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Dilema - Paulo A. Abrahamsohn





Dilema
Paulo A. Abrahamsohn



Célia acordou cedo como sempre, preparou o café para a filha, ajudou a arrumar as suas coisas para ir à escola e começou a lavar roupa. Era a sua rotina. Ainda se fosse a roupa dela, da filha e do marido tudo bem. Só que Célia lavava para fora, e era quem sustentava os três. Mais tarde tomaria uma caneca de café. Comer alguma coisa, somente na hora do almoço.

Enquanto isso o marido dormia profundamente.

Lençóis, fronhas, camisas, cuecas, meias ... Célia não aguentava mais. Ainda bem que tinha boa saúde. Queria mudar de vida, mas não sabia como. O marido não trabalhava. Estava sempre pegando dinheiro de Célia para jogar. Vivia no carteado varando a madrugada tentando ganhar alguns tostões. Mais perdia que ganhava. E ainda bebia bastante.

Segurando uma das peças de roupa Célia sentiu uma picada no dedo. Revirou a peça até encontrar um alfinete, mas era um alfinete estranho, com uma cabeça muito grande. Célia olhou, olhou, mas não percebeu do que se tratava. Pegou uma lupa que a filha usava para observar plantas nas aulas de ciências para examinar melhor o alfinete. Não percebeu o que era e necessitou de um farolete para iluminar melhor o alfinete e acabou descobrindo que era uma pedra muito brilhante. Seria um enorme diamante?

A quem pertenceria esta joia? Não sabia mais a qual peça de roupa estivera presa. Pensou na lista de seus fregueses, mas isto não a ajudou muito. Célia não conhecia pessoalmente toda sua clientela. Ouviu um apito na porta de casa. Era o rapaz que fazia a entrega da roupa para ela. Será que este poderia identificar o dono?

Com uma tesoura recortou um pedaço de papel para prender o alfinete e pensou em dar para o entregador para ele descobrir o seu dono. Mas o rapaz estava com a bicicleta quebrada e naquele momento não poderia sair. Célia emprestou a ele um canivete suíço que o marido tinha ganho no jogo, para o rapaz consertar a bicicleta. Já estava quase na hora do almoço e chamou o entregador para comer alguma coisa.

Nessa hora acorda o marido. Dever ter jogado e bebido bastante, pensou Célia. 

— Perdi a chave de casa, disse o marido. Quase não consegui entrar ontem à noite.

Noite nada, deve ter chegado de madrugada, pensou Célia.

— Bati, bati até a filha abrir a porta para mim. Você vai que ter que me dar a sua chave, continuou o marido.

Célia fez de conta que não ouviu. Que vida miserável. É só sofrimento, pensou. Um marido que é um estorvo! E agora essa história do alfinete não lhe saia da cabeça. Escondeu-o do marido, senão ele iria trocá-lo por bebida ou usar no jogo desta noite.

Célia sentia sua vida cada vez mais pesada. Estava chegando a um ponto de não mais aguentar suas atribulações. Que futuro teria a filha? Célia, que mal e mal aguentava a situação, percebeu que sua paciência tinha chegado ao limite.

Pensou no alfinete com o diamante. Devia valer algum dinheiro. E se ela vendesse a joia em vez de procurar o dono? Conseguiria algum dinheiro para melhorar a vida. Afinal, quem tem um diamante tão grande possui muitas outras coisas e o diamante não lhe fará falta. É isso mesmo que vou fazer, decidiu. Senão minha miséria não terá fim. Pelo menos minha filha poderá ter uma vida um pouco mais confortável. Mas, nada para o marido. Perdeu a chave e não entra mais. Aproveito e ponho ele para fora de casa.

PROCURAS - MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO.




PROCURAS
MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO.




Maria é empregada doméstica. À noite chegando à sua casinha após o trabalho, muitas tarefas a aguardam entre elas lavar roupa do que diz ser o enxoval do lar. Está com catarata ainda no início em ambos os olhos e como o oculista receitou, comprou “o meu par de óculos” em dez prestações pelo crediário. Zé, seu marido, reclamou dizendo que podia ter comprado um mais barato. Claro, disse ela, assim você teria um dinheirinho pra beber umas biribitibas e jogar sinuca com seus amigos naquele bar fedorento. Agora, meu querido, não tem mais durante dez meses. Vá se virar em outra freguesia, cara pálida.

