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CANÇÃO DO AMOR TRAÍDO. - Yara Mourão.





CANÇÃO DO AMOR TRAÍDO.

Yara Mourão.

 

Naqueles dias, Francisco chegava de sua longa viagem pelo Japão. Vinha fascinado com o oriente, seus encantos e mistérios. Era um romântico incurável, esse professor, trazendo na bagagem tanta inspiração que mal conseguia esperar o encontro com seus alunos.

No dia seguinte, já reunia a turma no Anfiteatro da Faculdade e, emocionado, expunha a eles, em gotas de emoção, toda a suavidade e beleza dos sentimentos orientais.

Apresentou seu projeto cultural para aquele semestre: iriam reescrever, atualizando e modernizando, o libreto da ópera Madame Butterfly.

Os alunos se surpreenderam. O professor explicou que queria que reescrevessem a parte do canto da protagonista, Cio-Cio-San, quando ela conta a sua ama, Suzuki, a traição de seu amado Pinkerton, e que por isso ela iria cometer um haraquiri. A ama, então, se solidariza com sua dor.

Os alunos se agitaram. Mas a ideia era só fazer a leitura em cima dos trechos das músicas e não representar dramaticamente a história. Entretanto, essa leitura pedia sintonia com as personagens da ópera.

Francisco escolheria entre Luana e Erica. Mas de antemão, já sabia que Érica, que escrevia sob o pseudônimo de Kaká, autora das mais sensíveis e poéticas crônicas, criaria o libreto de Cio-Cio. Luana faria o da ama, embora a aluna fosse uma personalidade forte e nada delicada.

Todos buscaram inspiração nas leituras de autores japoneses, e muitos trabalhos foram apresentados.

Os de Érica eram impecáveis! Traduziam a profunda mágoa de não ter sido correspondida em um amor tão delicado e verdadeiro. Suas palavras escolhidas revelavam que, um dia, sentira essa mesma dor.

Já os textos de Laura eram mais cortantes, preconizavam quase uma vingança, algo que não condizia com o libreto da ama, mas sim com o de uma personagem mais arguta, que ambicionava para si uma vitória a qualquer custo.

Francisco não aprovou Laura. Ela se revoltou, se voltou para os livros em busca de inspiração. À noite, ia às escondidas até a biblioteca, ouvia a ópera baixinho, mas achava que essa postura subalterna e conformada não tinha mesmo nada a ver com ela.

Passaram-se os dias...

Da seleção de textos, o de Érica, “Canção do Amor Traído”, era perfeito! A escolha estava decidida. Mas o texto de Luana era completamente fora do contexto, não traduziria aquele lamento subalterno, sofrido.

O professor entendeu que um papel diferente seria melhor para Luana.

Recorreu a outros consultores procurando por uma sugestão. Precisava de um aconselhamento e lembrou-se de sua amiga Fumiko Takashima, uma laureada escritora da Academia, para dar uma opinião nesse trabalho delicado.

Os pingos de chuva na vidraça embalaram Francisco numa noite triste, em que ele adormeceu esperançoso de que, na manhã seguinte, Fumiko batesse à sua porta...

Foi o que aconteceu.

 

Viver, um eterno aprendizado! - Ledice Pereira

 


Viver, um eterno aprendizado!

Ledice Pereira

 

Virgínia adorava o Campus Universitário que vinha frequentando há três anos. Era tudo que almejara desde jovenzinha. Sempre fora das letras. Escrever era para ela o combustível que a movia. Entrar na Faculdade de Letras representava a realização de um sonho.

Não era de fácil relacionamento. A timidez fazia com que ela preferisse ficar só, sempre acompanhada de um bom livro que devorava com rapidez. A biblioteca era seu recanto predileto. Ali, deixava a imaginação levá-la a escrever crônicas, baseadas nas observações que costumava fazer durante o longo caminho para a Universidade.

Convidada a escrever, esporadicamente, crônicas para uma revista semanal do Campus, de bastante tiragem, aceitou, a princípio, pensando que os trocados que recebesse lá, a ajudariam a comprar mais livros. Como as crônicas alavancaram o interesse pela revista, pediram-lhe que passasse a escrever semanalmente.

Resolveu topar o desafio, adotando o pseudônimo de Margareth Smith. Achou que um nome internacional atrairia ainda mais os leitores. Foi o que aconteceu. Todos ali passaram a ler as crônicas da tal Margareth.

