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1000 MILHAS HISTÓRICAS BRASILEIRAS EM BALANÇO - Vera Lambiasi



1000 MILHAS HISTÓRICAS BRASILEIRAS EM BALANÇO
Vera Lambiasi

Classificação geral: 3º lugar Goi e Wagner, de Mini Cooper, 2º lugar, Stickel Pai e Filho, de Mercedes. E primeiríssimo lugar Rogério Franz e Mario Nardi, de Mercedes 280 S, 1969, tricampeões, um estouro de dupla!

Pronto, já sabem o resultado, podem ir para as fotos. Mas menina, como estavam bacanas essas mil milhas…

A farra começou na tarde de terça-feira, dia 23 de junho, no estacionamento descoberto do Iguatemi. Vistoria dos carros em parque fechado para os competidores, e meu maridinho Edu, diretor de prova. Desta vez não participámos de carro antigo, não se pode querer tudo, né. Fomos de Toyota Hilux SW4, gentilmente cedido pela montadora, chique. Como Diretora Social do MG Club do Brasil, recebi os convidados para um coquetel oferecido pelo shopping. Tirei umas fotinhos, mas muito bem assistida pelo mago da fotografia automobilista, Claudio Larangeira. Juntos com o assessor de imprensa, Otazú, fizemos um trio e tanto. O trabalho correu facinho pelos 6 dias, e uma noite, aquela … Acabada a peruagem, digo vistoria, foram todos colocados para dormir, automóveis, pilotos e navegadores.

Partida para a 1ª etapa
Largada às 7hs, no Iguatemi, debaixo de chuva. Sabe que estava bonito? So British! Café da manhã, brindes, matula, saímos todos felizes pela Bandeirantes, rumo a Poços de Caldas. Alguns se perderam, quebraram, trocaram de carro, esqueceram a carteira. Bem feito! Falta de atenção, com a jóia, que deveria estar nos trinques nesta altura, com a planilha, que já se suponha estudada, e os seus pertences. Levam tantas ferramentas. Almoço no Palace de Poços, que agora chama-se Carlton. Viagem no tempo pela decoração art decô, e comidinha mineira deliciosa. Mais estrada, agora para Águas de Lindóia. Maurício e Carolina já eram sucesso absoluto no percurso com a sua Romi-Isetta, Bombinha, quando a coitadinha arreou. Comoção no acostamento, a equipa da Fox, que cobria a prova, quase chora de pena. Marx não teve dúvidas, despachou a Isetta para São Paulo, e mandou vir um Porsche 914, com o qual terminou a prova. O Hotel Villa di Mantova recebeu a turma super bem, que vista mais linda da região das águas termais. O jantar de confraternização já trazia os primeiros resultados. Os gaúchos saíram na frente, perseguidos pelos paulistas.

2º Dia foi duro!
De Lindóia para Angra dos Reis, uma senhora pernada nos aguardava no 2º dia. Depois da parada para almoço na Bica do Curió, o restaurante mais kitsh do mundo, a prova teve um de seus momentos mais emocionantes, a descida da serra de Taubaté. Garoa, neblina, cotovelos, era preciso registrar aquelas imagens inacreditáveis, por mais perigoso que fosse estacionar naquelas ribanceiras. MG, Jaguar, Ferrari, Austin-Healey, BMW, Porsche, Mercedes, Alpine, Mini, Volvo, Puma, até Fusca! (Esta é para provocar o Pimenta, que arde de raiva quando seu Volkswagen é discriminado. Temos o maior carinho por ele, relax). Que qualidade de marcas e modelos neste rallye, impressionante. Paradinha de abastecimento na Rio-Santos, uma das costeiras mais admiradas da terra, e chegada no Meliá Angra. Pôr-do-sol, jantar e cama

Do Litoral à serra!
Como é gostoso acordar cedinho no litoral, com aquele cheirinho de maresia, inebriante … mas era hora de tomar café e largar. Fazia sol na praia e tivemos que partir, subindo a Serra de Lídice, com os seus túneis de pedra. Escuros, é pura magia, cheguei a ver Cecil Kimber espreitando. Será? Ou foi a caipirinha da véspera?