Lanterna portátil acesa, Maria vai andando lentamente em direção à porta que leva ao porão. Houve um curto-circuito, está escuro. Chama pelo marido e ouve, como sempre, o som do silvo do inseparável apito. Ele diz ser de curió.  

Nada disso. É invenção dele, resmunga e grita raivosa:

 Zé, aproveita que está aí embaixo e vê se encontra minhas chaves: a da entrada e a do quarto.

Pergunta o Zé: Onde?

Ora, Zé, não seja burro. Se eu soubesse pediria pra você  pegar as chaves em tal lugar, mas pode ser que tenha deixado perto da porta do quadro dos fusíveis, diz Maria com aquela voz de gozação que deixa o Zé em pé de guerra. 

Não estava fácil. Maria escuta o barulho e os ais do marido ao topar em algum guardado, abafa risadinhas e diz baixinho Aguenta Zé, não dá no pé. Está escuro feito breu e ouve o marido resmungar em voz alta:

— Só podia acontecer isso. Será aqui? Não, mais pro lado. Ai, ai, lá foi a unha do dedão.

Chega perto da caixa dos fusíveis e grita:

— Tô nele. ´tão aqui, né? Me diz uma coisa: o chaveiro tem cobertura de pelúcia?

Maria grita de volta:

Não precisa mais. Já encontrei.

Zé solta um baita palavrão, liga a chave geral e, horrorizado, vê o que tem na mão: um baita rato cinza escuro seguro pelo rabo.

— Que nojo!                 
                                                                                                                  


PRÊMIO SÃO PAULO DE LITERATURA - 2019


Prêmio São Paulo de Literatura

Uma das mais conceituadas premiações de literatura no País e a maior em valor individual, o Prêmio São Paulo de Literatura tem como objetivo estimular a produção literária de qualidade, valorizar o setor e favorecer a formação de leitores e escritores, reconhecendo grandes nomes e também novos talentos.

Os vencedores de 2019 foram anunciados em novembro e receberam o troféu durante a cerimônia. Ana Paula Maia foi premiada na categoria Melhor Romance de 2018 pela obra “Enterre seus mortos”, e Tiago Ferro foi contemplado como Melhor Romance de Estreia de 2018 por “O pai da menina morta”.




http://www.cultura.sp.gov.br/premiacoes-da-cultura-de-sao-paulo-2019-conheca-os-vencedores-e-homenageados/

ENTERRE SEUS MORTOS

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O PAI DA MENINA MORTA

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ESCOLHAS - Sérgio Dalla Vecchia





ESCOLHAS
Sérgio Dalla Vecchia



Ela pegava pesado no trabalho de faxineira, saia às seis horas da manhã e só voltava às oito da noite.

O aconchegante barraco na favela, refletia a o brilho da energia da alma da prestimosa faxineira.

Esforçada, adquiriu miopia de tanto fazer as lições do curso por correspondência para costureira. Quando faltava energia elétrica, estudava sob a luz pífia de uma pequena lanterna. Vez ou outra era interrompida pelo som do apito do mestre da escola de samba comandando o ensaio. Dava até umas quebradinhas com um sorriso maroto nos lábios.

A rotina era chegar, passar a chave na porta, preparar a janta e fazer suas lições aguardando a chegada do marido malandro, aproveitador do seu sincero amor.

Ansiosa, ouvia a voz dele conversando no lado de fora, até que dissesse: 

— Cheguei, minha rainha!

Ela borrifava uma colônia no rosto, ajeitava os cabelos e sorridente voava para a porta, ao encontro dos braços do seu amor.

O marido era mesmo um bico doce, sabia como agradá-la e ela se derretia toda.
Jantavam enquanto conversavam acompanhados de uma cervejinha, trocando carinhos até irem para a cama.

No dia seguinte ela deixava o café pronto, abria a porta e logo escutava a voz melosa do dorminhoco:

— Meu doce, não esqueça de deixar um dinheirinho para eu me alimentar bem. À noite eu te recompensarei com muito amor.

Bom trabalho!

