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ISES DE A. ABRAHAMSOHN - VÁRIAS HISTÓRIAS



RECORDANDO ANTIGOS TEXTOS


ISES DE A. ABRAHAMSOHN





A POÇÃO DA BRUXA GAMELA



Gamela enfim terminara  o curso de pós-graduação em bruxarias especiais.  A sua tese tinha merecido a nota mais alta da banca examinadora. Aquelas bruxas retorcidas com séculos de atividade ficaram  boquiabertas.  Além de ter produzido  uma  nova  fórmula mágica,  Gamela  pôde demonstrar ao vivo o seu efeito espetacular.

A bem dizer, Gamela também não era das mais novas.  Nascera há cerca de 150 anos na República Veneziana, antes da unificação da Itália, em uma família  tradicional  de  bruxas ,  “Streghe” como as chamam por lá.  Herdara o espelho mágico da família que  datava  do século  VIII.  Era um espelho de bronze  polido em suas duas faces  e  nele Gamela podia escolher como queria se ver: na sua idade real,  com a face escalavrada   ou  na idade que escolhesse. Infelizmente o reflexo  jovem  era fugaz, só durava mesmo alguns segundos.

O seu árduo trabalho  de quatro anos  nos laboratórios  da  Faculdade de Bruxarias e Sortilégios  fora enfim  recompensado.  Conseguira  uma poção de efeito rejuvenescedor  duradouro.  Uma colherinha engolida da poção  e  mais  algumas palavras  encantadas, pronto,  o efeito era imediato.  As palavras, a bem da verdade, eram apenas para impressionar  os  ingênuos.  Uma  espécie de efeito placebo, como aprendera nas aulas de sortilégios  especiais.

A banca  julgadora pôde conferir  os efeitos  da poção ali mesmo na sala de teses. Após descrever  o seu trabalho,  Gamela ingeriu a poção, pronunciou as tais palavras e, súbito, a face enrugada se alisou, o corpo encurvado endireitou e em vez da velha vassoura de transporte, um lindo par de asas  brotou  de suas costas.  Mais ainda, vestindo o corpo jovem e perfeito, surgira uma roupa super transada, na ultima moda da revista “Witches Now”. A única marca de seu antigo rosto, herança das Streghe   venezianas  eram as  pequenas  orelhas pontiagudas.


Após patentear  e vender o seu filtro mágico , Gamela se tornou uma bruxa rica e famosa no circuito das bruxarias.








IMIGRANTES


Aisha  abraçou Yasmine   enquanto  o avião  chacoalhava ao passar pelas nuvens baixas carregadas de chuva. A menina chorava baixinho na completa escuridão.  Relâmpagos que pareciam mísseis  estouravam próximo   à  fuselagem. Aisha  respirava aliviada ao ouvir o trovão. Desta vez não era um míssil! O avião era um velho monomotor Antonov  de 1981 de seis lugares que voava  a  cerca de  1000 pés.  Tinha as luzes apagadas ou seria  alvo fácil para qualquer atirador  que  estivesse alerta. Ao lado de  Aisha estava  seu marido, Farid,  segurando  Samir o filho mais novo. Este, exausto de tanto chorar, adormecera.

 Laila, grávida  de cinco meses  ocupava  o banco traseiro. Laila era mulher de Naim, o piloto. Laila  tentava enxotar  do cérebro  as lembranças  das últimas semanas em Aleppo.  Chegar até a Turquia era a única chance de escaparem.  Há um mês ainda tinham esperança que o seu bairro seria poupado.  Mas  os bombardeios foram chegando cada vez mais perto. Há duas semanas, além da destruição, o reservatório de água  fora atingido. A cada dia, achar água potável tornara-se  um  esforço insano  e arriscado ao caminharem pelas ruas cheias de entulho.  Há uma semana as outras casas do mesmo quarteirão viraram escombros restando apenas a sua e a vizinha  onde moravam Aisha e a família.  Há um mês, seu marido, Naim,  havia sido contatado  por um dos grupos resistentes aliado dos curdos .  Laila entreteve a  ideia  de poder escapar para  a Turquia. Mas os combatentes  foram irredutíveis, apenas  Naim poderia  acompanhá-los.  