Almoço de fogão à lenha em Visconde de Mauá, numa altitude de 1.300 m, os antiguinhos rebolaram na subida de curvas recém-asfaltadas. Daria para passar a semana no Hotel Mauá Brasil, luxuoso, descontraído e charmoso. As navegadoras quase pediram asilo, mas estes pilotos têm a mania de cronometragem. “Está na hora”, bradavam os infelizes. Ainda houve tempo de consertar o cabo do acelerador do Puma dos franceses. Oh-là-là !!! Comemoraram. A única pilota da prova foi a Rose, brava guerreira, com o seu Austin-Healey acatava as ordens do marido Hervé, francês também. O carro parou um bocado, mas o casal ganhou o prémio fashion look. Mais fotogénicos, impossível. Descida de Mauá, subida para Caxambu, em Minas Gerais. Estradinhas por florestas, vendinhas de cachaça, queijo e doce de leite pelo caminho. Nesta hora é bom não ter tempo verificado, dá para fazer umas comprinhas. Chegada festiva no Hotel Glória em Caxambu. Amplamente divulgado pela imprensa local, a cidade pára para ver as 1000 Milhas, emocionante.

Drinks na piscina, no bar, no restaurante. Participantes inflamados com os resultados parciais. Já se conhecem bem, se abraçavam depois de tantas degustações. O restaurante decora as mesas com carrinhos de brinquedo, e lá pelas tantas, vê-se sérios executivos balbuciando vrum … vrum … apostando corrida.

Na mesa da sobremesa o itinerário do rallye, feito de grãos de arroz, com os nomes das paradas em plaquinhas. Estrangeiros desavisados perguntavam qual era o doce caxambu. Muitas risadas e gozação para cima dos gringos, que levavam tudo na desportiva.

Destino: Campos de Jordão
Sono profundo no hotel antigo mais legal do passeio, para largar (de novo!) bem cedinho rumo a Campos do Jordão. Brunch requintado no Le Bistrô, de Quiririm, e subida para a nossa Suiça brasileira. Só que não neva. Hotel Blue Mountain à tarde, o sol se pondo, piscina aquecida, conforto de apartamento 5 estrelas. Descanso rápido, para a temida Noite do Saci, às 18:30 hs. 7 graus lá fora, alguns carros conversíveis, capricho na roupa de inverno. Era hora de vestir todos os agasalhos da mala.

Os portugueses Maria Lucia e Alexandre Calheiros, de MG C GT, não se intimidaram com a escuridão, meteram uma lanterna na cabeça da co-pilota e lançaram-se a desmembrar os caminhos da Pedra do Baú. Noite estrelada de lua crescente encantava nossos descobridores. Muito divertimento e poucas fotos, diante do breu. Um susto a cada passagem de faróis. Sem percalços, chegaram todos de volta, depois de 100 km, para o jantar.

O clima de despedida já tomava conta dos amigos, alguns veteranos, outros recém-adquiridos. Gaúchos, paulistas, franceses, portugueses, italianos misturavam as suas línguas e sotaques. Brincadeiras com os que enjoavam, vomitavam, ou coisa pior. Comida mineira tem muita carne de porco, linguicinha e torresmo, desarranja mesmo. A última noite seria de ganhar folego para a etapa final na manhã seguinte. Mas quem conseguia dormir, com tanta adrenalina? Garçon, mais vinho!

“Bonjour mes amis”!
Yves, o navegador francês, acordou disposto distribuindo “Bonjour, bonjour, bonjour”. Alexandre, o português, só dizia “Obrigado, obrigado, obrigado”. O MG dele, acabado de ser restaurado na R&E, comportou-se com louvor, graças a Deus. Saímos de Campos direto para São Paulo, último trecho cronometrado. Um pouco de trânsito e chegada em grande estilo no Iguatemi. Famílias esperavam os seus heróis. Amigos queriam ver se era verdade aquele rallye. Uma multidão ovacionava os carros sujos daqueles malucos que se puseram a fazer esta prova de regularidade e resistência. Champagne, comidinhas e conversa fiada à espera dos resultados e entrega de prémios.

