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Despertador Humano - Silvia Helena De Ávila Ballarati

 


Despertador Humano

Silvia Helena De Ávila Ballarati

 

                                                                             Despertar, bater e ...


Algumas profissões antigas deixaram, definitivamente, de existir, dentre elas, a do despertador humano ou “knocker-up” como se dizia na Grã-Bretanha onde se originou no século XVIII. Sim, isso já foi uma profissão, alguém perambular de madrugada acordando os trabalhadores.  

Vamos contar aqui, um pouquinho dessa profissão; entretanto, trataremos de uma coisa mais antiga ainda, o comportamento humano. Esse, atravessa os séculos, enfrenta novos costumes, agrega valores, mas parece continuar consolidado na mente humana, aferrado a hábitos que nem a evolução da neurociência consegue explicar. 

 

Londres - 1764

 

O batedor vinha pontualmente às 4:15h despertar o mineiro e acabava por acordar a família inteira, um ritual que se repetia todas as manhãs fosse nevasca, chuva ou o singelo sereno. O pai era chamado para trabalhar, a mãe para fazer o café e as cinco crianças para contribuir nos afazeres domésticos.

Olivia, ela sim um relógio, sempre acordava antes do batedor chegar, de longe pressentia seus movimentos igual a um cachorro astucioso.  Gostava daqueles instantes, do silêncio da pobre casa em que viviam, mesmo naquele espaço exíguo, a madrugada era um momento seu. Moravam ao lado de uma tecelagem onde ela bem poderia trabalhar, se não fossem as exigências do marido para que cuidasse somente da casa e dos filhos. 

As crianças dormiam amontoadas em meio a pulgas, percevejos, roupas enlameadas; para Olívia, era dificílimo conseguir a ordem e limpeza do ambiente porque tudo que valorizava era ridicularizado pelo marido. Seu comportamento estúpido contrastava com a delicadeza dela. O que a salvava era sua mente, embora presa aos costumes, às ideias retrógradas do marido, sentia-se livre, tinha pensamentos próprios que jamais revelava a quem quer que fosse. Era feliz, acreditem. 

Naquela linda madrugada de terça-feira, Olivia não ouviu os costumeiros barulhos do batedor. Achou estranho e correu para acordar os vizinhos que também se valiam do serviço de despertador humano, eram poucos naquela rua da periferia de Londres e certamente seriam punidos pelo atraso mesmo que por um único dia.  O marido que vivia cansado do trabalho nas minas de carvão, e perderia a hora, não fosse o alerta da mulher, nem se apercebeu de sua ligeira saída.

A jornada de trabalho era de 14 a 16 horas diárias, as fábricas funcionavam a pleno vapor, a cidade era enfumaçada, viviam em um clima infernal com esgotos a céu aberto e sob a constante ameaça de cólera.  Os mineiros trabalhavam pela subsistência da família, não havendo o menor espaço para a brandura, para a delicadeza.  O apreço por uma convivência afável não existia entre pessoas rudes por natureza e principalmente, rudes em decorrência da vida áspera que levavam. Olivia era uma exceção. 

Os tempos da manhã eram tão regrados e previsíveis no esquecido bairro londrino que ninguém notou a ausência do batedor pelos dias que se seguiram. Só Olivia soube do acidente do pobre homem e mais que depressa assumiu suas funções. Não avisou ninguém que passaria a ser a nova batedora, nem seu próprio marido, não havia necessidade, pensou ela. 

Muito feliz por caminhar livremente, respirar o ar mais limpo do dia, lá ia Olivia, toda feliz, perdida em seus pensamentos, trabalhar em seu primeiro emprego na vida. O pisar era leve, o bater mais delicado, a pedrinha atirada nas janelas não alcançava os andares superiores, tudo diferente e ninguém notou. E assim, assumiu o despertar de toda a vizinhança por meses a fio. Para ela, não importava o frio intenso, as noites chuvosas que deixavam barro pelas ruas, nada perturbava o êxtase que a envolvia. Gostava de sentir o sereno, levantava o rosto para receber o vento gelado, respirava profundamente os ares da liberdade. Era naquelas caminhadas que Olivia criava, fantasiava uma vida diferente e dentro desses devaneios se transformava em uma pessoa melhor, sentimento que carregava consigo e ajudava a enfrentar as agruras do dia. E assim foi até a madrugada em que se deparou com o antigo batedor na porta de sua casa.

Mais magro, debilitado, ele ficou satisfeito com a continuidade das batidas, ofereceu para pagar-lhe metade dos ganhos, o que Olivia prontamente recusou. Era menos miserável que ele. O batedor decidiu, então, abandonar de vez o ofício, pois sentia-se velho e constantemente doente pela friagem da manhã.

A única mudança percebida pelo marido de Olivia, foi a hora de lavar as roupas, normalmente as bacias eram enchidas pela manhã e agora a mulher as preparava tarde da noite, o que o incomodava pelo aguaceiro em casa da hora de dormir. Olivia corria a secar o máximo possível para evitar despertar a ira brutal daquele homem.

As mulheres da periferia tampouco notavam Olivia. Mulheres que viviam de cozinhar, esfregar roupas na água gelada, fervê-las na água quente, limpar a casa, cuidar dos pequenos com mãos firmes e calejadas e ainda servir a seus ávidos maridos. Não sobrava tempo para observar o mundo, apenas viviam.

Tempos depois, foi a vez de Olivia sumir. Todos no vilarejo perderam a hora naquele fatídico dia. Chovia muito, o marido se levantou no meio da noite para ir ao banheiro e não encontrou Olivia. Preocupado, vestiu-se apressado e saiu para procurar a mulher, já pensando em uma tragédia, única razão para ela não estar em casa naquele horário. Deu com ela chegando, corada, ofegante, com visíveis sinais de satisfação.

Espancou-a até quase a morte, sem nem perguntar por quê. Não precisava saber, bastava observar seu semblante feliz. Como que sua mulher vagava pela noite sem tê-lo avisado? Como uma mulher sai sozinha de madrugada?

Ela, por sua vez, nem tentou se explicar, ele jamais entenderia. 

Olívia levou semanas para se recuperar, o marido proibiu as únicas vizinhas próximas, as que ouviram os socos e tapas na rua, de ajudar e de visitá-la também; os filhos foram impedidos de falar sobre o assunto, os menores adoeceram, os mais velhos subitamente se transformaram em adultos, tudo mudou, menos a cabeça de Olivia. Muito enfraquecida por fora, internamente encontrava forças para melhorar. Revivia todos os cheiros, os céus, os caminhos, tudo guardado em sua mais íntima memória. A lembrança do vento em seu rosto, do som das aves notívagas, lembranças que foram o verdadeiro remédio para sua recuperação.

O mais impressionante foi saber que logo arranjaram um novo batedor para substituir o antigo e que jamais souberam que há quase um ano vinham sendo acordados por Olivia. Nunca souberam da troca entre eles. Os moradores do bairro não sonhavam com uma mulher nessa função, simplesmente, aquele povo rude, escravizado, ignorante, não sabia o que era sonhar. 

 

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