A truta encantada - Conto de Natal
Ises de Almeida Abrahamsohn
Todas as tardes ele
caminhava pela trilha da mata até chegar à praia do lago. Em um dos ombros
trazia as varas de pescar e o embornal com as iscas e anzóis. Do outro pendia o estojo do violino. Ninguém
mais conhecia aquele lago. Apenas Joaquim. A casa, o lago, a trilha ficavam a
100 km do vilarejo, este também perdido num vale esquecido da dita civilização.
O músico escolhera lá viver,
isolado do mundo, há três anos. Foi sua resposta ao destino ou, quem sabe, à
cruel divindade que lhe roubara a mulher e o filho num acidente de
automóvel. Só restara ao violinista a
companhia do fiel instrumento e o canto dos pássaros. Acostumara-se à solidão
que se impusera, acreditando que a música e a meditação o reconciliariam com
seus semelhantes.
Gostava do silêncio no entorno do lago
enquanto esperava algum peixinho desavisado morder a isca e proporcionar-lhe o
almoço do dia seguinte. Um ou outro pássaro ainda cantava à tardinha antes de
se recolher. O músico começava então a tocar para as águas mansas do lago e
para as árvores que o vento fazia sussurrar. Sempre começava tocando Schubert.
A melodia da canção “A truta”, die Forelle.
Fechava os olhos e via a truta, alegre, saltitando ao nadar entre as
pedras de algum riacho gelado. E assim também aconteceu naquele dia de
dezembro, antevéspera de Natal.
Ao terminar a melodia, abriu
os olhos e viu a linha de pesca ser levada para o meio do lago. Devagar enrolou a carretilha. Era um peixe
grande. Estranhou mesmo, porque naquele lago só pescava lambaris. Quando puxou
o peixe para fora viu as pintas e as escamas coloridas. Ora, pensou, é uma
truta. Nunca vi trutas neste lago.
Delicadamente retirou o
anzol. Estava indeciso sobre o que fazer com o peixe, que parecia fêmea
carregada de ovos. Devia jogar de volta na água. Foi quando a truta lhe falou
com sua voz de truta:
— Vamos, Joaquim, me devolva para a água,
amanhã é véspera de Natal. Assim, daqui a um ano haverá muitas outras trutas
neste lago que você poderá chamar com a sua música. O que vai fazer neste Natal? Mais um Natal
sozinho? Você também tem que voltar a viver.
Joaquim, assustado, jogou a
truta na água. “Devo estar ficando maluco. Peixes não falam. E trutas, então,
por que falariam?” Catou as linhas, anzóis e o violino e retomou rápido a
trilha de volta para casa. Era quase Natal. Tinha esquecido. Mas o Júlio, que
lhe trazia as encomendas do empório da vila, havia comentado há uma semana. Era
uma boa pessoa, esse Júlio, mantinha com dificuldade a família, mulher e um
casal de filhos. A truta perguntou, o que faria no Natal? Seria igual aos anteriores? Não, não!
O estranho peixe falante tinha razão. Voltar a viver. Precisava voltar a
viver. Ver gente, crianças, se alegrar com a felicidade alheia...
Ligou para o empório. O
Júlio ainda estava por lá.
— Que é que manda, seu Joaquim? Quer um panetone para o Natal? Ainda estamos
entregando amanhã cedo.
Mas, Joaquim não queria
apenas um panetone. Convidou Júlio e a família para passarem o Natal com ele e
para ele trazer tudo o que mais gostassem para comer e beber e brinquedos e
doces para as crianças. Júlio, espantadíssimo,
perguntou se ele estava se sentindo bem? Ao que Joaquim respondeu:
Estou ótimo, Júlio. Será por minha conta. Você
vai ver. Traga seu violão e juntos, com o meu violino, tocaremos muita música
alegre. Só não traga nenhum peixe para a ceia de Natal!
Nenhum comentário:
Postar um comentário