Virgínia achou necessário contar com um revisor. Para isso, optou por pedir apoio ao seu professor de Literatura, o Professor Figueiredo, a quem pediu sigilo e por quem nutria um sentimento que tentava esconder dele e de todos.

Figueiredo era querido pelos alunos. Procurava interagir com eles de um modo amigável sem se colocar no pedestal. Isso o aproximava de todas as classes, embora houvesse uma dúvida no ar. Por que o homem, que usava uma aliança na mão esquerda, nunca falava da mulher, de filhos, de sua vida pessoal?  Isso gerava curiosidade geral.

Roberta, ao contrário de Virgínia, procurava cativar os colegas e professores com seu jeito charmoso, sempre sorridente. Não era tão boa aluna. Tinha dificuldades, mas sempre conseguia a ajuda de um ou de outro, dando um jeito de fazer parte dos grupos de trabalho dos melhores alunos. Assim conseguia manter-se na média da classe.

Durante as reuniões de grupo, lançava sempre um comentário maldoso a respeito deste ou daquele ausente, deixando uma pulguinha atrás da orelha dos colegas.

Por três vezes, Roberta viu Virgínia, mostrando o que ela imaginou ser lição ou trabalho de literatura, ao Professor Figueiredo, o que a fez deduzir que a jovem estava tendo um tratamento diferenciado e talvez, por isso, obtivesse sempre boas notas.

Aquilo renderia uma boa fofoca, pensou, passando a controlar os passos da colega, por quem, aliás, ela passou a sentir inveja cada vez mais intensa e descontrolada.

Ela detestava ler. Nem as tão faladas crônicas, que eram assunto dos jovens toda semana, a atraíam. Procurava ouvir o que falavam para dar uns pitacos nos grupos, mas jamais parava para ler o que quer que seja.

Muitas vezes, faltava à aula para evitar ser chamada e passar vergonha. Isso acabava lhe custando pontos a menos na nota mensal, o que a deixava com muita raiva do professor.

Virgínia, no entanto, saía-se bem nos trabalhos e nas provas, redações, leituras.

Isso fez com que Figueiredo a convidasse para monitorar a cadeira de Literatura o que lhe renderia um pequeno salário. Com o tempo, Virgínia percebeu que o que nutria por ele não passava de uma grande amizade.

Não é preciso dizer que isso deixou Roberta com mais raiva dos dois. Deu asas à imaginação para construir uma história entre Virgínia e Figueiredo, o que acabaria com a reputação do Professor. A Universidade combatia qualquer envolvimento de professor/a e aluno/a.

No grupo de trabalho, lançou a semente da dúvida. Alguns não estavam interessados, pois admiravam Virgínia e respeitavam o professor, mas uns poucos, descontentes com as notas recebidas, resolveram comprar a história plantada por Roberta.

Instigados pela mau-caráter, resolveram seguir o mestre e descobrir onde ele morava. Pretendiam desmascará-lo frente à suposta esposa, contando-lhe maldosamente sobre o caso que teria com a aluna.

 Viram, curiosos, quando ele estacionou em frente a um pequeno prédio de apartamentos e desceu, sorrindo, conduzindo um pequeno buquê de flores-do-campo.

Viram, surpresos, quando um jovem abriu a porta todo sorridente e, com um abraço apertado, agradeceu o lindo buquê.

Viram, pasmos, quando os dois trocaram um demorado beijo na boca.

Pegos de surpresa, e, tendo em vista que a classe toda apoiava o movimento antirracistas e o LGBTQIA+, retornaram à Universidade, com o rabinho entre as pernas, percebendo quão ridículos haviam sido, ao dar ouvidos àquela fofoqueira da Roberta.  Esta, por sua vez, passou a ser repelida pela turma que percebeu sua verdadeira índole, tendo que se esforçar muito para ser novamente aceita nos grupos de trabalho, que já não caíam mais na sua armadilha e passaram a exigir dela maior empenho e colaboração.

A jovem percebeu que, se queria ser vitoriosa, precisava mudar radicalmente de atitude, precisava amadurecer, cuidar da própria vida, dedicar-se ao curso que escolhera, ser leal aos companheiros, respeitar colegas e professores.

