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O heroi esquecido - Jeremias Moreira


O HEROI ESQUECIDO
Jeremias Moreira

Ele era esquálido e alquebrado. Caminhava com passos curtos e pesados como se acorrentado a grilhões. Estivera entre os pracinhas que participaram da incursão brasileira na Itália, durante a Segunda Guerra. Acolhido pela família da qual a mãe fora cozinheira, ocupou o mesmo quartinho dos fundos onde morara com ela desde seu nascimento. . Ela morrera na sua ausência e ele nunca conhecera o pai. Era um rapaz ativo antes do alistamento, mas agora se encontrava completamente fora de prumo, emocional e físico. Fora diagnosticado com neurose de guerra.  Mantinha-se recluso, seus assuntos eram desconexos e perdera a vivacidade. Às vezes saia, caminhava a esmo.  Envelhecera precocemente e pôs-se a falar sozinho. Foi o bastante para ser notado pela molecada do bairro, que cada vez que o via, corria atrás e o infernizava:

− Felix morreu na guerra! Felix morreu na guerra!

Ele entrava em parafuso. Endoidava e punha-se a gritar de volta:

− Morreu nada! Morreu nada!

Era um grito lamentoso. Catava o que estivesse próximo e atirava nas crianças, que desviavam às gargalhadas. Esse tormento continuava até que, eventualmente, algum adulto se interpunha e repreendia a garotada.

Certo dia Osmar ouviu uma conversa de seu pai, com alguns amigos, sobre o desempenho da FEB em território italiano. Felix foi citado como um dos heróis daquela expedição. Ele tivera um papel destacado no resgate de um pelotão aprisionado pelos alemães. Recebeu medalha de Honra ao Mérito, por isso.

Por ser mais velho, Osmar exercia certa liderança sobre os demais meninos da rua. O que ouviu na roda de adultos o fez refletir sobre a forma como  tratavam uma pessoa que expôs sua vida em defesa da liberdade. Deu-se conta da injustiça que cometiam. Desse dia em diante não permitiria mais as provocações.

A decisão de Osmar chegou tarde. Felix morreu naquela semana.

Foi sepultado no túmulo em que estava a mãe, no Cemitério Municipal.

Você foi - Mario Augusto Machado Pinto



VOCÊ FOI.
Mario Augusto Machado Pinto


O consultório ocupava casa numa vila. Pequena, jardim manicurado, tendo música ambiente e iluminação a Leds, era jeitosa, apresentava decoração de muito bom gosto. A recepcionista gentilmente ofereceu-lhe a bergère, café com bolachinhas e o último exemplar da revista Femme. Informou que o Dr. Denis a atenderia em seguida.

Li folheava a revista sem ler ou ver o que continham as páginas. Há três semanas aguardava o resultado da consulta anterior. Durante esse tempo só pensava nisso.  No tratar com as pessoas a expectativa influenciava seu comportamento meigo tornando-a ríspida e agressiva. Dadú nem podia chegar perto que logo era afastado com um brusco “chega prá lá”. Depois, dava-lhe um beijinho. Estava impossível. Ainda bem que hoje terminaria essa agonia, pensava ela.

O Dr. Denis levou-a pessoalmente à sua sala. Há anos médico do clã Bergamós, perguntou por seus pais e alguns parentes. Li, que respondia por monossílabos, de repente pediu:

- Dr. Denis, vamos ao importante. Por favor, diga logo o resultado: Sim ou Não e me explique. Não aguento mais essa espera!

Ouvido com atenção, o resultado negativo a arrasou. Levantou-se da cadeira e, qual leoa, andava pela sala repetindo Eu quero um filho! Tem que ter um jeito! Tem que ter! Tem que ter!

Sem dizer nada, Dr. Denis deixou que ela se acalmasse, indicou a cadeira e comentou:

— Sim, há outras possibilidades. Há vários processos. Resumidamente, é o seguinte...

Atentamente Li ouviu toda a explicação e falou que escolheria o que fazer e que daria resposta em breve. Agradeceu, e saiu tão rapidamente que se esqueceu de pagar a consulta. O Dr. Denis fez sinal de “Deixe” à recepcionista. Cabisbaixo retirou-se para sua sala. Ele também estava perturbado.

Ela foi ao shopping e, do Filó, conseguiu um lugar para descansar. Estava gelada, tremendo como vara verde. Colocou os pensamentos em ordem, telefonou avisando a copeira para atrasar meia hora para servir o jantar. Em seguida, durante duas horas arquitetou seu plano. Satisfeita, tomou um sorvete antes de ir para casa.

Lá chegando, o espantado Dadú foi abraçado bem apertado, beijado e acariciado várias vezes. Da. Ignês também, assim como Tétéu, sua irmã. Surpresos, perguntavam O que aconteceu? Respondia: Depois eu conto.

O jantar foi rápido. Todos queriam saber, mas não adiantou.  Repetia: Depois eu conto.

Após a novela deu Boa Noite geral e pediu a Dadú para ir junto.

