. E sorrindo completou: ─ Ele é um garoto muito inteligente. Sozinho aprendeu a ler o movimento dos seus lábios de uma maneira que ele entende o que você quer dele e conhece quando você fala o nome dele ou mostra algo que ele reconhece.

─ Nós precisamos fazer alguns exames para ver se treinando com um aparelho especial ele pode aprender a falar e talvez, talvez ele ainda possa ouvir usando um outro aparelho. Mas é preciso levar ele para Jundiaí e lá na Faculdade ele poderá fazer os exames.

A mulher com um ar deslumbrado exclamou:

Então, ele não é bobo, doutor ? Não é bobinho, doutor? Repetiu a mãe, incrédula. Todos me falavam que ele é retardado.

Ele é muito inteligente. Não tem nada de bobo.

Assegurou o médico à mãe que se levantou e foi abraçar o filho.

Ele aprendeu sozinho a ler o movimento dos seus lábios. Com tratamento vai poder se comunicar, estudar e se desenvolver.

Logo o rosto da pobre mãe murchou e ela retorcia as mãos enquanto falava:

Doutor, como é que ele vai poder ir para Jundiaí? Eu não tenho como pagar a passagem. Não temos como ir para lá.

Quantas vezes o doutor teve que enfrentar o mesmo problema. Mas o paciente médico do interior já tinha experiência de tantas outras famílias como esta.

─ Calma, dona Eulália, a gente vai arranjar. Eu tenho um quarto no fundo da minha casa onde a senhora pode ficar com o menino durante uma noite e o burrico fica no terreno ao lado. De manhã bem cedo o transporte da prefeitura leva a senhora e o menino para o hospital de Jundiaí e de tarde traz de volta. Aí vocês dormem de novo lá no quarto e na manhã seguinte eu vejo os exames e a gente vê como será o tratamento.

E assim foi feito. O garoto chamado Antônio, ou Tonico, não era totalmente surdo. Com o auxílio de um aparelho auditivo passou a ouvir suficientemente bem para aprender a falar e se comunicar. A família mudou-se para a cidadezinha e Tonico ao ir para a escola revelou ser um menino muito inteligente. O Dr. Carlos já aposentado continuava a olhar por Tonico. Não tinha netos e decidiu custear os estudos para o rapaz que se formou em engenharia eletrônica na UNICAMP. Histórias de médicos do interior...

 

A liberdade que não foi concedida na Praça da Liberdade - Ises A. Abrahamsohn

 


A liberdade que não foi concedida na Praça da Liberdade

Ises A. Abrahamsohn

 

Eu era garota de uns dez anos na década de 1950, quando ia visitar uma velha tia que morava no bairro da Liberdade, numa casa antiga, rés da calçada onde ela alugava quartos de sua casa com direito ao uso da cozinha e dos dois banheiros. Na época chamava-se esse tipo de alojamento casa de cômodos. Porém essa era respeitável, limpa e certamente minha tia em nada se assemelhava  ao tipo descrito no conto de Aluísio de Azevedo. Numa das vezes, estava lá de visita sua filha, minha madrinha, pessoa muito caridosa e devota. Convidou-me a ir com ela na igreja do Largo da Liberdade, em vez de meu caminho habitual na direção da praça João Mendes onde ficava o ponto inicial dos bondes que se dirigiam a Santo Amaro.

Era uma igreja feia, escurecida pela fuligem em cuja lateral, próxima à calçada, o povo acendia velas. Ao queimar escorriam a estearina contribuindo para o aspecto desolado e repulsivo da infeliz igrejinha. Dentro era muito simples, sem ornamentos, apenas algumas imagens que eu percebi serem de santos negros. Nossa Senhora de Aparecida e São Benedito disputavam as flores frescas colocadas em simples vasos de barro e as muitas velas acesas. Foi a madrinha que me contou a história da Igreja da Santa Cruz das almas dos enforcados, chamada por todos de “igreja dos enforcados” e a triste história do Chaguinhas. No largo da Liberdade na época do primeiro império ficava a forca para execução dos condenados. Francisco José das Chagas, conhecido como Chaguinhas, foi um cabo negro brasileiro do Primeiro Batalhão de Santos. Após 5 anos sem receber o soldo, acrescido que soldos eram muito menores do que os recebidos pelos portugueses, o cabo participou de uma revolta para reivindicar o pagamento. Foi injustamente condenado à forca, mas ao ser içado a corda rompeu-se e a população pediu clemência para o condenado como era costume quando isso ocorria. Porém, foi negada. Na execução seguinte, de novo rompeu-se a corda e foi novamente pedida clemência, desta vez a Dom Pedro I, porém antes da resposta que demorava a chegar procedeu-se ao enforcamento. Desta vez usando uma correia de couro. O povo revoltado gritava liberdade, liberdade e foi assim que o largo passou a se chamar Largo da Liberdade. A lenda conta que que o corpo foi esquartejado e despejado numa vala existente na capela dos Aflitos, na atual rua dos Estudantes. Lá ao lado, o Chaguinhas foi enterrado no cemitério onde eram enterrados os escravos e os executados. Até hoje, a igreja e a capela são de devoção da comunidade negra. Nunca esqueci o relato de minha madrinha, devota de São Benedito. Cada vez que passo ao lado da igreja lembro a triste história dessa região. 