Virgínia, cada vez mais enturmada, aos poucos, conseguiu vencer a timidez, até que, ao receber por suas crônicas, o prêmio que a revista universitária costumava conceder anualmente aos seus escritores mais lidos, foi obrigada a revelar sua verdadeira identidade. A admiração que tinham por Margareth Smith migrou instantaneamente para a verdadeira autora, que teve que aprender a lidar com o sucesso, com as entrevistas, com os autógrafos, já delineando uma promissora carreira.  

 

 

 

 

A FORÇA DAS BOAS IDEIAS. - YARA MOURÃO

 




A FORÇA DAS BOAS IDEIAS.

Texto infantil.

Yara Mourão.

 

Por entre aquelas serras passava um riacho que desaguava num vale bonito, entre árvores e pedras e com uns trechos de areia amarelinha que brilhava no sol da manhã.

Era ali que Carlinhos gostava de se refugiar todos os dias antes de ir para a escola. Lá ele não tinha amigos, ninguém ligava pra ele nem para suas ideias diferentes. Falava com os bichinhos, conhecia seus ninhos, seus barulhos sobre as folhas; amava aquele mundinho pequeno, tanto que era difícil sair dali sem levar um pedaço junto.

Um dia, Carlinhos teve uma ideia: ia juntar aquele universo numa caixa de sapatos e guardar tudo bem pertinho dele. Assim, acomodou na caixa uns tatus-bolas, um grilo, formiguinhas, com terra e comidinhas, e levou para seu quarto, debaixo da sua cama. Sonhava que dormia numa floresta cheia de animais, plantas, rios...

Essa caixa era seu segredo, seu tesouro, a coisa mais preciosa do mundo. Voltava da escola correndo para alimentar a pequena fauna.

Um dia, na escola, a professora deu uma tarefa diferente; as crianças tinham que levar o brinquedo de que mais gostavam e compartilhar com os amigos.

Carlinhos ficou muito indeciso. Aquela caixa era o que ele mais gostava! Será que iriam entender?

No dia marcado, ele pegou a caixa, pôs na sacolinha com o material e, meio nervoso, meio preocupado, foi para a aula.

A professora logo começou a ver os trabalhos. Quando chegou a vez de Carlinhos, ela perguntou:

— O que você tem aí nessa caixa?

— Uma coisa muito importante, ele disse.

— Deixe-nos ver, disse a professora.

Ele abriu a caixa e todos se espantaram! Uns acharam bonito, outros nem tanto. Carlinhos contou que o nome do brinquedo era “O segredo da Terra”. A turma toda aplaudiu.

A professora comentou, feliz: 

— Que coisa mais interessante!

Passado algum tempo, a caixa do Carlinhos foi para o museu de eco-ciências da escola, com um cartaz que dizia:

Aqui está a obra de Carlinhos, um futuro cientista e protetor da natureza.

Desde então, ele passou a ser o garoto mais feliz e importante da escola, graças às suas ideias diferentes!

 

Mistérios nem sempre são Solucionados - Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 




Mistérios nem sempre são Solucionados

Silvia Maria Villac Vicente de Carvalho

 

Mr. Burman, o típico escocês, fumava cachimbo na aula com uma classe única e todas as mulheres – a maioria na turma de literatura inglesa – tinha uma queda por ele. Ou seja, era disputadíssimo!

Denise, no caso, uma professora de compreensão em inglês, era particularmente interessada e estava sempre tentando dar umas investidas para cima dele, jogando seu charme e sorriso cativante, mas ele se mantinha distante e se fazia de desentendido, porque corria solto entre o corpo docente que ela não era flor que se cheirasse.

Mr. Burman, como era chamado por todos, independente de seus dotes físicos, era um professor excelente e muito querido, porém extremamente reservado. E havia a história da tal aliança na mão esquerda que intrigava a todos. Seria uma maneira dele tentar brecar as investidas? Ou seria ele viúvo e ainda apaixonado por sua mulher? Era um mistério que os alunos do curso de letras queriam desvendar. O que será que havia por detrás daquele homem de barba cerrada e olhos azuis-celestes?

Ana Luiza, aluna do último semestre, era uma pessoa que, apesar de não gostar de se socializar e apreciar o isolamento, parecia ser a única que mantinha um pouco de contato com o escocês. Porém, era um túmulo e não se arrancava uma palavra daquela boca. Quando não estava em aula, passava a maioria do tempo no laboratório.  Uma vez ou outra, os dois eram vistos juntos na biblioteca, mas nunca em atitude suspeita.

