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O TEMPO SEMPRE PASSA, NÓS COM ELE - Oswaldo U. Lopes





O TEMPO SEMPRE PASSA, NÓS COM ELE
Oswaldo U. Lopes



        Aconteceu num plantão do PS, banal não é? No HC as coisas acontecem é num plantão. Nas Enfermarias, no dia a dia é raro que suceda algo marcante. Quero dizer, coisas e fatos são registrados, mas você vai passar anos tentando lembrar-se de um momento notável.

        No plantão do PS o memorável mora ao lado, vira e mexe ele atravessa a porta. De preferência quando a noite avança e o sono esta tão convidativo, como convidativa esta a maca do corredor, refúgio de acesso fácil.

        Bem noite alta, entra a moça vomitando e chorando. Caso comum, não chamo de banal, pra não parecer que somos absolutamente desumanos, somos apenas médicos que engrossamos a casca de tanto ver e acompanhar o sofrimento alheio.

        Como dizia, caso comum, gravidez não desejada, soda cáustica ingerida, queimação forte na boca do estomago, vômitos.

        Doutor, me ajude! Posso ajudar, aborto não podemos fazer ainda, talvez no futuro, do jeito que a coisa vai, acho difícil.

        Vamos passar uma sonda para alimentação, interná-la e encaminhar para uma Enfermaria de Cirurgia. Cheguei a acompanhá-la por um tempo, depois perdi de vista.

        Vinte anos são passados. Lembro, vagamente, da situação dela que está sentada a minha frente.

        Sobreviveu, teve a criança, uma menina, hoje uma moça que, quem diria, estuda Medicina aqui mesmo na FMUSP.

        Não casou, toca a vida, a família aceitou a gravidez e o que veio junto. Sentiu-se amparada. A assombração do estreitamento entre o esôfago e o estomago, causada pela soda, a terrível esofagite cáustica ficou na lembrança.

        Um enxerto de intestino grosso (colón transverso) no local do estreitamento acertou a situação. Uma cirurgia boa na intenção, mas eivada de intercorrências, correra na maior lisura. Alimentava-se bem e sem sofrimentos.

        O suposto pai afastara-se e não assumira. Ela também não o queria, não era o par certo para formar família.

        Não achou o par certo nem par incerto. Tocou em frente, criara a menina e isso lhe bastava. Bastava?

        Certo que não, à noite, às vezes ainda chorava baixinho. A solidão estava tão perto que era possível tocá-la e nela passar a mão.

        Entre uma coisa e outra, a menina e os encargos, a vida levara ela, ou como gostava de cantarolar “vida leva eu”.

        Ah! Lembrei o nome. Chamava-se e ainda se chama Isabel, a filha Eleonora, Dra. Eleonora, logo, logo...

Um caso de infidelidade - Maria Amelia Favale



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Um caso de infidelidade
Maria Amelia Favale



Aconteceu mesmo, e foi com o vizinho Francisco que morava em frente à minha casa. Pela janela eu via a movimentação de sua residência  lá dentro. Ele quase nunca estava lá, sempre viajando a serviço de sua empresa. E ela recebendo amigo.

Um dia vi a vizinha recebendo alguém, que eu não lembro de ter visto antes. Anita recebeu o belo jovem rapaz com um beijo. Isto não parecia ser normal, mas não se deve interferir na vida dos outros. Apesar de tudo, desse dia em diante fiquei ainda mais atenta. Era notório que algo novo estava acontecendo naquela casa.

Relembrando uma conversa com ela, quando disse que seu marido era ciumento, passei de curiosa à preocupada com as constantes visitas furtivas do jovem amante.

Dias depois vi o carro da polícia na porta da Anita. Soube que foi encontrada morta na cama. Muito comentado foi esse fato horrível. Porém, alguém confirmou que era natural que isto acontecesse.

As investigações foram realizadas, e o marido, maior suspeito nesses casos, estivera viajando e comprovava com as passagens aéreas e notas do hotel. Foi ele que encontrou o corpo na manhã que chegou de viagem.  O detetive não conseguia se desvencilhar da hipótese de que o marido era o assassino, pois tudo levava a crer que fosse ele, ainda mais depois que descobriram o tal amante, um rapazote com menos de vinte anos, um garoto de programa que ela sustentava com o pagamento de seus encontros.

Dez anos se passaram e até hoje não se identificou o criminoso.

Hoje, pela janela vi o Francisco recebendo a namorada, vejo-a chegar com maleta pequena e uniforme de aeromoça, por acaso a mesma companhia aérea que ele sustentou ter utilizado na época do crime, e até comprovou com as passagens.