Já no quarto, sentou-se na poltrona de dois e falou de seu plano para terem um filho. Ele ouviu balançando a cabeça e murmurando Incrível, loucura! Ao termino da fala da Li sugeriu que era preciso ouvir Da. Ignês e Tetéu. O viver mudaria aumentando a responsabilidade de todos. Li concordou, chamou a mãe e a irmã, contou o que pretendia fazer esperando a aprovação delas. Durante dias a resistência foi ferrenha. Sua mãe a chamava de louca sonhadora, manipuladora e de outras coisas na intimidade. Aguerrida, Li, aos poucos, foi vencendo obtendo, ao final, a aprovação das suas ideias. Não foi com o entusiasmo e alegria de todos, mas mesmo assim ficou contentíssima. Avisou que falaria com o Dr. Denis pedindo orientação sobre como proceder. Da. Ignês só lamentava a ausência de Tonico, seu falecido marido. Tétéu comentou Vó, você pensa que vovô ia aceitar? Acredito que não. Foi o único comentário meio opositor, dissonante.

Para felicidade geral o procedimento efetuado foi um sucesso. Decorrido o tempo certo nasceu Flávia, menina sadia, a cara de Da. Ignês. A vida de todos mudou. Flávia recebia tantas atenções que a ama de leite dizia que ela era a TV da família.

Nem tudo eram rosas, porém. Li não estava totalmente satisfeita. Representava contentamento. Estava vendo que qualquer dia atiraria com a albarda ao ar. Isso aconteceu quando disse a Dadú que Da. Ignês deveria ir morar sozinha, sair da casa deles. Ele foi raivoso em sua fala contrária.

Não concordo e ponto final! - gritou.

— Você não tem querer neste assunto. Eu estou pondo ponto final na sua deslealdade. Pensa que eu não sei do caso de vocês dois aproveitando-se das idas ao médico, ao laboratório, caso que dura até hoje? Os exercícios da mamãe na academia de ginástica? As suas reuniões, seo Dadú, com clientes à tarde várias vezes por semana coincidindo com as aulas da mamãe? Você, bucaneiro de marca, comigo já falhando no preparo do tiro? Suas idas ao motel bem escondidinho na paralela da Marginal? Vocês pensaram que eu era cega? Que não via mamãe esfregar a bunda em você?

Li, não fala assim!

— Falo como quiser e digo mais: se não concordar com a saída da mamãe eu faço um baita escândalo e ponho vocês dois pra fora!. Ponho mesmo! Estou sendo clara?

Está.

— Então diga que concorda.

Concordo.

— E, Dadú, não se esqueça: tenha sempre presente que você FOI. NÃO SERÁ DE NOVO. LEMBRE *.


Mas conviveram por muitos anos. Simples assim.

Sapatos vermelhos - Oswaldo Romano


SAPATOS VERMELHOS
Oswaldo Romano    
                                                                  
        Quando moça, Julieta era admirada e vista na sua cidade com muito carinho, era até invejada pelas moças.

        Linda, esbelta e como a vedete do teatro, as senhoras da sociedade  olhavam-na com ressalvas.

        Usava o teatro mais velho. Simples,  porém o mais frequentado, deixando o novo e mais bonito às moscas. Neste, as apresentações seguiam severas normas da prefeitura, espetáculos notórios censurados.

        A graça de Julieta era irresistível.  Arrastava o povo para o velho e escuro casarão, mas que tinha, ela, iluminando seu palco.

        Os mais idosos que se mostravam reservados, frequentadores do novo teatro não se aguentavam. Estavam ávidos para saber como era o pulo do gato, para tanto sucesso.

        Mas o tempo não perdoa. Julieta a mulher dos mais lindos requebros, envelheceu. As crianças do novo tempo a tinham como a bruxa que morava no acabado sobradão da praça da igreja, e que a noite gritava.

        Jogando pedras que alcançavam a desgastada janela de vidros opacos e trincados pelo tempo, provocavam seu descanso, obrigando-a aparecer. Sabia que receberia uma chuva de pedras, mas precisava acalmá-los:

        — Meninos! Meninas! Por quê querem judiar desta pobre e velha mulher que hoje faltam-me forças até para me levantar? Por quê?

        — Por quê? – disse em voz alta uma menina. — Porque falam que você é uma bruxa. Tem o olhar verde de gata com unhas afiadas. Agredia os homens. Coisa de bruxa... Bruxa mesmo! -  reforçavam as meninas, gritando como moleques.

        Veio a chuva. Recolhidos, deixaram de aborrecer a bruxa, por dois dias. Mas assim que se reuniram, lá estavam eles, atirando suas pedrinhas.

Ela não deu sinal de vida. Perguntaram ao sapateiro que trabalhava numa garagem ao lado:

        — Moço, a velha se mudou? — Ele respondeu sem levantar a cabeça. — Não, não, está ai.

        Pedrinho, o mais levado, resolveu comprovar. Subiu as escadas. A porta não tinha fecho.  Entrou. A velha vedete estava de costas, sentada na cadeira de balanço. Olhava fixamente para a janela. Pedrinho bateu com os pés nas taboas soltas do assoalho. Ela não se mexeu. Bateu de novo várias vezes. Nada! Ficou apavorado. Deu no pé. Desceu saltando degraus, apareceu correndo, gritando e correndo levou consigo todos os amigos.