Laila sabia que Naim  tinha um plano alternativo de fuga. Na parte mais afastada  do aeroporto parcialmente destruído, Naim encontrara num hangar meio destroçado , um  velho monomotor  abandonado , provavelmente  de algum russo  que não lhe vira mais serventia, nem para sucata.  Esses velhos urubus eram bastante fortes  e Naim  sabia que se conseguisse restaurar o motor, o Antonov poderia voar os  200 km até Osmaniye. Mas Naim era piloto  e  a mecânica que sabia não era suficiente.  Lembrou-se de Farid , seu vizinho cristão.  Este tampouco entendia  de aviões mas era excelente mecânico.

E assim  Naim, devoto muçulmano e Farid, trabalharam durante três semanas no velho avião.  O motor estava em péssimo estado;  encontrar peças  era o maior problema.  Farid era de fato um bom mecânico  e conseguiu adaptar peças de carros e mais algumas que achou  nos escombros dos hangares vizinhos. Finalmente  conseguiu  fazer o motor funcionar e a hélice girar. Tinham que trabalhar  com cuidado para não chamar atenção  e mesmo andar pelas ruas era perigoso.  A dificuldade seguinte foi arrumar combustível. 

A única forma era o câmbio negro ou roubar.  Conseguiram alguns galões a peso de ouro. Testes para verificar se o Antonov voaria, não houve.  E mais, teriam que voar à noite com as luzes apagadas.

Ficaram à espera da sexta-feira, talvez houvesse menos ataques;  a estação de rádio turca anunciava tempo instável, ruim para voar mas melhor para escapar .  Traziam consigo o mínimo: documentos, dinheiro, alguma comida e  água. Tudo o mais  ficou para trás. Com roupas de lã e casacos grossos as crianças pareciam  pequenas trouxas.

Laila  olhou pela janela  suja. Via algumas luzes esparsas embaixo.  A viagem, pelos cálculos, duraria cerca de 2 horas. O velho motor  não dava mais que  100 km/hora. Já voavam há cerca de hora e meia.  Daqui a pouco cruzariam a fronteira.  O cuidado agora era não serem abatidos pelos turcos. Laila ouviu o marido falando ao rádio com a torre.  Portanto já estavam sobrevoando solo turco. Laila  rezava nas contas de seu terço enquanto Aisha murmurava suas preces, ambas para o mesmo Deus. Ambas sabiam dos perigos da aterrissagem.  Finalmente Naim escutou as ordens da torre. Acendeu as luzes e  após mais quinze minutos  viu as luzes da pista e recebeu  a permissão de pouso.  O velho urubu  aterrissou  tal  qual  elegante e destemida águia. 

Ao saírem do avião, Laila  e  Aisha beijaram o chão.  Tinham conseguido escapar.  O filho de Laila nasceria num país sem guerra. Yasmine e Samir  cresceriam  num país  livre.  

As duas famílias tinham alguns parentes no Brasil.

 — Como seria esse país ?  Alguma coisa tinham visto pela internet.

Mulheres quase peladas nas praias ...

—Será que todas andavam assim?

— Nenhuma delas coberta com burka ou abaya, sequer com lenço na cabeça!

Futebol também tinham visto, os maridos gostavam, tinha um tal Pelé, este já devia estar velho e outro Neymar, com cabelo espetado, ganhava montes de dinheiro na Espanha !  

Também viram  cidades enormes, São Paulo, com gente de todas as cores andando apressadas e trânsito atravancado !  

Não tinham muito dinheiro.

— Como iremos  sobreviver?  Mas o Brasil era um novo mundo e os outros tinham conseguido.

Eles também conseguiriam prosperar nessa terra de imigrantes. 