Hoje sei de tudo! Com essa modernidade de ser virtual,  ele fez o check-in e o cheque-out do hotel, online. E naquele avião ele não entrou, para ir nem para voltar. O check-in também fez online. Quem embarcou em seu lugar foi o irmão da Gisele. Quem me garante é a própria Gisele, a aeromoça, minha grande amiga, que se orgulha de ter ajudado o amante a se livrar da esposa infiel. 



Primeira lembrança de infância - Vera Lambiasi




Nossa ex-aluna Vera Lambiasi, envia-nos uma gostosa crônica de sua primeira lembrança.


Primeira lembrança de infância
Vera Lambiasi


Tupã, rua Guaianazes, balcão de azulejos brancos da cozinha. Hoje chama-se ilha, mas antigamente era uma construçãozinha alta mesmo, com um armarinho no vão. Do chão éramos arremessados e sentados, para amarrar os sapatos, olhar um dente nascido, ou enfiar comida na goela. Mas neste dia, de 1964, serviu para minha mãe observar o pé direito da incauta motorista de triciclo. Havia um machucado que varava o dorso e alcançava a sola.

— Têêêê, traga o mercúrio cromo!
— Virgem Santíssima, isso vai arder Dona Yari.
— Quem mandou se meter com os moleques da rua?

Pois bem, não andávamos de tico-tico como todo mundo. O pé esquerdo ia no estribo traseiro do veículo e o direito impulsionava o chão para ganhar velocidade. Mãos firmes no guidão. A rua perpendicular era uma descida, e na esquina uma curva acentuada feita em perfeito equilíbrio.

Às vezes falhava, sorte não haver carro, carroça ou caminhão naquele instante.

A capotagem deve ter sido espetacular, mães exasperadas surgiram de toda a vizinhança. Algumas com aquele sentimento obscuro de “não é meu filho, graças a Deus”.

Sangue, suor e lágrimas era o filme da época, e meu acidente uma adaptação infantil da guerra que assolou a rua da minha infância. Protagonismo injusto para uma menina tão faceira.

Chamada do farmacêutico Victor Hugo, para dar mais drama. Curativo feito depois de muitos gritos de merthiolate, anti-tetânica vinda de Bauru. Triciclo no bicicleteiro para manutenção por um mês, de castigo. Nunca que voltava.

Enfim chegou, novinho, pintado, todo verdinho.

Pé recuperado, mas só tive permissão para brincar de pipoqueiro com ele.

Sabe quando levanta a roda da frente e roda os pedais fingindo fazer pipoca?

— Uma com vinagre, Dona Vera Lúcia, arrulhava mamãe.

Conversa x Desconversa - José Vicente J. Camargo


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Conversa  x Desconversa
José Vicente J. Camargo



Oh Compadre! Você que é pessoa viajada, aproxima que quero te contar algo:

Estava ontem no bar do Luiz e ouvi uma conversa entre dois sujeitos de fora, arrogantes, que não consegui compreender tal a quantidade de palavras que fugiam do meu conhecimento. Me pus a indagar se não falavam portunhol, o idioma dos “hermanos” misturado com o nosso. Curioso em saber se não tramavam algo suspeito, de polícia – até que seria prazeroso pegá-los em flagra dado o ar presunçoso que tinham daqueles que comem sardinha e arrotam garoupa − puxei do bolso meu caderninho de anotações e disfarçadamente fui escrevendo o diálogo entre eles, que aqui está:

“Para mim a Matilde foi culpada, o provocou! A vi naquela noite saindo da estau e a segui porque bem sabes que tenho um apetite pela rapariga. Entrou na ovençal do Manuel e por uma das janelas aberta pude vê-lo dando um bíbulo e tanto de gargalho enquanto olhava Matilde. Em seguida fez um reunido e deu uma baita esputação. Depois, agarrando seu braço com força, apontou para o sable no brasão da família pendurado entre as estantes repletas de garrafas com o segredo familiar do qual ele tanto se orgulhava.

Mas então ele estava numa carraspana? É uma pena para quem veio de antepassados tão otimates. E depois, o que se passou?

Tentei me aproximar da janela para ver e ouvir melhor, mas, dado a chuva da tarde, escorreguei num lamaçal humifuso e, pra não cair, me agarrei numa lata de lixo que, não aguentando o peso, rolou rua abaixo. Com o barulho, Manuel, sem me ver na penumbra da noite, fechou a janela. Levantei, procurei uma nova brecha na janela e minutos depois deu-se o tiro”...