O pódium imponente do Zé Ricardo, aguardava os números do Décio. A equipa afinada, estava orgulhosa da organização da 4ª Mil Milhas. O MG Club está de parabéns. Obrigada aos patrocinadores. Troféus para pilotos e navegadores, 3 primeiros de cada categoria. E taças aos 3º, 2º e 1º da geral.

Alegria sem igual, ano que vem tem mais.

Saideira - Jeremias Moreira





Saideira
Jeremias Moreira

Para combater a oxidação de peças de metal, Washington usava uma mistura de ácido hidroclórico com bicarbonato de sódio. Objetos pequenos como cinzeiros, guarnições de portas, espelhos de tomadas e galheteiros ele mergulhava na mistura, dentro de um velho balde de plástico. Agora, ele precisava de um recipiente grande, onde coubessem quatro candelabros.  Toni sugeriu uma banheira. Poderia ser encontrada, por uma pechincha, no depósito de ferro velho do Tomazelli, que ficava na Rua Piratininga, no Brás. Washington gostou da ideia e decidiu ir naquele instante. Foram na velha Belina. Lá encontram diversas banheiras e Washington comprou uma que considerou adequada, por um bom preço. Para transporta-la até a Alameda Tietê, onde ficava sua loja, resolveram deitar o banco traseiro do carro e colocar a banheira naquele espaço. Depois de muito esforço perceberam que apesar de o bagageiro ser espaçoso, o artefato não cabia. O único jeito seria deixar a porta traseira do veículo aberta e metade da banheira pelo lado de fora. Assim fizeram e tocaram de volta. Pouco antes, naquela manhã, Washington havia comprado, por telefone, um jogo de porcelana inglesa de uma cliente. Lembrou-se disso e aproveitou para ir buscar na casa dela, na Rua Tupi, em Santa Cecília. De lá, rumaram para a loja e pegaram a Avenida Pacaembu. Logo à frente, na Praça Charles Miller, havia um comando do DSV. Quando Washington avistou o cerco policial já era tarde. Não havia mais como escapar. Ele transportava uma carga de forma arriscada que contrariava a norma de trânsito. Além disso, não tinha carteira de habilitação. A solução seria Toni assumir a direção do carro: 

- Toni, você vai ter que dirigir o carro. Eu não tenho carta de motorista.

- Eu também não! Nem dirigir eu sei! - respondeu Toni.

A banheira pendurada na traseira do carro chamou a atenção de um policial. Ele acenou para Washington entrar na área de inspeção. Diversos veículos já estavam por ali. Washington estacionou, o guarda se aproximou, pediu sua carteira de habilitação e os documentos do veículo. 

- Olha, sargento eu estava tentando colocar essa banheira no carro.  Mas aí, meu funcionário sentiu-se mal e eu saí apressado para levá-lo ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas. De tão aflito, nem deu tempo de retirar a banheira e, na pressa, também esqueci os documentos em casa. - explicou Washington de forma dramática. 

Ao ouvir a história, Toni fez cara de doente e, o guarda, de “conta outra que esta eu já ouvi”. 

- Transportar sua carga dessa maneira perigosa como o senhor está fazendo, já é uma tremenda infração. Além disso, está dirigindo sem os documentos. Vou ter que aplicar multa e apreender o veículo. - respondeu o guarda.