Em uma manhã de setembro, logo após o feriado da independência, Mr. Burman não apareceu para dar aula e a classe ficou em polvorosa, já que era a primeira vez que isso acontecia.  Os alunos nem aproveitaram a folga porque ficaram preocupados com a ausência do querido professor.

Passou-se uma semana, muito se falou e se especulou, mas nada de concreto se apurou. O fato é que ele retornou para a faculdade com um ar mais jovial, bronzeado e relaxado. Apesar dos alunos estarem com vários pontos de interrogação no rosto, ninguém ousou perguntar nada e, após a aula, ele saiu da classe do mesmo modo que entrou – sem dar qualquer deixa do que tinha ocorrido.

Lembro que era uma sexta-feira e que havíamos combinado um almoço no dia seguinte com um casal de amigos em um restaurante francês tradicional, no Largo do Arouche.

Quando chegamos ao La Casserole, o manobrista foi logo se desculpando pelo barulho, pois havia uma mesa grande que estava comemorando um casamento. Meu marido ficou aguardando o ticket do carro e o Maître me fez entrar.

Assim que adentrei o recinto, senti aquele cheiro de fumo de cachimbo familiar e, imediatamente, me deparei com meu professor. Por um segundo houve aquele momento constrangedor, quebrado por uma mulher morena, bonita, também bronzeada, na faixa de seus 45 anos.

─ “Muito prazer, eu sou a noiva!”, erguendo uma taça de champanhe com a mão esquerda.

─ “E essa é minha aluna na faculdade”, ele disse, sem mencionar meu nome porque acho que nem sabia como eu me chamava.

Ainda surpresa, enxergo, logo ao lado da cabeceira da mesa, Ana Luiza, a estudante tímida que costumava ficar no laboratório ou biblioteca. Ela veio me cumprimentar, explicando que era a filha da Laura, com quem Mr. Burman tinha acabado de se casar. Agora estava explicado o porquê deles se encontrarem ocasionalmente e nunca em atitude suspeita, eu pensei. No canto oposto, lá, no fundo, avisto mais um rosto familiar. É Denise, a professora charmosa, mas que hoje, ao invés daquele sorriso exuberante, vejo um sorriso amarelo, como que tentando disfarçar seu desapontamento.

Nisso, meu marido chega acompanhado de nossos amigos, dou um abraço e beijo no casal recém-casado, desejando-lhes felicidade e, em seguida, nós quatro nos dirigimos para nossa mesa. Não sem antes eu notar que havia uma nova aliança no dedo anelar do professor, dessa vez de ouro branco, igual à da noiva, que vi quando ela levantou a taça de champanhe.

Quanto à antiga, bem, essa é uma questão que permanecerá sem resposta. Mesmo porque, a quem interessa não é mesmo? Apenas concluo que, por estarem ambos bronzeados, tinham viajado em lua de mel antes da cerimônia no feriado prolongado de 7 de setembro.

 

 

OS AMIGOS - Antonia Marchesin Gonçalves

                            





OS AMIGOS

Antonia Marchesin Gonçalves

 

             Vera, querida filha, sai do quarto, pare de estudar e escrever, vem dar um mergulho na piscina, está muito calor, disse sua mãe. A mãe de Vera não se conformava com a filha sempre sozinha e, o pior, estava no último ano da faculdade de literatura e escrevia crônicas polemicas e boas para uma revista, ganhando bem, não assumia a autoria, usava pseudônimo, tamanha timidez. Só confiava no professor Eduardo, que ela desconfiava ser gay, ele usava aliança na mão esquerda, sem ser casado.

             A única amiga de Vera era a Sandra, o oposto total dela. A mãe Iolanda, experiente psicóloga, sabia quem era a verdadeira Sandra. Pela sua experiência, Iolanda sabe que a filha estava sendo usada pela amiga. Por ser muito estudiosa, sua filha despertava o interesse de sua amiga que, com a certeza, sem estudar muito, a ajudava nos textos de literatura, para poder passar e se formar. Cativante, era muito requisitada para as festas, ela fazia questão de participar e dizia que o social era importante para o sucesso na vida.