Justo nessa hora, continua o narrador, um deles atende o celular, paga a conta e ambos saem do bar me deixando com o final da estória a ver navios...

Aconselho que consultes um dicionário português para palavras em desuso e compreenderas o texto, responde o Compadre. Mas te adianto que não é portunhol e não há nada de comprobatório, já que não temos o final da cena. Caso encontres os dois sujeitos novamente no bar, tente puxar conversa e “joga verde pra colher maduro”, isto é: se não conhecem certa Matilde que recebeu uma esputação de um tal Manoel que estava numa carraspana danada no ovençal deste, etc, etc...

 Mas cuidado! Se te oferecerem um bíbulo, faça um renuído, desconversa e saia de mansinho, pois, pode ser que o “apetitoso” da Matilde foi quem deu o tiro e com certeza não vai querer testemunhas...





A enfermeira Antonieta - Ises A. Abrahamsohn




A enfermeira Antonieta  
Ises A. Abrahamsohn



Quando Armando conheceu Antonieta ela já fazia o turno da noite em um grande hospital. Trabalhava de segunda a sexta todas as noites e explicou ao namorado que assim ganhava bem mais. Já se acostumara desde que terminara o curso médio de enfermagem. O namoro acontecia aos sábados e domingos ficando à toa no apartamento de Armando ou às vezes indo ao cinema. Compartilhavam o gosto por música pop americana e por seriados de suspense. A moça gostava de cozinhar o que era mais uma razão para o entusiasmo de Armando. Sentado na cozinha se encantava ao vê-la de jeans, camiseta e avental preparando receitas de macarrão. Lembranças da comida de infância preparada pela avó italiana. Embevecido, repetia que ela se parecia com uma madona de Botticelli.

Um dia iremos à Itália, dizia, mostrando as reproduções num livro de arte. De fato, Antonieta com o cabelo loiro comprido trançado e rosto de pele alvíssima e perfeita poderia passar por uma jovem do norte da Itália. Tinha 30 anos, mas aparentava menos. Tudo nela era delicado e suave. Os gestos, a fala, o olhar, as roupas. Vestia-se de acordo, decotes discretos, cores delicadas. Na cama retribuía calidamente as carícias, sem iniciativas próprias ou sinais de ardente paixão. A Armando não importava a relativa falta entusiasmo, detestava mulheres agressivamente sensuais.

Após um ano, Armando propôs casamento. O ordenado como engenheiro de computação permitiria que ela deixasse de trabalhar à noite. A moça foi peremptória. Não deixaria o trabalho noturno bem pago. Ademais, sempre fora uma pessoa do tipo noturno, detestava acordar cedo e ter que, sonolenta, enfrentar o trabalho. Por fim, Armando cedeu. Viam-se quando ele chegava do trabalho e ela se preparava para sair, e de manhã, quando ela chegava e ele estava de saída. Telefonavam-se algumas vezes durante a tarde ou antes da meia noite. Amavam-se nos fins de semana. Nada muito diferente dos tempos de namoro.

Armando era feliz. Antes demasiado sério e sisudo, ficou mais alegre, e passou a se relacionar melhor com os colegas de trabalho, a maioria mais jovem. Um deles o convidou para a despedida de solteiro do Carlos naquela sexta-feira. Armando tentou se esquivar com várias desculpas mas acabou cedendo. Não gostava nada dessas despedidas, sabia bem como eram. Muita bebida, o ambiente carregado de sexo e garotas insinuantes meio despidas. Mas Carlos era o chefe do setor. Pegaria mal não aparecer. Ainda deu uma ligada para Antonieta sem entrar em detalhes avisando que iria jantar com o pessoal do escritório.

A tal casa noturna era luxuosa. Armando sentou-se com alguns colegas a uma mesa afastada da pista elevada que funcionava como palco. Pediu um sanduíche e um gin tônica que pretendia alimentar com tônica durante o resto da noite. O pessoal mandou ver na bebida. O show iria começar e Armando queria aproveitar para cair fora. Foi se despedir do noivo. Este já bem alto não o deixou sair. Você não pode sair agora. Fique para o início do show . É imperdível.

Armando se viu empurrado para sentar na cadeira de pista ao lado do chefe. O ambiente estava quase às escuras. A música anunciava a primeira atração da noite. Sob um facho luz azul surgira no palco uma enorme concha branca.  E, desta, bem devagar ergueu-se aquela jovem, de pele de alabastro, esguia, rosto suave, completamente nua. Ficou ali de pé, imóvel, por talvez uns três minutos. Um dos braços destacava o seio perfeito enquanto a outra mão mal escondia o púbis sob uma mecha dos longos cabelos loiros.