Washington desceu do carro e quase que se postou de joelhos implorando que o deixasse ir. Explicou que o Toni estava muito mal e tinha urgência de socorro médico. Nesse momento, o guarda foi chamado pelo comandante da operação. Washington aproveitou e mandou Toni ir até a loja procurar os documentos e trazer alguém, com carta de motorista, para dirigir a Belina. Toni pegou um táxi e se foi. O local já estava apinhado de carros com irregularidades e o oficial que comandava decidiu suspender a operação e levá-los todos para o pátio do Detran. Formaram um comboio com cada motorista dirigindo seu próprio veículo, escoltados pelos policiais. Os documentos estavam apreendidos e quem evadisse, seria multado por isso, também. Washington se deu conta de que o guarda que o interpelou não tinha nada que se referisse a ele. Pensou em se mandar, mas o esquema policial estava cerrado e ele não viu alternativa senão seguir a fila de carros. Colocou-se imediatamente atrás de uma camionete Toyota. Quando a estranha caravana, escoltada pelas motos e carros do DSV, alcançou a Avenida Doutor Arnaldo, os primeiros carros entraram à direita, na rampa que dá acesso à Avenida Rebouças. Porém, a camionete, que Washington seguia, acelerou e tocou em frente, em direção à Avenida da Consolação. Washington percebeu a manobra do sujeito. Ele estava fugindo. Impulsivamente acelerou e o seguiu. Um carro do DSV percebeu a fuga dos dois e foi atrás. A Toyota impôs velocidade e Washington também. O carro do DSV ligou a sirene e virou uma verdadeira caçada pela Consolação. As pessoas olhavam curiosas aquela perseguição: uma Belina, com metade de uma banheira emborcada na traseira, seguido por um carro de polícia.  O semáforo da Rua Matias Aires, logo à frente, fechou. A camionete atravessou com o vermelho aceso e foi-se embora. Washington ficou indeciso, mas resolveu parar. O carro do DSV o alcançou e mandou que encostasse. O policial desceu furioso e Washington com a maior cara de pau deu a desculpa de que estava seguindo a camionete.

- Estávamos em comboio e minha referência era a camionete. Apenas cumpri as ordens que me foram dadas.

O policial espumava de raiva. Desviou o olhar para a Consolação, mas a camionete já tinha desaparecido. Isso o irritou mais ainda. Passou a ser uma questão de honra ir atrás e trazer a Toyota de volta. Furioso, ordenou que Washington o esperasse aí, onde estava, até sua volta. Entrou no carro e partiu cantando pneu. A Belina estava num recuo de calçada para embarques e desembarques de táxis. Conforme ordenara o policial, Washington permaneceu no recuo até se perguntar o que estava fazendo ali. Lembrou-se que nenhum documento seu ou do carro fora apreendido. O guarda sequer anotara a placa do carro. Como resposta a si próprio ligou a Belina, aproveitou o farol aberto, e se mandou em direção à loja, na Alameda Tietê. Quando chegou, avistou Toni no bar da esquina. Ele ainda procurava alguém para levar até o Pacaembu. Quanto aos documentos da Belina ele lamentava, mas revirara o escritório todo e não os encontrara. Washington caiu na risada:

- Você não poderia encontrar, mesmo. Agora me lembrei, perdi os documentos assim que comprei a Belina. Deixa prá lá, vamos descarregar a banheira que o freguês vem buscar os candelabros amanhã e a gente ainda precisa limpá-los. 

Caminharam em direção à loja e de repente Washington parou, deu meia volta e disse categórico:

- Antes, vamos tomar uma cerveja.

O dia seguinte amanheceu esplêndido. Um sol loiro brilhante penetrava pela Alameda Tiete e tingia tudo de dourado. A Belina continuava estacionada no mesmo lugar, com a banheira ainda dentro.

Ode aos 70 - José Vicente J. de Camargo


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“Ode aos 70”
José Vicente J. de Camargo



Seguindo a mãe natureza
Meu 70 me chegou
Se o tempo enganar não deixa
O fazer é prosseguir

Olhando o atrás passado
Fica difícil entender
Onde os dias se esconderam
Pois tudo ontem parece

Se por fora rugosa passa
Por dentro força vibrante
Que no brilho dos olhos mostra
A vontade de mais viver
        
Pra marcar data alcançada
Letrado marco escrevi  
De etéreas linhas traçado
Contos Prosas Poesias

Se ao pó voltarei
Próprio marco atestará
Para quem ficar saber
Que por aqui meditei

Meu futuro saber não cabe
Só Ele o porvir conhece
No aguardo do Seu chamar
Novos marcos erguerei

À família querida
E às amizades construídas
Mil afagos quero dar
Pois em todos só encontrei
Doces palavras a me abraçar

Aos colegas do EscreViver
Grata menção quero fazer:   
Do raiar da inspiração
Entre figuras de linguagem
Ao nascer do texto cria
Incluindo o bom lazer
Só incentivos encontrei...


Vizinhos sinceros - Oswaldo Romano



VIZINHOS SINCEROS
Oswaldo Romano

— Oi Moreira, como vai? Corre boato que vocês vão nos deixar?