Assim era Dolores, boa de coração, sem maldade e apaixonada.

Há tempos ela sustentava a ociosidade do marido apenas em troca de momentos de atenção e carinho, coisas que a infância lhe havia negado.

Tudo ia bem, até que certo dia ela teve um mal-estar durante o trabalho e a patroa a liberou mais cedo, para consultar o médico do Posto de Saúde.

Foi medicada e logo seguiu para casa, já se sentindo melhor.

Ela até estranhou entrar na favela ainda dia, sempre chegava a noite.

Subiu vagarosamente o morro até que arfante chegou ao barraco.

Abriu a porta, escutou ruídos, assustou-se, deu um grito clamando por Nossa Senhora. Instintivamente dirigiu-se para o quarto onde deparou com a cena chocante do marido na cama com a Valdete, a rainha de bateria da escola de samba.

Coração disparou, adrenalina ao máximo, olhos esbugalhados e a raiva eclodiu automaticamente.

— Sua sem vergonha, ladra de marido.- Berrou Dolores com todos os pulmões.

Valdete totalmente nua, levantou-se e partiu para cima da rival com unhas e dentes. Rolaram pelo chão e o pasmo marido tudo observava, nada fazendo, só pedia calma para as duas. Valdete numa brecha do enrosco, armou-se de uma faca e agrediu Dolores. Ela, mulher que nunca foi de briga, conseguiu não se sabe como pegar a faca das mãos de Valdete. Impulsivamente ferida nos brios de mulher apaixonada em defesa do amado, desferiu uma, duas e três estocadas no belo corpo nu da rival.

Logo chegaram, SAMU e POLÍCIA.

Removeram Valdete ferida gravemente para o Hospital e Dolores algemada para a Delegacia.

Assim o destino assassinou a rainha Valdete e levou para a prisão a apaixonada Dolores.

Na prisão, Dolores recebeu status de rainha, líder entre as detentas, pois matou a mulher mais invejada por todas, pela beleza, fama de roubar namorados e ainda ser muito arrogante.

O filósofo tempo incumbiu-se de adaptar Dolores ao novo lar e às malandragens da vida.

Todos os finais de semana ela vestia a melhor roupa, perfumava-se toda, e ansiosa aguardava a chegada do marido bico doce. Aproveitava ao máximo a visita intima, trocavam juras de amor.

Na despedida ela recomendava com todo amor para ele:   

— Cuide direitinho do barraco, faça a comida, lave a louça e roupas e limpe tudo diariamente. Quero encontrar ele como o deixei, impecável, senão terei de usar a faca novamente.

— Bom trabalho, meu rei!


BAILARINA - MARIO AUGUSTO MACHADO PINTO




BAILARINA
MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO


Sempre comemoro de maneira diferente meus aniversários – nascimento, noivado, casamento, divórcio e outros inventados. Hoje é dia de brincadeiras a fazer uns com os outros. A base são as lembranças que recebo de cada um. É normal serem de pequeno valor, diferentes e devem indicar algo ao aniversariante.

Hoje ganhei de tudo, inclusive charutos, mas o que mais me tocou - imagine só – foi uma grande lâmpada de vidro, transparente, incolor e bojuda. Seria uma indireta indicando que eu devia tomar novo caminho e iluminá-lo? Confesso que não me agradou. Tive vontade de deixá-la cair para estourá-la, mas achei que seria grosseiro, faria uma desfeita à minha querida amiga Nair que com sua delicadeza me disse: ela bem acenderá e será sua fiel companheira enquanto você se comportar, do contrário ficará apagada. Perguntei: Por que? Respondeu: Para aumentar sua imaginação. Cismado, pensei: seria uma indireta?

Após o último amigo ter ido embora, tirei a cúpula do meu abajur de cabeceira, atarraxei a dita cuja e SURPRÊSA! Lá dentro a figura de uma bailarina começou a bailar ao som de timbales (eu ouvia!). Dançava só pra mim gesticulando os braços no aceno de “vem, vem, dança comigo”.  

Desse dia em diante minha vida mudou.

COMITIVA - MARIO AUGUSTO MACHADO PINTO





COMITIVA
MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO.