        O velho sapateiro,  que ostentava vasto bigode, com seu avental todo manchado de tintas, levantou-se, foi ver o que acontecia.

        A velha vedete, calçada com seus sapatos vermelhos, estava morta.

Desculpe - Dulce Azevedo


DESCULPE
Dulce Azevedo

Dedicada, atenciosa, amorosa. Com esses adjetivos posso descrever Maria Isabel, professora experiente que nasceu com o Dom do ensinamento usando-o com muita habilidade e astucia. Religiosa dedicada, gostava muito de ajudar os carentes. Ministrava seu tempo livre entre o catecismo e o crochê. Gostava do que fazia. Como não tinha filhos seu tempo era todo ocupado deixando de lado sua saúde. Uma dorzinha insistente e incômoda no abdome foi se intensificando de maneira muito rápida tornando sua rotina impraticável. Cansada de se automedicar procurou um clínico geral para diagnosticá-la. Durante a consulta o médico notou que ela, apesar de transpirar muito tinha uns calafrios, e tentou acalma-la em vão. Sua temperatura estava muito alta e a pressão não parava de subir. Resolveu medicá-la ali mesmo vendo o total desconforto com a situação que a paciente apresentava, novamente quis acalmá-la. Acompanhando a aflição da paciente verificou que seus olhos começaram a perder o foco e logo desmaiou. Decidiu interná-la, apesar da resistência imediatamente. O quadro que até então parecia fácil transformou-se num curto espaço de tempo em seríssimo, pois a paciente estava entrando em coma. O médico resolveu convocar a família para que ficassem a par da difícil situação, pois geralmente pacientes neste estado clínico eram acometidos de infecção.

Foi o que aconteceu. De repente Maria Isabel não reagia mais e entrou em coma deixando os seus familiares desesperados principalmente Rita, sobrinha extremamente afetuosa e confidente. Transtornada com o ocorrido sentiu-se desamparada ao pressentir que teria dificuldade em resolver seus problemas sem a  opinião da tia. Rezava   fervorosamente para sua melhora. Rosa acreditava em milagres e visitava a tia todos os dias. Desta maneira acompanharia a evolução da enferma de perto. Foi durante uma dessas visitas que Maria Isabel voltou à si e soube que correu um grande risco de vida. A sobrinha aliviada começou a pôr toda a conversa em dia, contou que tinha conhecido um rapaz que lhe despertara grande interesse e necessitava das dicas da tia para levar essa relação em diante. Ficava impressionada com a facilidade dela para resolver aqueles conflitos amorosos. Falou tanto que a tia pediu que agora ela gostaria de revelar seu segredo e esperava que ele fosse guardado e compreendido com amor e compreensão. Debilitada compartilhou com Rosa seu angustiante segredo guardado durante anos e com certeza era a causa do pavor que tinha em relação aos médicos. Confidenciou:

— Rita, sou seu tio!

A jovem, coitada, tomou um susto tão grande que perdeu a voz. Atordoada com a revelação não sabia como se reportar ao tio ou a tia. Recordou todos os conselhos acertados que lhe foram dados e concluiu que só um homem realmente saberia definir tão bem as reações de outro homem. Transexual, como uma mulher pode ser tão feminina num corpo de homem! -  pensou. Tomou fôlego e tranquilizou a tia dizendo que aquela revelação jamais sairia daquele quarto que ela se preocupasse apenas com a sua saúde para que as duas retomassem a suas rotinas normalmente porque elas eram "as eternas confidentes". Com essa declaração de amor e carinho Maria Isabel, serena, prontificou-se a cuidar melhor da sua saúde para que elo nunca fosse rompido.

Nada mudou - Dulce Azevedo





NADA MUDOU
Dulce Azevedo

— Alô, quem fala?
—  Não está reconhecendo minha voz?
—  Não, não estou
—   Estudei com você.
 — Comigo?
— É com você
— Mas, estudou onde?
— Ah! Não se lembra que fizemos o ginásio juntos e nós éramos do time de futebol da escola?
— Quem tá falando?
— Vou te dar umas dicas; eu era a referência para todas as piadas fossem elas sobre gordos, morenos, pintados em qualquer situação era o personagem da estória.
— Seja mais claro, porque na infância todos nós gostávamos de perturbar uns aos outros. Eu fui diversas vezes motivo de chacota. Você tinha apelido?
— Vários?
— Jogava em qual posição?
— Comecei como atacante, fui para a lateral direita e logo substituí o goleiro e nuca mais sai dessa posição.
— Mas era bom no gol?
— Ôpa! Era o melhor não tinha pra ninguém.
— Você era bem humorado?
— Era, mas estava sempre tenso porque qualquer falha já era motivo de piada.
— Bom, agora ficou mais fácil, pois um time de futebol é composto por 11 jogadores e 2 goleiros e se você era um bom goleiro só pode ser o JOÃO BOI!!
— Sim, acertou. Sou eu mesmo.
— Poxa, se você não me desse tantas dicas ficaria aqui horas para descobrir sua identidade. O que deseja? Você está bem?