             Iolanda sabia também que, quando ela dormia em sua casa, à noite, ela mexia nas pastas de Vera e fotografava, depois mudava algumas frases, com isso disfarçava a cópia, ficava indignada. Várias vezes ela alertou a filha, que respondeu não se importar, eu escrevo tantas e até ganho, apesar de eu assinar com o pseudônimo de Nunes e com a supervisão do prof. Eduardo, estou muito bem e feliz.  Iolanda também se preocupava com da queda de sua filha pelo professor. Renomado, atraente, palestrante e premiado, tendo sua preferência pela música clássica, refinado, os dois se entendiam, mas aquela aliança de casado sem ser se sentia desconfortável. Nunca o vira com acompanhado, nada dizia sobre sua vida pessoal, isso a intrigava demais.

            


                   Para seu espanto, após a formatura, Vera contou à mãe que iria se casar com o Eduardo, ele a pedira em casamento. Mas ele não é casado? Perguntou Iolanda, não mãe, é viúvo, mas nunca quis tirar a aliança. A Sandra vai ser a minha madrinha. Feliz, a mãe providenciou o casamento perfeito, igreja, bufê, flores, a festa regada a vinho e champanhe. Vera não precisou se preocupar com nada. O casal foi morar no apartamento do professor, grande, espaçoso e bem decorado, que deixou a mãe mais tranquila. Meses se passaram, ela visitava sempre a filha, por ser única, sentia muito a sua falta.

             Sempre que ia, encontrava a Sandra, que dizia que, quando saía do escritório tarde, dormia lá, ficava menos estressante. No dia do aniversário de Vera, Iolanda resolveu fazer uma surpresa logo cedo, tinha a chave do apartamento, pois uma vez por semana levava a sua faxineira para fazer a faxina. Tudo em silêncio, entrou no quarto e, qual não foi a sua surpresa, encontrou os três dormindo juntos, nus e agarradinhos. Ela saiu do quarto e esperou que acordassem.

             Ao acordarem e viram a mãe resolveram se explicar. O Eduardo na realidade era totalmente sem interesse sexual por mulher ou homem, por isso usava a aliança, Sandra e ela eram amantes desde solteiras, apaixonadas desde a faculdade e para manter as aparências combinaram o casamento, assim não despertavam a atenção da mídia.

                   Com toda a sua experiência de psicóloga, foi difícil digerir essa situação. Abraçou a filha, deu o presente e desejou a todos que é isso que os faz felizes, assim seja.


QUE COISA! - Ledice Pereira

 


QUE COISA!

Ledice Pereira

 

Tenho percebido que, com o passar dos anos, o esquecimento bate cada vez mais e a gente começa a se utilizar da palavra “COISA” com mais frequência.

– Pega aquela COISA ali pra mim. Ou ainda:

– Vem cá. Vou te mostrar uma COISA.

E quando o neto chega:

– COISA linda da vovó!

E por aí vai.

O pior é quando a gente quer falar rapidamente de um objeto que não nos vem à cabeça. Outro dia me peguei falando para meu filho:

– Aquela COISIQUINHA tava ali. Ele ficou me olhando, como se eu tivesse falado um palavrão, hahaha.

E COISA vai, COISA vem, a gente vai usando essa palavrinha mágica que significa tanta COISA.

É que a cabeça da gente, com o tempo, vai ficando cheia de COISA. É muita COISA pra pensar. COISA que até Deus duvida.

E digo pro meu marido:

– Vamos até o Shopping comprar umas COISINHAS? E ele, que detesta ir ao shopping, me responde:

– Que tanta COISA você precisa comprar que precisa ir ao Shopping?

Concluo que realmente não é tanta COISA assim e desisto de ir longe.

Posso resolver todas as COISAS por aqui mesmo, afinal aqui perto tem muita COISA!

Além disso, vai sobrar tempo pra fazer tanta COISA!

Mas, sabe de uma COISA?

A COISA que eu mais quero nesse momento, é não fazer COISA nenhuma.

 

A ERA DA ALEGRIA - Deonísio da Silva * - TEXTO PARA LEITURA





ERA DA ALEGRIA

Deonísio da Silva *

 

Uma coisa era uma coisa.

 

O povo do livro se recolhia para ler e estudar, ouvir outros tipos de música. Havia livros, revistas, jornais, bibliotecas, livrarias e enfim parecem mais vívidas em minha memória as coisas escritas e os silêncios.

 

Todavia é preciso dar o devido desconto porque o barulho e os ágrafos nunca foram tão poderosos quanto o são hoje, pois os bárbaros voltaram e querem subjugar a todos, restando-nos o refúgio até que passe a tempestade.