Além do barulho da sala da redação, meu telefone de mesa toca sem cessar. Atendo para dizer que não me chamem mais, mas a telefonista diz que é o  Sr. Jonas, da Cajuru. Aí não tive jeito. Atendi o amigo de tantos papos:

— Como vai? E ele responde: Voando, e você? Digo: Tocando a vida. Segundos depois ele convida pra irmos ao bar da esquina bebericar cervejas e recordações.

Depois de abraços, notícias das famílias, cerveja gelada, bolinhos de bacalhau quentinhos, refestelados nas cadeiras, pergunto: Então, o que manda? Ele pergunta se quero escrever um pequeno folheto sobre as festas e concursos de bandas de rock que faziam na Subiru.
Respondi que tudo bem, mas que pra fazer isso precisava começar do começo mesmo, com alguns fatos comuns, mas que pertencem ao contexto. Concordou e comentou que mesmo depois de tantos anos ainda não sabia como eu tinha dado com os costados na Cajuru. Considerava importante essa ocasião.
Avisei que a estória era simples, curta e a exponho resumidamente:

Recém-admitido na revista Rural fui chamado à sala do editor chefe e designado para fazer uma reportagem sobre pecuária, pois o preço do boi em pé estava subindo.

Realizei alguns telefonemas para amigos, e meu amigão Google. Consegui tudo, inclusive do meu pai que deu indicação de uma fazenda. Imagina só: era de um juiz aposentado, velho amigo dele. Podia ir sossegado. Já haviam combinado. Telefonei pra fazenda. Avisei o horário em que estava indo, e fui.

Mal cheguei e na mesma hora embarquei no avião deles. Nome do destino: Cajuru. O voo foi curto, 45 minutos. Pousamos perto do terraço do casarão tipo colonial, bem cuidado.

Na sala estava posta mesa com café e bolo de fubá.

Do salão vi o Dr. Afonso chegar e pular da sela feitou moleque. O cara tem 79 anos e aparenta uns sessenta, e isso mesmo por causa das rugas provocadas pelo sol torrador da região. Lembra muito o meu amigo Braga. Dá um abraço tipo quebra-molas e aperto de mão de estalar os dedos. Vendo o trejeito do meu rosto desculpou-se dizendo que não se lembrou que eu era da cidade.

Tomamos uma pinguinha não esquecendo a do santo. Comemos bastante e conversamos longamente e lembrou da amizade com meu pai desde a Faculdade. Colocaria um funcionário à minha disposição lembrando que no dia seguinte haveria manejo e o inicio do transporte de uma boiada. Iria a Cuiabá esperando voltar antes de eu partir,

No dia seguinte, recebi o funcionário que seria a minha sombra, o Cencio, boiadeiro e tropeiro dos mais antigos, ajudante pessoal e de total confiança do Dr. Afonso que me explicou o trabalho na fazenda, a criação, manejo e transporte do gado. Foi quando eu disse que queria saber da “comitiva”.

Tá bão, respondeu e explicou que a “comitiva” é composta de peões de boiadeiros responsáveis pelo transporte nos estradões e salvaguarda do gado.  Tem o comissário, chefe da comitiva; o ponteiro, que conhece o caminho, vai na frente e toca o berrante pro gado e pra orientar os peões; os rebatedores que evitam o gado desgarrar; os pe[oes da culatra manca, pra cuidar do andar do gado ferido ou doente e o. por último e muito importante, os cozinheiros que faz nossa comida na chapa. Eles inventaram o arroz de carreteiro e o macarrão tropeiro. A carne é assada no folhão.

Ai, então, perguntei sobre a comitiva de amanhã:  

Há uns dias passados prometi a mim mesmo que esta seria a minha última, mais ou menos. A Cajuru é a preferida do Dr. Fonsim. Fico mais aqui cuidando das coisas. É que aqui na Cajuru eu trabalho e na Subiru eu me divirto; então tenho que acompanhar. Já viu que não vou cumprir a promessa, né? Amanhã o destino é a Subiru onde os netos do Dr. Fonsim  aproveitam o planalto pra promover torneios e shows. Não gosto. É uma barulheira de uma moçada enorme, centenas pagando um  dinheirão; vem gente até do estrangeiro; dá gosto ver como tudo é bem organizado. Tóxico? Nem pensar. Descoberto vai preso na hora!