— Estou muito bem, obrigado. Não desejo nada. Achei o seu telefone na agenda e por curiosidade resolvi ligar para verificar se sua memória continuava boa. Até logo Pedro. Tenha um bom dia.

A pequena família - Maria L. C.Malina


A PEQUENA FAMÍLIA
M.Luiza de C.Malina

Maria Cristina, em seus dezesseis formosos anos, exibe o faiscar do tão invejado  brilhante em seu dedo emoldurado pela exótica aliança. Delgada, o brilho de seus longos cabelos negros, esquadrinha a beleza de seu semblante que reflete uma imensa paz interior.

Otávio Henrique oito anos mais velho, é um jovem magnífico. Porte alto, de educação aprimorada dentro dos padrões exigidos, formou-se na Universidade de Oxford. Ao conhecê-la teve a sensação exata de que um nascera para o outro. O destino os uniu.

Ambos, filhos únicos nascidos em berço de ouro e, apesar da boa fortuna,  assumem a direção das respectivas empresas paternas com olhar atento às necessidades dos operários. O trabalho em conjunto expande-se à outros países.
Poucas nuvens mesclam a vida rosada que levam.

Após cinco anos, o desejo por um herdeiro é reclamado pelos pais, ansiosos por entrarem na linhagem de avós.

A esterilidade de Maria Cristina é anunciada. O amor de Otávio Henrique surpreende. Ambos se completam e, enfrentam a realidade como um novo desafio.  A alegria da possibilidade de nascer uma criança desanuvia as preocupações dos pais.

Após muitas pesquisas, optam pela discrição. O método será seguro e absolutamente confidencial. Em acordo estritamente familiar, a escolha é feita pela mãe de Maria Cristina que havia se disponibilizado, caso necessário.

O casal transfere-se para o exterior. Neste meio tempo ele conclui um doutorado interrompido e ela, especializa-se em designer – uma vida atarefada, para dois jovens que resolvem alugar uma casa nas montanhas, acompanhados apenas pela mãe de Maria Cristina, Dona Laura e sua antiga ama-de-leite, a Nina.

Quando a gravidez foi anunciada, Maria Cristina, após os quatro meses, desfila e deixa-se fotografar, ostentando uma leve barriguinha artificial. Nina, sempre atenta aos seus afazeres domésticos as companha em animadas compras do enxoval, sem nada perceber e tudo a dedicar.
A vida transcorre normal. Dona Laura em paralelo apresenta uma leve engorda, o que a faz usar roupas um pouco mais largas.

O destino de Nina a chama de volta ao Brasil. Passados outros tantos meses Nina, com seus problemas resolvidos retorna ao exterior, atendendo ao apelo da família. Torna-se babá da bela criança que havia nascido. No entanto, percebe a tristeza no rosto de Maria Cristina.

Sem saber, procura por Dona Laura. Com as notícias nada boas, pede que lhe seja permitida uma visita ao hospital. Encontra-a com o semblante radiante, de quem em sua plenitude, havia conseguido chegar ao tão prometido Céu.
Dona Laura é submetida a diagnósticos variados para a vida vegetariana que lhe foi acometida.

Nina limitada na sua modesta cautela, e na simples compreensão dos fatos, acarinha-a demoradamente em seus pensamentos, suspirando:
- Que pena, queria tanto um neto e, agora não pode tê-lo em seus braços, ouvi-la chamar de Vovó.

Maria Cristina sabe o quanto Nina foi importante na vida de ambas. Sofria calada, pelo seu desejo de ser mãe, sem nada poder revelar a Nina. Desmaia.  Nina a ampara pegando a pequena criança no colo, que chora com a queda repentina. Novamente, Nina torna-se ama-de-leite.

Devido à doença misteriosa de Dona Laura, a família resolve continuar no exterior. Novo direcionamento ao tratamento apresenta uma melhora acentuada.

Ao mesmo tempo Maria Cristina, com a tal da melancolia tratada com florais, começou a ter seguidos desmaios. Submetida a uma batelada de exames, a confirmação de seu problema evidenciou-se rapidamente. Está gravida.

O mundo, ao redor de si, é invadido pela energia transformadora do amor, em que tudo é possível. 

A baronesa de São Jorge - Mario Tibiriçá



A baronesa  de  São Jorge
Mario Tibiriçá

O enterro do  Comendador  Barão de São Jorge, mais parecia uma festa, centenas de pessoas  acorreram, choraram, cantaram  quase  festejaram o acontecimento. Muitos vieram enquanto outras tantas mandaram telegramas  de pêsames e cumprimentos  chorosos face a triste  ocasião.

O barão, Comendador  Jorge Aurélio Texeira Gonçalves de Souza, executara importantes obras aos munícipes de Mundiará, onde falecera aos  noventa e seis anos.

Nos últimos anos do Império, fora  homenageado pelo  imperador  Pedro II  com o  título de  Barão de São Jorge.

Quando jovem  prestara relevantes serviços ao império, e  com seus inflamados discursos no  parlamento,  cooperava com o Imperador Pedro Segundo, na administração do império.