O despertador eficiente - Adriana Silva Frosoni

 


O despertador eficiente 

Adriana Silva Frosoni


        

O despertador eficiente

 

Adriana Silva Frosoni

 

        Na época da revolução industrial surgiu uma nova profissão entre os ingleses e irlandeses: o despertador humano ou knocker-up.  Eles usavam varas longas e leves para bater nas janelas mais altas ou um tipo de zarabatana, estas para atirar ervilhas ou bater nas janelas mais baixas. Era executada, em sua maioria, por artesãos idosos que não eram aceitos para trabalhar na indústria devido à longa jornada e às condições sub-humanas.

Pedro era um dos que não havia sido aceito na indústria local em função de sua idade, mas não se conformava em ficar em casa parado, isso feria o seu brio de artesão e arrimo de família que sempre fora. Então decidiu começar nessa nova função e era considerado muito responsável, até se permitia cobrar uns poucos centavos a mais que outros.

Essa tarefa não costumava dar problemas, a menos que aparecesse algum dorminhoco cabeça dura.

— O senhor tem que cumprir o combinado e me acordar! Não está fazendo o seu trabalho direito, mas para cobrar é muito eficiente. — Esbravejou um senhor empertigado.

        — Eu tentei acordá-lo e não foi uma vez só! Mas o que posso fazer se o seu sono é pesado? — Respondeu Pedro, o despertador humano, com todo respeito que é devido a quem lhe garante o pão de cada dia. Mas diante do cenho franzido do cliente mal-humorado, continuou. — Todos acordam apenas com uma batida da vara na janela, mas o senhor não! Não acorda de jeito nenhum! Preciso ir para a próxima casa, senão os outros perdem a hora!

        — Agora a culpa é minha porque meu sono é pesado? Resolva isso de uma vez por todas, a culpa será sua se eu perder meu emprego por chegar atrasado!

        No dia seguinte, Pedro, que já estava farto do dorminhoco, foi preparado para não falhar. Não só porque precisava muito do dinheiro, mas também porque queria descontar a bronca imérita do dia anterior. Deixou para acordar o cliente insatisfeito por último e não sairia de lá até ter certeza do dever cumprido.

        ­— Mas o que é isso? Uma guerra? — Saltou o dorminhoco ainda em ceroulas, quase arrancando a maçaneta ao abrir a porta balcão do seu quarto. — Porque está tentando explodir minha janela?

        — Bom dia, senhor! Só queria garantir que estava realmente acordado!

        — Mas isso não é maneira de acordar um sujeito! Você jogou uma bomba na minha janela?

        — Sim, mas primeiro bati com a vara. Como não ouvi reação, atirei ervilhas com a zarabatana, mas ainda assim não surtiu efeito. — Nesse momento Pedro já começava a se retirar, pois começava a ficar difícil não rir da cara de assustado do reclamão. —Então pensei que se eu jogasse uma bomba, seria mais efetivo, e realmente foi!

        Daquele dia em diante, o dorminhoco nunca mais deu trabalho para acordar, o dorminhoco pulava da cama já na primeira batida na janela e logo sinalizava ao senhor despertador que estava de pé.

SONO PESADO - Sergio Dalla Vecchia

 


SONO PESADO

Sergio Dalla Vecchia

 

Chicão, trabalhador da indústria em São Paulo cumpria uma jornada árdua em uma grande tecelagem.

O cansaço ao fim do dia era tanto, que mal dava para tomar uma dose de cachaça no boteco da esquina.