Bem, participei da “comitiva” sem nenhuma ajuda ou preferência.

Voltei para São Paulo antes do Dr. Afonso, mas deixei meus agradecimentos por escrito. Lembra-se? Vocês, netos reuniram a banda Ximbó e tocaram na minha despedida enquanto o avião taxiava pra me levar de volta. O encarte do jornal com o meu relato foi muito elogiado e o meu original quase totalmente transcrito.
Aproveitei para perguntar: Como vão esses dois velhotes amigos? Ainda são unha e carne?

Notei que o Jonas deu pequeno sinal de desconforto. Muito sério respondeu que tinha pra contar uma estória delicada e triste ao mesmo tempo. Apreensivo, deixei-o à vontade pra contar:
Depois que você voltou pra São Paulo, fizemos várias comitivas. O Cêncio que já havia dito que não queria mais participar, passou a mostrar que ainda gostava de acompanhar as comitivas, lembra-se? Todo mundo ficou contente, mas desconfiado porque o que ele mais gostava era ir  à Subiru. Ali ele demonstrava grande alegria principalmente quando tinha a Mari como par na roda dos bailes e se pavoneava do fato. Todo mundo estava curioso pra saber a causa. Tudo ficou claro quando os dois – Mari e Cencio – anunciaram casamento. Aí surgiu um problema: o irmão dela não gostava dele e disse que impediria o casamento. Acontece que Cencio não se incomodou e dizia que casaria de todo jeito: falou que foi o primeiro homem da Mari. Agora queria ver como ficava. Ficou numa promessa do futuro cunhado dizendo: “Sei que sua promessa é falsa. Foi só pra dormir com a Mari, mas você vai pagar caro por essa dormida”. Montou no cavalo e sumiu, mas sumiu mesmo, um tempão. Aí começaram os rumores de “o Zico voltou”, “vi ele no ribeirão” . Avisaram o Cencio, que nem ligou. “ Se ele aparecer dou um jeito nele. Oceis vão ver”, dizia caçoando da ameaça. Meu avô dizia pra ele tomar cuidado avisando que o Zico tinha má fama e era ruim de alma e coração, mas Cencio, aparentemente, não dava importância. Andava pela vila mostrando a Mari e despreocupação. Cumpria com seu trabalho sem qualquer malfeito.

Meu avô ficou muito cansado da última “comitiva” e resolveu voltar antes da dança do fim da festança. Avisou o Cencio e lá pelas cinco da manhã iniciaram a volta a cavalo. Nós dissemos pra eles voltarem de avião. Era mais tranquilo. Não quiseram. Meu avô queria cavalgar e ouvir  a cantoria do Cencio., inclusive cantar junto. Bem, arrumamos uma guarda armada que andaria com os dois, mas a uns cem metros de distância. Protestou o quanto pode, mas nós não arredamos pé. E partiram.

Cavalgando, meu avô pedia pra ele cantar “Adiós pampa mia” e ele cantava: Adiós pampa mis, me voy, me voy a tierras estrañas, Adiós ...” e por aí continuava. Conversavam, paravam pra olhar a paisagem. Montavam e continuavam. “Cencio, canta aquela outra, a da Gloria que tanto gostei. Cantava: Rechiflado em mi tristeza, hoy te evoco y veo que has sido em mi pobre vida paria um buena mujer... Contavam suas aventuras, riam-se do passado. “Cencio, canta aquela da sua vida. Cantava: Prepara o seu coração pras coisas que eu vou contar.... Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar....Na boiada já fui boi,  boiadeiro já fui rei...”Lembra, Dr. Fonsim,  o Dr. dizer que queria eu a seu lado porque se eu via a morte sem chorar eu era dono do meu destino? Aí os dois ouviram “Abaixa, abaixa Dr!!! E três tiros com intervalo: PAM!! crac. PAM! Carac. PAM! Crac. Era tiro de uma “papo amarelo”; uma saraivada foi a resposta. Resultado: Cencio, no chão com dois buracos no peito, Zico todo furado e meu avô com um balaço na perna esquerda. Já imaginou o que aconteceu? O nosso mundo caiu! Bem, houve correria, hospital, enterro, polícia, o diacho. Tudo que estou falando foi meu avô que me disse.