— Olha Gerêmias, infelizmente não é boato, não. Digo infelizmente sem muita certeza por que as coisas correndo como prometem devo agradecer tamanha oportunidade.

— Com alguma tristeza pedindo vênia pela sinceridade, digo: Felizmente. Felizmente a sorte bateu na nossa porta.

Bem que gostaria de ficar aqui, controlar daqui a nova gerência, perto de vocês, que tanto queremos bem. E as crianças, então?

Certamente nos entendemos, mas as crianças... As crianças, diria coitadas. Sinto com essa palavra o quanto difícil será essa separação. Pouco, ou quase nada sabem da nossa obrigação. São como pombos que nunca esperam abandonarem seus ninhos. Imaginam que o trabalho vem a nós, e não nós é quem devemos procurá-los.

Pois é Moreira. Gostaria de combinar com você como vamos administrar essa separação. Vamos falar a mesma língua. Deixar acontecer a separação deles, tão unidos que são, dá pena.

Eu não tenho outra opção. O que estou ganhando aqui, e com o incessante aumento do custo de vida, não consigo nos manter. Preciso evoluir, ganhar um pouco mais. Vou alugar esta casa por um valor superior ao que pagarei lá. Só nesse lance já sobram uns quebrados.

— Tomara você alugue para gente boa.

— Moreira, que tal combinarmos que essa separação é temporária e que nesse meio tempo, aos sábados e domingos faremos um revezamento?

— Isso Gerêmias. Bem falado. Sua sugestão é boa. Podemos ainda passar fins de semana na praia, ou no sítio.

— Não temos casa na praia, Moreira!

— E nem temos sítio Geremias!


— É verdade! Devemos trocar só as figurinhas que temos. Com seu novo ganho, talvez um dia...

O HOMEM QUE TRICOTAVA - Jeremias Moreira



O HOMEM QUE TRICOTAVA
Jeremias Moreira

Pesadas nuvens cinzentas cobriam a cidade como um edredom. Era junho e o inverno chegara impiedoso. Nas calçadas, as pessoas caminhavam encolhidas expondo seus ares taciturnos. Ao contrário delas me sentia eufórico a caminho da reunião de pré-produção de um filme de Galak, que acabara de entrar. Galak é um chocolate da Nestlé e dirigir um filme para essa empresa era sinônimo de prestígio. A reunião seria na Norton Propaganda às cinco e trinta da tarde. Esse horário me incomodava porque, certamente, eu pegaria congestionamento na volta para a produtora. Cheguei à Rua General Jardim e encontrei uma vaga para estacionar próximo à Rua Cesário Mota Junior. Estava sem talão de Zona Azul. Fui procurar no bar da esquina e a mulher do caixa apontou para um homem na calçada, todo agasalhado, usando um gorro de lã na cabeça, sentado numa caixa de madeira e tendo atrás de si, um varal onde pendurava bilhetes de loteria e talões de Zona Azul. O curioso era que o homem tricotava. Achei a cena pitoresca, me aproximei e ele me atendeu bem humorado. Perguntei o que resultaria do seu tricô:

- Agasalho para os meninos: - respondeu.

Entendi que se referisse a seus filhos. Comprei uma folha de Zona Azul com validade para uma hora. Achava que reunião não duraria mais que isso. Em todo caso, combinei que se ultrapassasse o horário antes da minha volta, que ele colocasse outra, pelo lado externo do para-brisa do carro, que depois eu pagaria.

A reunião se arrastou e saí da Agência por volta da oito da noite. O homem não estava mais lá, mas havia colocado o cartão no vidro do carro conforme combinamos. Fiquei sem saber como pagá-lo. Nisso, aproximaram-se dois garotos negros, de mais ou menos onze anos:

 - Oi tio, o Neneco falou para o senhor deixar o dinheiro com a gente!  – disseram.

Fiquei desconfiado. Durante o processo de realização desse filme iria diversas vezes à Agência e poderia pagar outra hora. Mas, os meninos poderiam estar dizendo a verdade e seria desfeita duvidar deles.

Ponderei que se fosse golpe, não seria o fim do mundo. Eu pagaria dobrado, mas tudo bem.  Dei o dinheiro para os meninos e eles ainda me pediram uma caixinha por tomarem conta do carro.