Homem de temperamento alegre, tinha sua falha na incessante procura pela mulher ideal, e como sempre acontece, apaixonou-se por uma jovem comerciária do setor de doces. Maria Aparecida Custódio Ferreira de Lima, de  22 anos, linda morena de profundos olhos verdes e açucarados lábios. Infelizmente moça  de  poucos recursos, trinta anos mais jovem que o Barão, que  também apaixonou-se por ele.

Em pouco  tempo casaram-se  na matriz  da cidade de  Mundiará onde  fixaram  residência e onde infelizmente o Barão veio a falecer.

No decorrer da vida,  D. Maria Aparecida, sempre valorizou o título de baronesa, embora não tivesse qualquer direito a esse uso, e agora  após a morte do  Barão sempre se fazia anunciar como  Baronesa de São Jorge.

Tornou-se uma senhora nervosa, irritante, irrequieta, e implicante. Não suportava mais a mediocridade  do município, comparecia aos eventos dos colégios da cidade, criticava os alunos pela  inconstância nos  estudos, preguiça, e falta de respeito. Exigia sempre que lhe beijassem as mãos na apoteose  do absurdo.

O jovem garoto Josué, líder  da patota  da municipalidade, já  farto das críticas e repreensões da Baronesa, resolveu  que haveriam de lhe dar o troco.

Reuniu a turma  no campo de  futebol e resolveram para começar pregar algumas peças na  metida senhora baronesa, através dos altos muros da audácia.

A fim de ofendê-la, juntaram  um dinheirinho e compraram u’a mula que deram o nome da baronesa. Soltaram balões  para caírem com perigo na casa  dela, e jogaram pedras nos vidros da  mansão da baronesa.

Esta por sua vez, notou que os  garotos andavam descalços e não tardou em colocar muitos cacos de vidro junto  às diversas portas de sua casa. Não  gostava dessa  situação de intransigência com os meninos, porém não admitia o desrespeito, afinal  era uma senhora  de mais de sessenta anos com uma vontade inútil de chorar.

Através de informações diversas os garotos descobriram que o titulo do Barão era apenas  dele  e não extensivo á mulher, assim  espalharam por todo o município a falácia  da baronesa. A mulher, não a mula.

Até que um dia, abateu-se  pela  cidade  terrível praga, onde morreram jovens, adultos e velhos e a simples iniciativa da baronesa em  tratar  a água de consumo da população, benefício  espalhado por todo o município,  e que salvou algumas dezenas de pessoas.

Hoje  em dia o município  de Mundiará chama-se  Município Baronesa de São Jorge.

SEI TUDO A SEU RESPEITO! - Oswaldo U. Lopes


SEI TUDO A SEU RESPEITO!
Oswaldo U. Lopes

O telefone toca e ele atende. A voz do outro lado tenta ser sombria:


- Sei de tudo a seu respeito, sei o que você fez no verão passado.

- Isso era um filme e as crianças que inventaram o brinquedo acabaram muito, mas muito, perto do fogo. Deu até continuação, mas não foi muito boa.

- Você não esta entendendo, eu sei de tudo a seu respeito.

- Não nego que você talvez saiba no genérico. O Google  ajuda muito. Eu já usei é maravilhoso.

- Você acha que estou brincando não é? Amanhã você terá uma bela surpresa.

- Vai lançar o primeiro capítulo? Pela minha idade e tempo que já vivi, vai parecer novela das nove. Pelos aspectos mais picantes e obscuros, fica melhor como mini-novela das onze.

- Você se acha muito engraçadinho, não é? Não sabe o que o espera.

- Bom se for a respeito dos que matei, não vale contar atestado de óbito. Como médico era obrigação e privilégio. Não se esqueça  de que número do CRM  é que nem doublé 00 do serviço de inteligência da rainha, dá licença para matar. Alias para facilitar sua pesquisa vou-lhe adiantar uma coisa. O meu CPF começa com 007, tem caixeira de loja, do tipo bem humorada, louvadas sejam, que já me cumprimentam dizendo: “Mr Bond, James Bond”.
- Você vai se arrepender, prometo.

- Se eu fosse você ficava calmo. Eu carrego comigo o CRM e o 007, quer dizer dupla licença para matar.

- Você verá! Clic.

- Meu bem, quem era no telefone?


- Não liga era um cara que sabia demais a meu respeito, mas já encomendei a viagem sem volta para ele.

A LUTA POR DUAS VIDAS - Jeremias Moreira



A LUTA POR DUAS VIDAS
Jeremias Moreira

A ultrassonografia mostrou um feto saudável e do sexo masculino. Entusiasmados, os três foram para o escritório do João, onde ele pagou a segunda parcela do acordo.

Algumas semanas antes Ivete sentira um nódulo no seio. Atribuiu a mudanças no corpo por causa da gestação e não deu importância. Voltou a sentir o nódulo, novamente, alguns dias depois da ultrassonografia e resolveu ir ao médico. Quando ouviu o prognóstico soube que tudo mudaria. A principio entrou em pânico, precisava do dinheiro. Depois, mais calma, resolveu partilhar com o casal. 