 

Nas galerias e museus, havia quadros, pinturas e esculturas que falavam ou até soluçavam, dependendo do repertório da vida interior de cada pessoa.

 

Sim, vocês podem não acreditar, mas a vida interior das pessoas não era assim tão escassa e seu fogo era atiçado pelo que viam, ouviam, liam e contemplavam, recolhidas, sós ou agrupadas em teatros, cinemas, salas de música, igrejas, templos etc. Ou por outros ventos, como passeios, excursões, viagens, férias, fins de semana. E sobretudo na vida escolar ou universitária.

 

Outra coisa era outra coisa.

 

Na hora de outras alegrias, como a da dança acompanhada de canções, talvez aparecessem pernas e calcinhas, mas este não era o propósito.

 

Imperava o gosto por outras músicas, que eram ouvidas enquanto o corpo falava de outros modos e sem o controle ou orientação de nenhum "personal music" ou "personal dance". Você não estava treinando para depois se exibir e, sim, para divertir-se. Suar, você suava, como no trabalho para ganhar e manter a vida.

 

Cada pessoa se mexia ou se sacudia como melhor lhe aprouvesse, com naturalidade.

 

Seios e bumbuns estavam guardados em lugares que lhes garantiam que a porta somente seria aberta a quem as mulheres escolhessem ou acolhessem, caso escolhidas.

 

Aves, tais como pintos ou pintainhos, rolas ou outros pássaros, que não fossem do galinheiro ou da campina, estavam guardados e protegidos em cuecas onde poderiam crescer e viver viçosos, sem o escândalo e sem o exagero de calças muito apertadas.

 

Não era de bom tom designar a mulher ou partes destacadas de seu corpo por palavras semelhantes às dirigidas aos bichos de terreiros e pastos (galinha, vaca) ou dos banhados (perereca). Não! As comparações vinham com certas flores do jardim ou frutas do pomar.

 

Afinal, no arquétipo dos mitos, Adão, mesmo tentado por cobra, mas não por perereca, comera uma fruta: a maçã oferecida, não tomada das mãos e posse de Eva, que a recebera por doação indevida da serpente, que a roubara de um pomar que não era dos três. O dono era Deus.

 

Ainda assim, Adão e Eva tinham buscado outros sabores, cores e odores do saber, sem excluir o sexo, naturalmente, que, embora, incluído, não é eterno como o saber.

 

A aproximação podia ser visual, olfativa, tátil ou por outra química. E talvez por outros propósitos naturais, alguns inconscientes, mas nenhum ofensivo à mulher, que, claro, sempre teve atrações em seu parquinho, com entrada grátis a quem ELA escolhia, pois a entrada deveria ser concedida por amor ou algum sentimento assemelhado, tudo mediado por outras afinidades mais abrangentes, como as nossas inevitáveis transcendências.

 

O homem, feito do pó da terra, ao pó voltará, mas o Espírito sempre vai soprar sobre ele neste breve intervalo entre o berço e o túmulo. O mistério é se haverá vida depois da morte, mas já há bilhões de provas de morte depois da vida, sobejamente documentadas.

 

Nesses tempos dos verdes anos de nossa idade, nossa força e nosso vigor, tomava-se cuidado para evitar a vulgaridade. E o mimeógrafo ficava na secretaria das escolas, não no meio das pernas.

 

As orientações sexuais escolhidas não eram proclamadas. Diziam respeito à vida privada de cada qual, outro território sagrado, não proibido à bisbilhotagem, mas era recomendado respeitar a vida alheia.

 

Era imperdoável apenas o oitavo pecado capital, que, aliás, nem tinha sido previsto, de tão abominável por prejudicar o próximo, não o pecador. Os outros pecados capitais prejudicam apenas a quem os comete, de que são exemplos sobretudo a inveja, a avareza e a gula. O invejoso perde muito tempo no afã inútil de impedir o êxito do próximo. O avarento comporta-se como se fosse néscio e desconhecesse que, se "time is money", "money is not time": mesmo de posse de muito dinheiro, este lhe permitirá viver sem trabalhar, mas não lhe vai acrescentar nenhum minuto de vida.

 

Quem lê não o faz apenas por prazer. Com quem escreve dá-se algo semelhante. Todos lemos ou escrevemos por outros motivos, alguns dos quais permanecem ocultos para uns e outros.

