PRETINHO e MARRONZINHO
Yara
Mourão
Eles
ficavam ali, lado a lado, na prateleira do armário. Não era um lugar nobre,
exclusivo; havia calçados de todo tipo ali: sandálias, tênis, botas, tudo
misturado. Mas esses dois eram geralmente colocados lado a lado, o que
possibilitava uma troca de impressões contínua.
Assim,
Marronzinho e Pretinho iam levando suas vidas de pedestres já bem condicionadas
e sempre conseguiam trocar experiências.
Toda
manhã, Marronzinho falava:
—
Mais um dia de caminhada, Pretinho! Lá vou eu por essas calçadas esburacadas
tentando me desviar de poças e dejetos, pois nossa dona parece que anda
dormindo e eu é que sofro!
—
Mas você ainda tem sorte, dizia Pretinho. Sua armadura é bem resistente, seu
salto é forte e mais perto do chão. O meu salto fica a 10 centímetros do chão e
com todo esse invólucro de verniz sofro mais ainda!
Assim,
os dois tinham suas vidas à mercê da própria dona, que trabalhava de dia e ia
para as baladas à noite.
O
Marronzinho era para o dia. Sua dona caminhava quase um quilômetro até o
trabalho. O Pretinho era para a noite, as festas, o teatro, os bailes.
—
Sabe, Pretinho, você é que é feliz. Quando chego aqui, no fim do dia, é quando
você está acordando, e logo sairá, todo brilhando, para lugares bonitos, de piso
lisinho, seco e perfumado!
— Na
verdade, Marronzinho, as festas são belas, mas não são interessantes. Você é
que pode observar pessoas inteligentes nas reuniões de trabalho quando, por
debaixo das mesas, você tem a companhia de vários iguais e não se sente
comparado com outros, como acontece comigo.
—
Isso é verdade. Ficar ali no escritório me parece um bom lugar. Não preciso
andar muito, todos respeitam meu espaço, quase não reparam em mim. Me sinto
útil, sabia? Trabalho tanto quanto nossa dona e não causo nenhum desconforto a
ela.
—
Que inveja, Marronzinho! Já eu, dou toda a minha elegância a ela e, quando é o
fim da noite, ela me atira longe e diz: “Ai, que alívio! ” É muita ingratidão!
— É
mesmo, Pretinho? E eu que queria trocar de lugar com você… Acho melhor me
conformar com essa vida sem glamour. Pelo menos, nossa dona me conserva, entra
ano e sai ano, sem se preocupar com a moda.
—
Já, comigo, a moda é uma ameaça constante. Ela exige que eu seja ou mais alto,
ou mais baixo, ou dourado, ou vermelho… Sabe, Marronzinho, invejo sua utilidade
e lamento minha sina; sei que logo serei substituído por outro mais novo!
—
Entretanto, Pretinho, você sempre terá sido um sapato de 10 centímetros de
verniz, coisa fina e insubstituível.
—
Você também tem uma história preciosa, Marronzinho: batalhador e vencedor da
vida de todo dia. Somos, na verdade, o bom e o belo de ser quem somos. Agora
vamos dormir que amanhã tem mais. Talvez algo novo, ou tudo de novo, não
importa. O importante é caminhar.
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