Cabeleireira, Ivete nutria o sonho de ter o seu próprio salão.  Caçoava ao dizer que na sua profissão tinha-se que ser um pouco psicóloga. As mulheres que atendiam sempre contavam suas queixas pessoais. Certo dia ouviu o desabafo de Valéria. Ela possuía uma deficiência uterina congênita e estava impossibilitada de ter filhos. Tanto ela como o marido queria muito ter um. Abaixou o tom da voz e confidenciou que decidiram contratar uma barriga de aluguel e utilizar a técnica de fertilização in vitro.
— Aliás, o nome correto é Doação Temporária de Útero. - disse - É ilegal, mas estamos dispostos a pagar para uma pessoa “doar” seu útero.

Na hora Ivete não se tocou. Mais tarde, a fala da Valéria ficou martelando na sua cabeça. Procurou se informar e descobriu muito sobre o assunto. Inclusive que preço por essa prática girava em torno de duzentos mil.

Uau! Uma boa grana. Pensou na possibilidade de se oferecer para a empreitada. Era uma baiana bonita, alta, com vinte e seis anos, saudável, não fumava, não consumia drogas e bebia ocasionalmente. Morava sozinha em São Paulo e não tinha namorado fixo a quem dar satisfação. Enfim, tinha todos os requisitos para cumprir a função e essa era a grande chance de conseguir capital para montar o seu negócio. Ligou para Valéria e se ofereceu para “doar” seu útero.

— Topo ser a barriga de aluguel! – brincou.

Valeria gostou da ideia e a convidou para um encontro, na mesma noite, com a participação do João, o marido. Combinaram o preço de cento e oitenta mil reais pagos em três vezes. Antes, fariam todos os procedimentos legais e clínicos e se tudo estivesse bem, tocariam em frente. A primeira parcela seria paga no dia da fertilização, a segunda na ultrassonografia e a última, após o parto. Fizeram um pacto de sigilo quanto ao pagamento.

Tudo caminhara muito bem até aquele instante, em que ouviu do médico a trágica notícia. Os exames que ele pedira confirmaram o câncer da mama. Os hormônios da gestação estavam alimentando o nódulo e ele crescia rápido. Como o grau de gravidade do tumor era avançado, o obstetra informou que a gestação teria que ser interrompida.

Para Ivete, a pior notícia, não foi o diagnóstico da doença, mas a da interrupção da gravidez. Foi um verdadeiro choque saber da necessidade do aborto terapêutico. Por isso entrou em pânico. Além da decepção do casal seu sonho se esvaia. Ligou para Valeria e João. Reuniram-se. Ela expôs a situação e mostrou-se decidida a ir até as ultimas consequências. Sua determinação, aliada à do casal, levou-os a pesquisar para ver se encontrariam casos semelhantes, bem sucedidos. Numa consulta ao computador, encontraram um caso. Descobriram o obstetra e foram atrás.

A partir daí, começou a luta de Ivete para sobreviver junto com o bebê. A coexistência dos dois processos antagônicos no seu corpo, um que conduz o organismo à morte e a gravidez, que leva à formação de uma nova vida, a direcionou para um campo de batalha.

Como toda a pessoa que tem câncer e passa pelos tratamentos agressivos, Ivete sofreu com os efeitos colaterais. Teve anemia, baixa na imunidade e precisou realizar transfusão de sangue. Além disso, sofreu os efeitos comuns da quimioterapia, como queda dos cabelos. No entanto, isso foi secundário, já que a criança pulsava e crescia dentro dela, a cada dia.

Aos sete meses da gestação, foi necessário interromper a quimioterapia para recuperar a imunidade, tanto a do bebê quanto a dela. No entanto, com a pausa do tratamento percebeu-se a reativação do tumor, que voltou a crescer. Então, o parto teve que ser antecipado.

Pedro nasceu prematuro. Um bebe perfeito. Os três explodiram de felicidade. Valeria e João por conseguirem o tão sonhado filho. Ivete por ter vencido a primeira batalha e gerado uma vida. Porém, ficou o vazio. O apego que desenvolveu em relação à criança foi um poderoso combustível que lhe deu forças. Agora, sobrava só ela e a doença.  

Durante a cesárea, aproveitou-se e fez-se a mastectomia. Depois ela enfrentou mais oito ciclos de quimioterapia junto com radioterapia. Passou maus bocados, mas acreditava que os demônios que nos perturbam nunca conseguem derrotar os anjos que nos protegem. Como baiana arretada, Ivete aguentou o tranco e venceu a segunda batalha, também.


Hoje, passado um ano, isso tudo é história. Ela está completamente curada e, todos os dias, comanda o IVETE’S BEAUTY SALON.

Dois é bom, três é necessário. - José Vicente J.de Camargo



Dois é bom, três é necessário.
José Vicente J.de Camargo


Pela minha tabela é para hoje a noite! - Disse Marina ao marido mergulhado no jornal curtindo a vitória do verdão - Vou já preparar o chá de capim santo que tia Cinoca me sugeriu como tiro certo.

Não vá tomar muito! Senão é aquele corre-corre pro xixi!- Responde Diego já pensando no que o espera na hora H, entre promessas a cumprir se der certo, lamúrias se não der, pensamento positivo que tira o tesão, posições de malabarismo recomendadas, enfim o teatro já tantas vezes encenado sem êxito.