 

Resta-nos proclamar que, se ouvir é essencial para falar, ler é igualmente indispensável a escrever.

 

Neste dia de Pentecostes e do Defensor Público, lembro por fim que escritores têm também este papel iluminador: defender o recolhimento e o convívio social, que, diferentemente do que podem pensar os vulgos, não se opõem.

 

A boca fala do que é abundante no coração. Em latim, "ex abundantia cordis os loquitur". E o Espírito sopra onde e sobre quem quer, sem se preocupar com aqueles que o ouvem ou leem, que estes são livres para escolher.

 

Lalá, a calopsita, sempre cantou até partir. Foi meu modelo para muitas coisas, incluindo a alegria de viver. Sabia também a hora de recolher-se a seus penates.

 

* DEONÍSIO DA SILVA é professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina.

 


A MULHER DO ANACLETO - LIMA BARRETO - TEXTO PARA LEITURA

 




A MULHER DO ANACLETO

LIMA BARRETO

 

Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição.

Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes.

Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.

No fim de dous ou três anos de matrimônio, Anacleto começou a desandar furiosamente. Além de se entregar à bebida,  deu-se também ao jogo.

A mulher muito naturalmente começou a censurá-lo.

A princípio, ele ouvia as observações da cara metade com resignação; mas, em breve, enfureceu-se com elas e deu em maltratar fisicamente a pobre rapariga.

Ela estava no seu papel, ele, porém, é que não estava no dele.

Motivos secretos e muito íntimos, talvez explicassem a sua transformação; a mulher, porém, é que não queria entrar em indagações psicológicas e reclamava. As respostas a estas acabaram por pancadaria grossa. Suportou-a durante algum tempo. Um dia, porém, não esteve mais pelos autos e abandonou o lar precário. Foi para a casa de um parente e de uma amiga, mas, não suportando a posição inferior de agregada, deixou-se cair na mais relaxada vagabundagem de mulher que se pode imaginar.

Era uma verdadeira "catraia" que perambulava suja e rota pelas praças mais reles deste Rio de Janeiro.

Quando se falava a Anacleto sobre a sorte da mulher, ele se enfurecia doidamente: — Deixe essa vagabunda morrer por aí! Qual minha mulher, qual nada! E dizia cousas piores e injuriosas que não se podem pôr aqui.

Veio a mulher a morrer, na praça pública; e eu que suspeitei, pelas notícias dos jornais, fosse ela, apressei-me em recomendar a Anacleto que fosse reconhecer o cadáver. Ele gritou comigo: — Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco! Não insisti, mas tudo me dizia que era a mulher do Anacleto que estava como um cadáver desconhecido no necrotério.

Passam-se anos, o meu amigo Anacleto perde o emprego, devido à desordem de sua vida. Ao fim de algum tempo, graças à interferência de velhas amizades, arranja um outro, num Estado do Norte.

Ao fim de um ano ou dous, recebo uma carta dele, pedindo-me arranjar na polícia certidão de que sua mulher havia morrido na via pública e fora enterrada pelas autoridades públicas, visto ter ele casamento contratado com uma viúva que tinha " alguma cousa", e precisar também provar o seu estado de viuvez.

Dei todos os passos para tal, mas era completamente impossível. Ele não quisera reconhecer o cadáver de sua desgraçada mulher e para todos os efeitos continuava a ser casado.

E foi assim que a esposa do Anacleto vingou-se postumamente. Não se casou rico, como não se casará nunca mais.

 

 Saiba sobre esse autor:

https://youtu.be/O7tA6_gtoQ0?si=e5mx0KOR-x3E30EM


VOZES DO PERSONAGEM - TEXTO PARA LEITURA

 


Há momento de sua trama em que 
a voz do seu personagem 
precisa ser descrita:









Temos certeza de que há outros tantos adjetivos 
que podem descrever vozes.
Se você conhece outras descrições, 
comente este post.




O ANTES E O DEPOIS - Suzana da Cunha Lima

 


O ANTES E O DEPOIS 

Suzana da Cunha Lima


Lúcia estava nas nuvens. Acabava de se graduar como Engenheira de Projetos e sentia-se como se o mundo fosse seu. E foi na USP! Gabava-se.

Seu projeto de vida caminhava conforme planejado e logo ela conseguiu um bom emprego. Com muita dedicação ao trabalho, alguns meses depois, até mesmo o amor havia surgido em sua vida, após tantas cabeçadas que havia dado.