Porém, ele estava a ponto de perder o emprego, devido a algumas advertências por atraso.

Não havia como acordá-lo, nessa época não existia despertador, nem galo ele tinha mais, pois certa madruga incomodado com o canto da ave, acertou-lhe uma pedrada que o transformou em boa sopa no dia seguinte. A janela antiga não possuía vidro, assim não podia deixá-la aberta e despertar com a luz da alvorada. Ainda mais não contava com a esposa, ela dormia em quarto separado, por não suportar mais seu ronco. Até falaram em separação.

A solução seria contratar um batedor, figura que em troca de algumas moedas incumbia-se de despertar as pessoas. Era o despertador da época!

Assim o fez, e logo na madrugada seguinte sua janela recebeu uma saraivada de pedrinhas, atiradas por um canudo assopradas pelo homem despertador. Nada, Chicão nem piscou os olhos! O batedor foi para o plano B. Com uma vara comprida, bateu uma, duas e três vezes e nada do dorminhoco levantar-se!

Com a paciência no limite, o homem tentou uma última alternativa que acreditava ser infalível, já havia aplicado em outra ocasião e deu certo. Ele tinha o orgulho de nunca ter deixado seus clientes perderem a hora e não seria o Chicão que iria desmoralizá-lo.

Colocou seu cone metálico na boca e gritou para toda a vizinhança ouvir:

 Sr. Chicão, já que senhor não levanta, estou levando sua mulher comigo!

Do nada, em segundos uma janela se abriu bruscamente e dela surgiu o dorminhoco atônito.

O invicto batedor com um sorriso sarcástico logo disse:

— Bom dia Sr. Chicão, tenha uma ótima jornada e aproveite para acordar sua mulher. Era brincadeira. Ah, Ah, Ah!

Despertador Humano - Silvia Helena De Ávila Ballarati

 


Despertador Humano

Silvia Helena De Ávila Ballarati

 

                                                                             Despertar, bater e ...


Algumas profissões antigas deixaram, definitivamente, de existir, dentre elas, a do despertador humano ou “knocker-up” como se dizia na Grã-Bretanha onde se originou no século XVIII. Sim, isso já foi uma profissão, alguém perambular de madrugada acordando os trabalhadores.  

Vamos contar aqui, um pouquinho dessa profissão; entretanto, trataremos de uma coisa mais antiga ainda, o comportamento humano. Esse, atravessa os séculos, enfrenta novos costumes, agrega valores, mas parece continuar consolidado na mente humana, aferrado a hábitos que nem a evolução da neurociência consegue explicar. 

 

Londres - 1764

 

O batedor vinha pontualmente às 4:15h despertar o mineiro e acabava por acordar a família inteira, um ritual que se repetia todas as manhãs fosse nevasca, chuva ou o singelo sereno. O pai era chamado para trabalhar, a mãe para fazer o café e as cinco crianças para contribuir nos afazeres domésticos.

Olivia, ela sim um relógio, sempre acordava antes do batedor chegar, de longe pressentia seus movimentos igual a um cachorro astucioso.  Gostava daqueles instantes, do silêncio da pobre casa em que viviam, mesmo naquele espaço exíguo, a madrugada era um momento seu. Moravam ao lado de uma tecelagem onde ela bem poderia trabalhar, se não fossem as exigências do marido para que cuidasse somente da casa e dos filhos. 

As crianças dormiam amontoadas em meio a pulgas, percevejos, roupas enlameadas; para Olívia, era dificílimo conseguir a ordem e limpeza do ambiente porque tudo que valorizava era ridicularizado pelo marido. Seu comportamento estúpido contrastava com a delicadeza dela. O que a salvava era sua mente, embora presa aos costumes, às ideias retrógradas do marido, sentia-se livre, tinha pensamentos próprios que jamais revelava a quem quer que fosse. Era feliz, acreditem. 

Naquela linda madrugada de terça-feira, Olivia não ouviu os costumeiros barulhos do batedor. Achou estranho e correu para acordar os vizinhos que também se valiam do serviço de despertador humano, eram poucos naquela rua da periferia de Londres e certamente seriam punidos pelo atraso mesmo que por um único dia.  O marido que vivia cansado do trabalho nas minas de carvão, e perderia a hora, não fosse o alerta da mulher, nem se apercebeu de sua ligeira saída.