Volta Marina bebericando o chá – na verdade mais um dos muitos já experimentados - com a  mesma ladainha que deixa Diego irritado:

Última chance! Se desta vez não der certo, vou por meu plano B em ação...

Não se esqueça de que precisa de mim para essa história, e não mudei minha posição... Retruca Diego. Mas não vamos recomeçar novamente essa discussão furada. Melhor nos concentrarmos no necessário.

Diego não quer dar o braço a torcer, mas no íntimo sente – principalmente depois da conversa que teve com o ginecologista – que o tal plano B de Marina é o mais factível. Sua relutância em aceitar nem é tanto pelo fato em si, mas pelo falatório, pelo diz que diz do pessoal. Orgulho ferido? Talvez...

O importante para ele é que a mulher não passe mais pela depressão das últimas tentativas. Vê-la sofrer daquele jeito, nem pensar. Ele próprio sentiu o baque, mas teve de fingir “dar a volta por cima” para segurar a barra dela. Se conseguiria fazer outra vez o mesmo papel, é difícil dizer...

Dona Zilá atende ao telefone da filha e pela voz já adivinha que a tentativa foi novamente por água abaixo.
Dito e feito...
A filha chorosa confirma o teste negativo, a opinião do ginecologista para alternativas não convencionais e por fim a surpresa - mais fácil do que esperava - da concordância do marido.

Dona Zilá tem um chilique de satisfação misturado com um pouco de medo dado a novidade do caso, pelo menos dentro do seu mundo de rotinas pragmáticas e conservadoras. Mas, a alegria do primeiro neto - ainda por cima de uma forma tão especial - e, sobretudo a participação dela como parte integrante do esquema, a faz vibrar de emoção.

No entanto sua maior alegria é, sem dúvida, poder dar à filha a realização do desejo que sente desde criança. De ser mãe, de ter uma família de muitos filhos. Hoje, sentindo a problemática, já se satisfaz com um só.

Porém, no íntimo, Dona Zilá tem outro motivo para se contentar. Bem sabe que o genro era contrário a ideia: - “Um é pouco, dois é bom, três é demais”- dizia quando indagado sobre o  assunto. Além do mais, acha-a sugadora do erário público, por receber pensão de viúva e esbanjá-la no carteado e nas viagens com as amigas. Nas reuniões de família é o primeiro a contar anedotas maldosas de sogras intrometidas e de compará-las com cervejas no que tem de melhor: “Na mesa gelada”...

Agora é ele, Diego, que precisa dela para dar continuidade ao seu sangue. Quero ver que piada vai contar desta vez!

Na tarde da jogatina com as amigas – todas as quartas com chá, bolos e amanteigados - não resiste ao desejo e põe pra fora a felicidade contida:

Queridas, hoje já ganhei o jogo de antemão! As cartas que tenho são imbatíveis!

As amigas se entreolham desconfiadas, imaginando algum novo truque de Cinoca pra levar a melhor.

Vou ser mãe outra vez! E melhor, sem precisar de marido!

Ante a surpresa das companheiras, algumas já ensaiando sorrisos jocosos, continua:

Mãe de aluguel! Aos sessenta anos! Qual de vocês me cobre a novidade?

Foi tal o alvoroço causado pela noticia que o intervalo do chá é antecipado para saciarem a curiosidade...

Dona Zilá, rainha absoluta das atenções, discursa - qual presidenta na TV- sobre a consulta ao ginecologista da filha, a dieta a fazer, os medicamentos a tomar, o repouso indispensável – fez questão de não cancelar as tardes de jogo – a rotina dos exames e finalmente a data marcada.

As amigas a felicitam entre o frenesi que a noticia trará, a repercussão nas redes sociais até a missa a Nossa Senhora do Bom Parto, o enxoval tricoteado a mão, a ajuda na casa... As mais dadas puxam o assunto para o lado mais intimo, querendo saber detalhes de como é feita a  inseminação,  participação de Diego, ciúmes da filha...

Na maternidade Diego possa para a selfie ao lado da mulher tendo ao fundo o berçário.

Acabara de se recuperar do desmaio que tivera na sala de parto. A sogra não só exigiu sua presença - apesar de saber da sua fraqueza pela visão de sangue – como também que segurasse sua mão nas contrações e que murmurasse palavras de carinho como a dizer – “nunca mais farei piadas de sogras”.

Mas o choque que o nocauteou iniciou com o choro do recém-nascido que lhe bambeou as pernas e, ao vê-lo no colo da mãe, com um segundo outro choro que lhe faz perder os sentidos.

Após tomar o soro que lhe restabeleceu a consciência, Marina lhe revela o diagnóstico do ginecologista de se tentar fazer uma inseminação dupla, dado as boas condições dos óvulos e do estado de saúde da mãe.  Nada lhe contou sabendo da implicância dele sobre o assunto e da esperança de se conseguir nova gravidez pelo método tradicional. A enfermeira avisa que Dona Zilá já retornou dos exames e os aguarda no quarto. Entrando deparam com jornalistas e fotógrafos querendo registrar a primeira amamentação dos gêmeos ao lado da mãe biológica e da mãe-avó alugada.