Ao sexto dia, no hospital, nosso avô nos chamou pela manhã:  “Tenho pouco tempo. Quero ser enterrado lá, junto dos três pinheiros ao lado da Glória – nossa avó – e do Cencio. O resto é com Vcs.”.

Morreu no final da tarde.

— Mas, que tristeza! Você sabe que sinto muito. Sempre lembrarei dele me dizendo: “Vem cá. A vida é muito curta. Aproveite enquanto a tem.”
Ele tinha dessas coisas. Entrego pra você o relógio de bolso que usava e que você, tanto admirava.

Não contive as lágrimas. Chorei.


******



- As Comitivas.
  Aguinaldo José de Góes in Comitiva Boi Soberano,
- Disparada.
  Geraldo Vandré (Geraldo Pedrosa de Araújo Dias) e Théo de Barros.
- Adiós Pampa Mia - Francisco Canaro (cantor).
- Mano a Mano – Esteban Celidonio Flores/José Razzano.
 
 


ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE - Oswaldo U. Lopes



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ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
Oswaldo U. Lopes



        O casamento de Hercília e Armando fora um sucesso, só que o sucesso acabara ali na cerimônia. Três filhos depois, Hercília não tinha mãos a medir enquanto Armando vivia medindo as cartas, os tacos, a garrafa de cachaça e a saia das meninas.

        Ela, por sorte, dentre as várias possibilidades na medicina, escolhera anestesia que, se a tirava de casa a qualquer hora, não exigia sua presença em consultório ou ambulatórios.

        Se bem que conservasse certa beleza, os sinais de envelhecimento precoce eram evidentes. Às vezes, muitas vezes, com a vista cansada se valia de uma pequena lupa para puncionar a veia, ato ritual que inicia o trabalho do anestesista na sala de operação.

        Armando ainda não precisava de lupa para ver as cartas, mas no escuro da sala de jogos, uma lanterna lhe caia bem, com ela ficava mais fácil ver a garrafa e as pernas da garçonete.

        As crianças que já não eram tão crianças se viravam na mão da babá, conselheira, velha amiga, insubstituível Joselina que regia a banda com um solene apito. Um apito, tudo parado, como está fica; dois apitos, todos para cama; um longo e um curto, levantar.

        A vida era possível, Hercília ganhava muito bem, embora trabalhasse demais. Joselina tocava a casa e as crianças e Armando se arranjava com os trocados que a doutora generosamente providenciava.

        Pouco se sabia da vida do inútil a não ser que ele frequentava uma espécie de clube onde praticava pôquer, sinuca, garrafa cheia etc. A história vazara aos poucos e uma chave que ele carregava sempre consigo, era o fim do mistério. Quer dizer, o fim foi mesmo obtido pelo detetive que a Joselina arrumara.

        Tendo a vida para tocar e ganhar Hercília não se incomodou muito com a história nem com os detalhes do tal clube.

        O drama foi a garçonete chamada Lourdes que dera para se engraçar pelo Armando, mais do que recomendava a prudência e dera até para cortar o cabelo dele, com aquela tesoura longa e fina usada por mão talentosa de dona idem que na outra mão manejava um lindo pente.

        O ruim é que fazia isso sentada no colo dele, e que com um maravilhoso canivete suíço picotava a borda da saia dela.

        Ai a coisa chegou ao seu limite, insuportável. Movidos por inveja, ressentimentos ou sei lá o que, os celulares entraram em ação. Malditos aparelhos, maldita a sua capacidade de múltiplas funções, fotografar discretamente, incluída.

        Hercília foi inundada de fotos de todas as maneiras possíveis, não deixaram duvidas e eram repetidas. Armando foi e estava indo longe demais.

        A doutora pensou, premeditou, pesou e decidiu. Primeiro fez uma cópia da chave do secreto clube que o marido frequentava. Não foi difícil, de dia ele dormia a maior parte do tempo.

        De posse da chave, arranjou no Hospital, com os seguranças um legitima pistola Glock. Não queria falhar na hora H, aprendeu a manejá-la e atirou algumas vezes com ela, se acostumou até com o tranco.