ESCOLHAS


        Dali a uma semana seria o seu décimo primeiro aniversário.
          Giovanna, o que você quer de presente de aniversário? -  perguntou-lhe o pai.

        Ah, meu pai, eu queria muito que você me matriculasse na escolinha de futebol!

        O que é isso, menina? Disse-lhe o pai, num tom de voz irritado. Já conversamos sobre este assunto. De jeito nenhum! Isso é coisa de menino!

         Mas pai, existem tantos times de futebol feminino... Veja os times nos Estados Unidos!

        Minha filha, aqui é o Brasil, não estamos lá. Mas, eu vou pensar no seu caso. Afinal, você sempre se deu bem no que insistiu fazer. - Argumentou o pai, finalizando a conversa.

        Giovanna ficou contrariada, mas as últimas palavras do pai lhe deram alguma esperança.

Sempre foi assim. - pensou ela - Desde que me lembro por gente. Eu adoro azul e detesto cor-de-rosa. Minha mãe queria tranças e eu adoro cabelo curto! Tão mais prático! Pedi uma bicicleta de presente e ganhei duas bonecas. Adoro ciências, mas em vez da oficina de robótica me matricularam na aula de balé, justo no mesmo horário. Eu até gosto um pouquinho do balé, porque afinal para jogar futebol é preciso agilidade. Mas eu já consegui muita coisa por mim mesma. Consegui a bicicleta como presente da madrinha e o skate ganhei do primo Júlio. Eles sim me entendem! Afinal, eu quero mesmo é que me deixem escolher o que gosto de fazer, e meu pai vive implicando comigo, sempre dizendo que isso é coisa de menino.   Eu amo futebol e quero ver se dou jeito para jogar de verdade. Meu amigo Vítor diz que eu sei fazer bem as embaixadas. Foi o que ele me disse ainda outro dia – “Agora você precisa aprender a driblar e chutar melhor”. Preciso bolar um plano para convencer o papai.

“Já sei” - pensou ela - Todos dizem que futebol bem jogado parece balé. Vou pedir ao Vitor e à Ana para me filmarem no celular e vou mandar para ele. Pelo e-mail, claro, porque no face ele vai implicar. Vou me vestir com o collant do balé. Aí eu começo fazendo aqueles passos chatíssimos de sempre do balé e quando o dad começar se entusiasmar com o que ele pensa serem os meus progressos, aparece em cena uma bola azul de futebol e eu começo a fazer as minhas embaixadas e malabarismos!

Assim pensado, assim foi feito. Após alguns treinos e muita paciência do Vítor e da amiga Ana, ficou pronta a filmagem. Giovanna conseguiu enviar o filminho intitulado “ Balé Moderno”, uns dois dias antes do aniversário.

Para “adoçar” o pedido, ainda escreveu no e-mail: “Para o melhor pai do mundo, uma surpresa. De uma são-paulina de coração”. Não que ela realmente o fosse, era mais corintiana, mas o pai era são-paulino roxo, então não custava bajular um pouco.

No dia seguinte cruzou duas vezes com o pai, mas este não falou nada. Na véspera do aniversário se alternava entre alguma esperança e absoluto desânimo. “E se ele se zangar? E se não tiver aberto a caixa de e-mail?

Finalmente, era a manhã do seu aniversário. O pai havia saído bem cedo para pegar um voo para o Rio de Janeiro. Giovanna encontrou-o ao descer para o café, uma grande caixa da loja “Ballerina” com um também enorme laço azul. “Para minha filha bailarina, feliz aniversário de seu pai”- dizia o cartão.

Pronto - pensou ela - Acabou! Ele insiste na história do balé! Eu sabia! E já com os olhos marejados abriu a caixa. Após camadas de papel de seda, a surpresa! Um par de belíssimas chuteiras femininas azuis – ele lembrara a sua cor favorita – e no envelope a matrícula na escola de futebol.

Junto, um bilhete! – Minha querida, se você não virar uma boa jogadora, certamente terá futuro como diretora de cinema!





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