Na quarta feira seguinte voltei à Agência para a reunião produção, onde apresentaríamos os itens que preparamos para o filme. Apesar de frio um sol radiante dava uma aparência festiva às pessoas. Consegui uma vaga bem próxima de onde estacionei na vez anterior. Novamente estava sem Zona Azul, mas agora sabia onde encontrar. Aproximei-me da esquina e lá estava o Neneco tricotando. Percebi pela cor dos fios, que se tratava de outra peça de lã. Aproveitei para agradecê-lo por ter cumprido com o nosso combinado do outro dia e contei que pagara para os meninos.

- Ah sim! Eles me entregaram o dinheiro. – explicou.

Desta vez, comprei duas folhas de uma hora cada e combinamos, novamente, dele colocar quantas fossem necessários até minha volta.

Sem me dar conta, minha mente elucubrou uma breve reflexão sobre os dias sombrios que vivemos, com toda espécie de violência, e que nos obriga a viver sempre com um pé atrás. E, foi inevitável a comparação com o pequeno acontecimento do qual eu, o Neneco e os dois meninos fomos protagonistas. Não os conhecia, nem eles a mim. No entanto, o Neneco foi honesto comigo cumprindo o combinado. Eu fui honesto com ele, pois me preocupei em pagar. E os meninos foram honestos conosco servindo de intermediários nessa história.

Recebi o troco, agradeci e me encaminhei para a Agência. Atravessava a rua quando ouvi uma voz de criança que me chamava. Virei e me deparei com um dos meninos:

- Oi tio, posso cuidar do carro?

Acenei que sim e reparei que o agasalho que ele vestia, era o mesmo que o Neneco tricotava na sexta feira. Então, entendi sua resposta à minha pergunta. Ele não se referiu aos seus filhos, mas aos meninos da rua.

Na Agência, comentei com o Fefeu, um diretor de arte, sobre essa história e ouvi dele que o Neneco é uma figura bastante popular e conhecida por ações em favor dos meninos de rua da região.

Por um bom tempo minha mente se ocupou com esse homem que vive de subemprego e que talvez seja a único alento para esse grupo de crianças. Uma coisa leva a outra e não pude evitar lembrar, quando morava em Jaboticabal, nos anos 1960, e que se estacionava e deixava-se os carros com vidros abertos, portas destrancadas e as chaves no contato. Também as famílias não trancavam suas casas.

Sem dúvida a vida já foi mais fácil!

O cofre - Mario Augusto Machado Pinto

Ovelha sendo resgatada por um pastor [www.BiblePictureGallery.com]


O COFRE.
Mario Augusto Machado Pinto

Chegado aos 60 anos, pequena estatura, físico adiposo, maneiroso e modesto no viver, Nicholas é um tipo que passa despercebido,  sabe disso e cultiva essa característica. Passou por muitas situações de perigo e desenvolveu esperteza fugindo dos exércitos invasores de sua terra, Helos.

Agora fugia do exército de Felipe V da Macedônia que após derrotar a frota de RODES na LADE avançava em direção a PERGAMO saqueando o território e atacando cidades em CARIA.

Tratava evitar o saque de seus bens. Comprou um lote de carneiros e, no meio deles,  de madrugada levava um amarrado de cada vez a um esconderijo num pasto nas montanhas que bem conhecia. Ali, num cofre de metal e couro, guardava copos, pratos e talheres de prata, ânforas feitas por Kletos, seu artista predileto, moedas de ouro e pedras apropriadas para lapidação além de objetos de mármore e ágata. Era “seu tesouro”.

Apesar de seus cuidados, os vizinhos notaram a constância das subidas às montanhas levando seus carneiros a pastos remotos e sempre portando um fardo maior do que seria necessário para levar sua comida e bebida. Nada diziam, mas comentavam entre si. A curiosidade era cada vez maior, principalmente no que viram na madrugada passada: Nicolas carregando um embrulho bem grande.

O caminho para os pastos era sinuoso com passagens estreitas entre as pedras. Nicolas fazia trajeto próprio, diferente do habitual, afastando-se para não ser visto.