        Foi o que disse o delegado:

- Crime premeditado, matou o marido imprestável a sangue frio. Encostou a pistola no peito da garçonete e com dois tiros liquidou o assunto, ela no colo dele facilitou o ataque. Morte imediata dos dois.

 Depois largou a arma e ficou esperando, a prisão, o tempo, as consequências, o futuro e tudo o que não tivera no casamento.

O IRMÃO MARISTA - Fernando Braga








O irmão marista
Fernando Braga


Sou um órfão de pai desde que tinha quatro anos. Meu nome é Oscar, hoje com 45 anos. Fui criado por minha mãe Helena e pelo padrasto Louis Clement, de nacionalidade francesa. Lembro-me tão claramente da figura de meu padrasto.  Já de meu pai, evidentemente, nada me recordo. Mas, Clement era uma figura simpática, amorosa, carinhosa, amiga, prestativa, e ele não sai de minha mente, de meu coração.

Clement nos reunia para contar histórias e também fatos interessantes, marcantes de sua vida de um ex-marista.
Nascera ele em cidade próxima de Lourdes na França, a mais sagrada do país, que hoje sobrevive graças ao número de peregrinos que ali chegam, todos os anos.

Seus pais, eram muito religiosos e sempre o levavam visitar a gruta de Lourdes, a famosa igreja dedicada à virgem e também às procissões frequentes, todos com velas nas mãos.  A religiosidade era tal, que desde pequeno, Clement tinha a imensa vontade de se tornar um padre, servir à virgem santíssima e Jesus Cristo, seu filho.

Sua devoção à virgem era tal, que lia livros e livros sobre a vida de santos, muito devotos à virgem santíssima. Assim, ficou conhecendo Marcelino Champagnat, ordenado padre que se tornou um vigário e bem mais tarde, em 1817, com 27 anos, na pequena cidade de La Valla, fundou o Instituto dos Irmãos Maristas, nome derivado de Maria, que foi aprovado em 1863 pela Santa Sé. Champagnat foi beatificado por Pio XII.

Leu muito sobre esta instituição, cuja função principal é evangelizar por meio da educação, crianças e jovens, ajudando-os a terem uma vida plena, com conhecimentos básicos sobre todas as matérias, incluindo a religião.

Clement soube que estes religiosos não eram padres, não rezavam a missa, não consagravam as hóstias, mas eram celibatários, não podendo casar ou possuir bens, renunciavam às coisas materiais da vida. Certificou-se, e a Instituição Marista crescera muito, abrindo sedes em muitos países incluindo no Brasil, a partir de 1897.

Foi assim, que aos 22 anos decidira, após beneplácito de seus devotos pais, tornar-se um irmão marista. Matriculou-se na entidade, completou seus estudos, tornando-se um expert em ciências e na língua francesa e inglesa.

Foi então, que pouco antes do início da eclosão da Segunda Grande guerra, descia no porto de Santos, com destino a São Paulo, para participar do grande grupo de professores maristas do Colégio Arquidiocesano de São Paulo, localizado na Vila Mariana, famoso em todo estado de São Paulo. Todos os colégios maristas eram bem-conceituados, dentre eles o de Poços de Caldas, Ribeirão Preto e outro em São Paulo, o Colégio Marista da Glória.

Na França, prevendo que viria para o Brasil, começou a estudar o português com um professor nativo e aprendeu a língua, derivada do latim, com facilidade. Ele também se tornou simpático às terras brasileiras através de suas leituras. Dizia sempre que adorava o cheiro do mato e nada melhor que o gosto da baunilha. Ao chegar ao Brasil disse ter tido alguma dificuldade inicial para a conversação, o que havia melhorado muito, após uns seis meses.

Uma vez no colégio marista passou a dar aulas para várias turmas de francês, inglês e de ciências geral, mais de biologia.  No colégio Arquidiocesano, os irmãos maristas eram, em sua maioria, franceses e também espanhóis, com os quais fez boa amizade e um grande entrosamento. Dava aulas diárias aos alunos internos e semi-internos do segundo, terceiro e quarto ginasial.