─ Pai também? Indaga Diego.

─ Não! Neste caso pai não é furo de reportagem... Retruca o fotografo.

A sogra, no entanto, faz questão de tê-lo ao lado. E pede a um dos jornalistas que depois o entrevistasse sobre a importância das sogras na vida familiar.

Ah! E ele faz questão que a entrevista seja regada a uma cerveja bem gelada...


GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO - Oswaldo Romano


GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
Oswaldo Romano                                                              

        Vania e Vitório se conheceram na Vila dos Remédios, local onde a maioria das famílias vive arraigada desde que o bairro foi fundado, por volta de 1932.

        Reduto de muitos portugueses, quase todos oriundos da Ilha da Madeira. Uma promoção naquela Ilha, propaganda oportuna, e enganosa, os convocou.  Estavam com excesso de mão de obra para as poucas indústrias e agriculturas ali existentes.

        Nos arredores da Vila havia falta de mão de obra. O que sobrava ali era total falta de infraestrutura. A fartura enganava-os desde a Ilha da Madeira, prometendo mundos e fundos. Aqui faltava luz, água, esgoto, gás, telefone, escola, asfalto, pontes, farmácia, padaria, abastecimentos básicos.

        O principal emprego era oferecido pelo Curtume Bourbon, nos baixos da Jaguara, mas o campeão no impacto ambiental. O ar fétido que exalava atingia todos os bairros vizinhos. Seus operários calçavam botas brancas até o joelho, que carregavam por aonde iam o cheiro do sangue podre. Só eles o suportavam.

        O pai de Vania, com grave doença nos pulmões, coisa corriqueira na vila, faleceu cedo, deixando sua mãe Olinda ainda jovem que a custos educou suas duas filhas, Vania e Maria.
        Vania e Vitório casaram-se, e na lua de mel quiseram conhecer Lisboa.  Visitaram pontos turísticos, não faltando o principal, mundialmente conhecido, Santuário de Fátima.

        Meses depois foi o casamento da irmã Maria com Herculano, moço visto com reservas. Tentava esconder sua boemia, ferrenho frequentador do Hipódromo da Mooca onde ostentava o que não podia.

        A vida corria normal, mas Vania não engravidava situação que a atormentava dia e noite, chegando a comprometer seu casamento e alterar seu comportamento. A má formação do seu útero, bicorne acentuado, era a causa.

        Depois de muita polêmica recorreu a sua mãe para submetê-la a uma Gestação de Substituição. Ao ter conhecimento do que se tratava, Dona Olinda tomou o maior susto. Mas, sentindo também um peso pela causa da filha, aceitou o desafio.

        Felizmente, de início estava dando tudo certo. Vitório ficava mais com a sogra do que em sua própria casa.

        A saúde de Vania estava comprometida. Ocasionava profunda preocupação na família. Teve início uma corrida aos médicos, psiquiatras, até benzedores. Seu estado agravava-se a olhos vistos. Foi preciso interná-la e logo em seguida foi mandada para um hospital psiquiátrico.

        Vitório acompanhava o primeiro mês da gestação da sogra, com interesse desusado. Sentia-se deslumbrado. Maria acabou se separando, morava com a mãe, uma oportuna companhia. Iniciou um novo namoro, ele também filho de portugueses. Um namoro aguado. Pouco se viam. Ela curtia mais o inusitado fato novo aceito pela coragem da sua mãe.

        Causava curiosidade e comentários o fato do filho do Vitório vir a ser o filho da sua sogra, irmão da sua mulher e da Maria que seria também sua tia.

        Reuniam-se todas as noites frente a imagem de Santa Ana, a mais venerada Mãe,  pedindo perdão e proteção. Olinda destacando-se dizia ter aceitado a missão porque adorava seu genro e não sentia-se  confortável pela anomalia da filha.

        Com muito tato fazia de tudo para não demonstrar seu desejo de ficar com a criança, e aproximava-se com carinho do Vitório que certamente seria no futuro um excelente pai.

        Uma noite, depois de rezarem, Vania acompanhou o Vito até a varanda, costume normal nas visitas diárias. Sorria a toa nesse dia. Questionou o Vitório sobre sua admiração pela sogra, que agora grávida, ficou ainda mais bonita.

        Vitório levantou-se, espantado e contestou:

        — Maria, nunca passou pela minha cabeça outro interesse. Apenas acho sua mãe bonita.

        — Sei disso. Brincadeira, bobo.

Abaixou a cabeça, moveu-se, seus longos cabelos caíram como uma cachoeira sobre o rosto. Fez pequena pausa, e numa virada brusca e fala brusca, disse:

        — Você vai ser pai!

        — Claro Maria! E você vai ser tia! São galhos da famosa árvore...

        — Vito! Eu disse: Tia e Mãe!

Vito silenciou, deu um nó no seu pensamento. Também nunca tinha ouvido falar tanto  dessa tal árvore genealógica.
        — Explica essa, Maria?

Maria encarando, olho no olho,  quis que compreendesse:

        — Vito! Vou ser tia e mãe. Lembra-se da nossa melhor noite!

                        Estou grávida!