Levou horas nesse esconde-esconde até entrar numa gruta e dela sair com um cofre. Nicolas se concentrou em abrir e remexer o seu conteúdo até encontrar o que queria. Passou a alisar os objetos e a murmurar uma canção.

Assim ficou muito tempo alisando os braços de mármore da Vênus de Milo.



“Virando a Página” - José Vicente J. de Camargo


“Virando a Página”
José Vicente J. de Camargo

Existe um velho ditado que se ouve sem se saber quem é o autor se é que existe um ou se é popular passando de boca em boca, de geração em geração:

Há males que vêm para bem!”

E cai como uma luva no caso da família Aguiar.

O pai, como de costume após o jantar, reunido com a família em frente à TV, pede que o mais velho desligue o aparelho para surpresa de todos, pois, a propaganda já anunciava a seguir o jornal da noite, seu programa preferido para o qual pedia atenção e silêncio absoluto.

Sua mãe e eu temos algo muito importante para dizer:

Mês que vem, durante as férias, vamos mudar de cidade! Vamos para uma cidade do interior, bem menor que esta, mais calma, menos violenta, com muito verde, boa escola e bom clube. Já recebi o ok do banco para trabalhar na agência de lá e já encontramos uma casa para alugar.

Os dois mais velhos, Mateus e Dora, que estavam na idade da preocupação com as primeiras espinhas no rosto, dão um salto agitado como a salvar o celular prestes a cair na água:

Eu não vou! Não vou deixar minha turma da bola pra andar com nerds  do interior que, com certeza, não sabem nem oque é um ipad – grita Mateus.

Nem eu! Completa Dora. Essas cidadezinhas do interior nem shopping têm. Vou morar com a Vovó.

Os dois menores, não querendo ficar atrás dos irmãos mais velhos, também protestam:

Pai, nessa cidade tem televisão? Não posso perder o seriado do Huk – diz um.

O Rex pode ir? Sem ele não vou!  faz coro o menor de todos, mal sabendo que o seu cachorrinho de estimação é o que mais sofre no cantinho da área de serviço reservada a ele no apê apertado.

A mãe intervém em apoio ao marido – sabendo do seu coração mole nas reinvindicações dos filhos  quanto a ideia que ambos tiveram de procurar melhorar a qualidade de vida da família pressionada pela violência, poluição, trânsito caótico e o perigo das drogas na idade inicial dos filhos. Exemplos não faltam nas notícias diárias dos jornais escrito e falado e nos comentários dos parentes e amigos:

A decisão já tá tomada e pronto!  Cidade do interior não é fim de mundo: – pega celular, ipad, tem shopping, os programas de tv são os mesmos daqui e o Rex vai adorar tanto espaço verde, pois vamos morar em casa com jardim e quintal. A escola fica dez minutos de casa e então vai sobrar mais tempo para o clube, futebol, pros passeios com o Rex e principalmente pra fazer as lições de casa.

E além do mais, continua – a cidade é plana, com poucos carros, ótima para andar de bicicleta. Vocês vão poder usar as suas bem mais do que aqui. E o mais importante a casa que vamos alugar tem quatro quartos.  Portanto Dora e o Mateus vão ter seus próprios.

Palavras mágicas! Os semblantes se iluminaram visualizando o que viria pela frente na liberdade de movimentos e de espaços, bem além das paredes estreitas da atual moradia em quartos divididos para dois em cada, com beliches, e de janelas que insistem em só abrir a metade.

Quando Mateus recebendo a taça como capitão do time de futebol vencedor do campeonato local se recorda de seus protestos em vir morar na cidade que tornou possível essa alegria, sorri agradecido pela feliz ideia dos pais em se arriscarem na concretização desse sonho de oferecer a ele e aos irmãos, os melhores anos de suas vidas.

Na arquibancada, a família abraçada no meio dos amigos, comemora a vitória não só a do time da cidade que tão bem os acolheu, como também a deles. Dora não consegue conter a lágrima que lhe vem do pulsar forte do coração ao sentir, pela primeira vez, o toque apertado em sua cintura da mão daquele que por tantas noites sonhara ter um dia ao seu lado. Nos sorrisos das selfies sobressai o rabo empinado do Rex e seu olhar vivo voltado às rolinhas pousadas no campo de futebol.