Era muito didático e se esforçava, para preparar bem suas aulas, enriquecendo-as com músicas e pequenos filmes, em língua francesa e inglesa. Era por todos conhecido como o simpático, irmão Clemente. Além de professor, passou a ocupar vários outros cargos, como responsável pela rica biblioteca, tomar conta da sala de estudo da divisão dos sub médios, ser o responsável pelo recreio das 17 às 18,30 horas, treinador de vôlei, basquete, etc.

O irmão Clemente era uma pessoa fisicamente bem constituído, alto, pele clara, ereto como um tronco de árvore, mostrando sinais iniciais de calvície. Seu sorriso era cativante, raramente de mau humor.

Ele, já estava no colégio há 18 anos, bem adaptado, contente da vida e assim pretendia terminar os seus dias, como via alguns maristas já velhinhos, caminhando com marcha lenta, curvados, agora com pouca função, rezando muito mais, do que os outros.

Clemente, próximo aos 43 anos, passou a ocupar o cargo de vice-reitor, com uma sala própria e dava atendimento a familiares dos alunos, que vinham tirar dúvidas sobre seus filhos.

Em 1959 eu, Oscar, com 12 anos, era semi-interno nesse colégio cursando a terceira série. Foi quando tive um problema gastrointestinal e minha mãe, veio conversar com o vice-reitor, querendo saber se eu, não havia ingerido algum alimento estragado, servido durante o almoço.

Recebida pelo irmão Clemente, minha mãe, inicialmente agressiva, logo se acalmou com a conversa, que com ele teve. Olharam-se atentamente, conversaram bastante e despediram-se com suspeitoso abraço apertado.

Esta foi a primeira vez, mas, minha mãe, viúva, sempre arranjava algo para ir conversar com o irmão Clemente.   Por sua vez, ele, como me contou um dia, passou a sentir grande afeto por ela. Não me esqueço da frase que ele dizia com ênfase: - É notório, que a chama da paixão aumenta com o decorrer dos anos! E que, aos 40 se ama quarenta vezes mais, do que aos 20! Compreendeu isto, depois que conheceu Helena!

Estavam apaixonados. Certo dia, ele chegou a trancar a porta de sua sala, agarrou-a pelo braço e desferiu-lhe um beijo na boca. Ela aceitou, pois já previa isto e até desejava que acontecesse. Não lhe importou, que era um celibatário.

Certa tarde ele visitou-a em seu apartamento. Ela o esperava e então, deu-se o que se previa! O raio risca o céu e rebomba. Foi o que aconteceu prazerosamente, na vida dos dois.

Após um namoro, totalmente discreto, não percebido pelos familiares e no colégio por parte de seus companheiros, resolveram que se juntariam de uma vez!
Clemente havia chegado à conclusão de que seu amor por Cristo e por Nossa Senhora, era muito grande, mas nada, nada mesmo comparável ao que ele, agora sentia por Helena. Era amor, paixão, tudo junto! Algo irresistível! Dizia ainda: - Muitas vezes a paixão deixa doido os mais hábeis, e faz hábeis os mais tolos!

Foi aí que ele decidiu quebrar o juramento feito há 20 anos, e largar os Maristas. 

No colégio, acabaram sabendo de sua decisão, o que deixou todos boquiabertos.

Enfatizou que o problema seria agora, ele que fizera voto de pobreza, sobreviver sem um emprego. No entanto, Helena logo se dispôs a ajudá-lo. Ele logo, arrumou um emprego de professor de francês e ciências em outro bom colégio de São Paulo, não marista!

Telefonou para sua família na França, conversou com seus pais que há três anos não via, que agora já idosos, embora pesarosos, prontificaram-se a ajudá-lo, inclusive antecipando-lhe sua parte da herança.

Clemente e Helena se casaram em cerimônia simples e passaram a viver juntos, muito felizes. Logo nasceu um outro pimpolho, meu irmãozinho Orestes. Clemente continuou sendo devoto de Nossa Senhora, não perdia as missas aos domingos. Voltou algumas vezes ao colégio Arquidiocesano para rever os melhores amigos. Bem...

Com ele, passei os melhores anos de minha vida.

Com ele, aprendi francês, inglês e ciência.

Com ele viajei muito pelo Brasil e Europa.

Com ele, aprendi a ser pai, um verdadeiro pai!

Faleceu há 12 anos... Tristeza! Saudade imensa!