Apaixonou-se por Júlio, seu chefe direto, totalmente encantado com aquela mineirinha esperta de olhos grandes e vivazes.

Fizeram antes um pacto. De só encomendarem filhos quando ela estivesse com vida profissional já firmada.  Mas nem sempre as coisas acontecem como queremos. Lúcia ficou grávida antes do planejado e tiveram seu bebê. Ainda estava em licença maternidade quanto recebeu uma boa proposta de emprego. Ia até ganhar mais do que o marido!

Júlio não se conformou: não queria que ela aceitasse, queria que ficasse em casa ou voltasse para seu antigo lugar, onde era seu chefe, debaixo de seu olhar ciumento. Quando a ameaçou de se separar e ficar com o filho, entornou de vez o caldo.

Lúcia ficou atarantada e sem saber direito o que fazer.  Mas ficar com Júlio não queria mais.  Logo que ele saiu, arrumou umas roupas numa sacola, pegou sua criança, foi ao banco, retirou todo o dinheiro e fechou a conta.

Estava irritadíssima. Entrou no carro disposta a tudo: ia para a casa da mãe e depois pensaria melhor. Com os olhos marejados de raiva, acabou avançando num sinal e foi logo atingida por um caminhão que nem sequer parou para verificar os estragos.

O acidente foi muito sério e perigoso.  Juntou gente querendo ajudar. Ligaram para a polícia e ambulância e logo perceberam a dificuldade de se retirar quem estava lá dentro. E ouviam o choro desesperado de uma criança, com certeza assustada e talvez muito machucada, mas as portas emperradas dificultavam muito o resgate.

Previa-se um incêndio, pelo combustível derramado no chão.  Um senhor idoso que depois se identificou como Gregório, tentava desesperadamente entrar no carro. Cenas de puro desespero.

O jovem Bento, que por ali passava, notou algo anormal naquela esquina. Parou seu carro perto do carro todo retorcido e logo percebeu o perigo iminente que se aproximava. Combustível quente no chão e portas emperradas. O idoso não estava dando conta de abri-las.

Bento pegou uma ferramenta no seu carro e quebrou as janelas, porém as portas permaneciam fechadas. Viu a criança chorando e, quase sem pensar, se esgueirou pela janela e conseguiu, com muito custo, retirá-la de sua cadeirinha.  Gregório queria também entrar, mas Bento lhe entregou a criança e ordenou. Corre daqui, vai explodir!

Mas ao sair pela janela estilhaçada, notou um leve movimento de mão na mulher que estava no banco dianteiro, debruçada no volante e que nem mesmo percebera no afã de salvar a criança.

— Tem uma mulher aqui, gritou, tentando puxá-la para fora pela janela por onde entrara.  Ela está viva!

— Cai fora! Alertou Gregório, ofegante, já longe do perigo, com o menino nos braços – Isso tudo vai explodir agora.

E realmente explodiu.

E lembrando dessa cena macabra anos depois, ao passar claudicante por aquela fatídica esquina, Bento não conteve as lágrimas.  Ainda não se acostumara com sua perna mecânica, herança daquela tarde de heroísmo e lamentações. Seus projetos de vida tinham virado pó. Futebol, esportes radicais, escaladas, dançar tango, levar uma mulher nos braços. Nada disso seria possível para Bento. 

Salvara uma vida, verdade, e uma vida é uma vida.  Mas saber depois da história toda, da crise de histerismo de Lúcia e sua irresponsabilidade ao guiar desvairada pelo trânsito de São Paulo, tinha o dom de ressuscitar o ódio que sentira ao olhar para o lugar vazio no lençol quando lhe amputaram a perna.

A única satisfação que sentia era por salvar a vida da criança, Daniel, agora um menino forte, de quatro anos.

Até mesmo Gregório tinha ido embora.  Seu coração não aguentara o pavor de ver o carro explodir, com sua filha dentro.  Não percebera que Bento a tinha salvo. E mais ainda, que por conta de seu heroísmo, não livrara a perna a tempo daquele automóvel em chamas.  Até achou que ele também explodira junto.

Mas Gregório não tinha perdas a lamentar. Sua filha e seu neto haviam se salvado.

Bento, no entanto, que nem conhecia a família e tinha um futuro promissor, acabou pagando uma conta que não era sua e não havia vida suficiente pela frente que lhe compensasse tamanha perda.