Porém, mais do que ninguém, os pais saboreiam da decisão acertada que tomaram ao procurar no incerto a felicidade da família. Virar a página mostra uma atitude positiva de se tentar algo para melhor.


O prêmio pela iniciativa se recebe, quando a próxima página é bem melhor que a anterior...


A Janela do Hospital.



Este vídeo maravilhoso serve para estimular a criatividade de invenção de contos capazes de brotar com essa história.






Quando a vi pela primeira vez - Oswaldo U. Lopes




QUANDO A VI PELA PRIMEIRA VEZ
Oswaldo U. Lopes

        Quando a vi pela primeira vez ela estava na janela. Bem, para qualquer Sherlock amador já tem ai mais elementos que em qualquer delegacia com escrivão aplicado.

        Não acredita? Pegue o carro e vai passear no Jardim América ou no Alto de Pinheiros. Não, não é para ver como se tira ouro do pântano, como fez a Cia. City. É sim, para ver, ou seria melhor não ver, moças na janela. Não as há, nem você enxerga sequer as janelas.

        Se ela estava na janela quando a vi, a janela forçosamente estava na calçada como, aliás, estava a frente toda da casa. O bairro não era moderno ou o tempo era outro.

        De fato o tempo era outro. As casas inclusive dos melhores bairros tinham a frente na rua e no fundo grandes e bonitos jardins.

        Meu caro Watson o tempo era ao redor de 1940 e a moça tão bela era solteira e não tinha compromisso. Se tivesse não estaria na janela e sim bordando enxoval.

        Era possível ser feliz assim reclusa e fechada? Pelo que contam sim, era possível. E não adianta xingar ou reclamar de que ninguém podia ser feliz vivendo assim.

        Felicidade não é coisa que se possa medir, pesar, cheirar ou escorrer. É estado d’alma e estado de alma se insere no tempo e no espaço. Naquele tempo e naquele espaço era possível ser feliz. O medo ficava para fora, a insegurança não era total e a criminalidade baixa, embora existente.


        E foi assim que a vi na janela, à luz da tarde, bonita e fugidia, feliz a seu modo no seu tempo e no seu espaço.

Meu Deus, o que foi que ele fez? - Oswaldo U. Lopes




MEU DEUS, O QUE ELE FEZ?
Oswaldo U. Lopes

 A foto mostra uma moça olhando de binóculo pela janela, cuja veneziana esta parcialmente aberta. No momento e com esse título você imediatamente pensa em:

a- James Stewart e Grace Kelly
b- Janela Indiscreta
c - Hitchcock

Bem, olhe de novo e perceba que a moça não parece assustada com o que esta vendo. Esteja ele fazendo o quer que seja não lhe causou repugnância ou medo. Curiosidade com certeza. Ela olha para cima o que quer dizer que ele não esta no térreo a menos que ela more abaixo do nível da rua. Porque more?

O ambiente não tem características de local de trabalho. Você pode não gostar do papel vermelho com desenhos de século XX da parede, mas não vai negar a presença do sofá escuro ao fundo nem o estranho objeto, parecendo um vaso que afasta a veneziana.

Você quer a minha opinião? Bem vou dá-la assim mesmo. A cidade é Nova York o cenário muito parecido com o do filme Janela Indiscreta, um conjunto de prédios com pátio em comum. Ele que mora com a mulher no quarto andar, bolou um sistema para passear a cachorrinha do casal que é engenhoso e infalível, sobretudo quando ele esta com preguiça ou esta frio.

Tem pendurado na parece da sacada um cestinho onde coloca a cachorrinha e vai descendo o cesto até chegar ao chão de onde o bichinho sai feliz da vida para passear no páteo. Na hora de voltar processo inverso, e lá vai ela de volta a sacada.


Será que a moça nunca tinha visto isso? É possível. Trabalha e faz refeições fora, às vezes um TV dinner. Tem uma companheira de quarto que no momento esta fora. Amanhã cedo, vai aproveitar que é sábado, acordar tarde e contar para amiga uma história que acha quase incrível, não fosse a cidade Nova York.