A jornada de trabalho era de 14 a 16 horas diárias, as fábricas funcionavam a pleno vapor, a cidade era enfumaçada, viviam em um clima infernal com esgotos a céu aberto e sob a constante ameaça de cólera.  Os mineiros trabalhavam pela subsistência da família, não havendo o menor espaço para a brandura, para a delicadeza.  O apreço por uma convivência afável não existia entre pessoas rudes por natureza e principalmente, rudes em decorrência da vida áspera que levavam. Olivia era uma exceção. 

Os tempos da manhã eram tão regrados e previsíveis no esquecido bairro londrino que ninguém notou a ausência do batedor pelos dias que se seguiram. Só Olivia soube do acidente do pobre homem e mais que depressa assumiu suas funções. Não avisou ninguém que passaria a ser a nova batedora, nem seu próprio marido, não havia necessidade, pensou ela. 

Muito feliz por caminhar livremente, respirar o ar mais limpo do dia, lá ia Olivia, toda feliz, perdida em seus pensamentos, trabalhar em seu primeiro emprego na vida. O pisar era leve, o bater mais delicado, a pedrinha atirada nas janelas não alcançava os andares superiores, tudo diferente e ninguém notou. E assim, assumiu o despertar de toda a vizinhança por meses a fio. Para ela, não importava o frio intenso, as noites chuvosas que deixavam barro pelas ruas, nada perturbava o êxtase que a envolvia. Gostava de sentir o sereno, levantava o rosto para receber o vento gelado, respirava profundamente os ares da liberdade. Era naquelas caminhadas que Olivia criava, fantasiava uma vida diferente e dentro desses devaneios se transformava em uma pessoa melhor, sentimento que carregava consigo e ajudava a enfrentar as agruras do dia. E assim foi até a madrugada em que se deparou com o antigo batedor na porta de sua casa.

Mais magro, debilitado, ele ficou satisfeito com a continuidade das batidas, ofereceu para pagar-lhe metade dos ganhos, o que Olivia prontamente recusou. Era menos miserável que ele. O batedor decidiu, então, abandonar de vez o ofício, pois sentia-se velho e constantemente doente pela friagem da manhã.

A única mudança percebida pelo marido de Olivia, foi a hora de lavar as roupas, normalmente as bacias eram enchidas pela manhã e agora a mulher as preparava tarde da noite, o que o incomodava pelo aguaceiro em casa da hora de dormir. Olivia corria a secar o máximo possível para evitar despertar a ira brutal daquele homem.

As mulheres da periferia tampouco notavam Olivia. Mulheres que viviam de cozinhar, esfregar roupas na água gelada, fervê-las na água quente, limpar a casa, cuidar dos pequenos com mãos firmes e calejadas e ainda servir a seus ávidos maridos. Não sobrava tempo para observar o mundo, apenas viviam.

Tempos depois, foi a vez de Olivia sumir. Todos no vilarejo perderam a hora naquele fatídico dia. Chovia muito, o marido se levantou no meio da noite para ir ao banheiro e não encontrou Olivia. Preocupado, vestiu-se apressado e saiu para procurar a mulher, já pensando em uma tragédia, única razão para ela não estar em casa naquele horário. Deu com ela chegando, corada, ofegante, com visíveis sinais de satisfação.

Espancou-a até quase a morte, sem nem perguntar por quê. Não precisava saber, bastava observar seu semblante feliz. Como que sua mulher vagava pela noite sem tê-lo avisado? Como uma mulher sai sozinha de madrugada?

Ela, por sua vez, nem tentou se explicar, ele jamais entenderia. 

Olívia levou semanas para se recuperar, o marido proibiu as únicas vizinhas próximas, as que ouviram os socos e tapas na rua, de ajudar e de visitá-la também; os filhos foram impedidos de falar sobre o assunto, os menores adoeceram, os mais velhos subitamente se transformaram em adultos, tudo mudou, menos a cabeça de Olivia. Muito enfraquecida por fora, internamente encontrava forças para melhorar. Revivia todos os cheiros, os céus, os caminhos, tudo guardado em sua mais íntima memória. A lembrança do vento em seu rosto, do som das aves notívagas, lembranças que foram o verdadeiro remédio para sua recuperação.

O mais impressionante foi saber que logo arranjaram um novo batedor para substituir o antigo e que jamais souberam que há quase um ano vinham sendo acordados por Olivia. Nunca souberam da troca entre eles. Os moradores do bairro não sonhavam com uma mulher nessa função, simplesmente, aquele povo rude, escravizado, ignorante, não sabia o que era sonhar.