Armando lançou um grito desesperado: Antonieta!  E desmaiou.

CASAMENTO NA SUÍÇA - Antonia Marchesin Gonçalves



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CASAMENTO NA SUÍÇA
Antonia Marchesin Gonçalves



                Quando meu marido se tornou executivo da multinacional Sara Lee, após a venda de nossa torrefação para eles, durante cinco anos fomos para a Suíça em função de reuniões anuais na cidade de Zug. Linda cidade como todas lá, com chalés pelos pequenos vilarejos em volta do enorme lago, que eu aproveitava para conhecer. Numa dessas viagens coincidiu de sermos convidados para o casamento da filha de amigos nossos na cidade de Basel, a 30 km da capital Zurick.

                O casamento na Catedral estava marcado ao meio dia, ao que começou pontualmente sem atraso da noiva. De carro saímos de Zug e chegamos em tempo, com tranquilidade. A igreja ficou grande por ter poucos convidados, em torno de 60 pessoas no máximo, que não aparentavam otimates. Após a cerimônia saímos da igreja e num cortejo a pé, mas não fomos para nenhum salão, fomos todos para um parque público que havia atrás da igreja. Os noivos seguiam na frente. Ao entramos no parque, tive uma grande surpresa ao ver duas barracas, tipo de feira livre, numa havia sanduíches embrulhados, e na outra, espumantes sendo servido por uma garçonete no gramado humifuso e muitos bíbulos presentes.

                Os noivos ficaram num canto recebendo as felicitações e presentes, muito deles eram envelopes com dinheiro, transeuntes passavam por nós e seguiam os seus caminhos sem pensar em jamais se meterem de bicões, os noivos nem precisaram usar o renuído, e em momento nenhum alguém fez o gesto de esputação. Após uma hora os noivos e familiares foram para a barcaça pública para atravessar o lago, onde estavam hospedados no stau, Nós fomos de carro alugado e nos instalamos num pequeno stau em frente ao lago, que na entrada havia um brasão todo em sable .

                À noite teve o jantar para os familiares para o qual fomos convidados. O ovençal estava bem provido. Dançamos a moda brasileira e ninguém chegou à carraspana. No dia seguinte pegamos estrada em direção à Itália para visitar meus parentes. Analisando os vilarejos suíços, lindos para fotografia, mas morar lá é outra coisa, as pessoas não me pareciam felizes, pois pelo que vivenciei todos eram muito comedidos, sempre preocupados o que os outros podiam pensar e o policiamento entre moradores grande, sem liberdade de ser, viver como quisessem. Isso foi confirmado, pois nas férias de verão em minha cidade Jesolo com 10 km de praia, os suíços soltavam a franga, com se diz na gíria, faziam tudo que não tinham coragem de faze em suas cidades.


Primeira vez - José Vicente J. Camargo



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Primeira vez
José Vicente J. Camargo 
  


Os flocos de neve batiam suaves nas vidraças do meu apartamento de quarto e cozinha no edifício reservado pela Universidade de Hannover - Norte da Alemanha - aos estudantes estrangeiros. Minha curiosidade de primeira viagem não me desgrudava da janela onde via os flocos de neve cobrindo a paisagem e tudo o que ela abraçava: pessoas, casas, ruas, calçadas, jardins, carros de um branco fofo refletindo a luz tênue do sol. Os transeuntes vestindo pesados casacos e sapatos de solas espessas, andavam cautelosos evitando possíveis quedas. Os carros acompanhavam essa cautela com velocidade reduzida e as crianças, com seus espíritos destemidos e empurrando trenós, sorriam prevendo as brincadeiras de esconde-esconde evitando uma bolada gelada na cara. Este cenário remexia minha mente recordando das tantas vezes que indaguei como seria a sensação de ver, tocar e brincar na neve. E agora ali estava, resolvido a sair à rua para pisar naquele bolo branco e curtir, pela primeira vez, todas essas sensações.

Era um sábado de manhã, férias de inverno, faltando uma semana para o Natal. Naquela tarde pretendia dar sequência à minha correspondência natalina, contando e descrevendo à família e aos amigos todas as novidades e sensações da “primeira vez” num mundo novo, agradecido pelo que o destino me estava presenteando.
O toque inesperado da campainha me desperta do devaneio. Tentando adivinhar quem poderia ser, abro a porta e me deparo numa surpresa total – jamais adivinharia com meu amigo americano Steve que conheci nos primeiros meses na Alemanha, fazendo o curso de alemão que recebi junto com a bolsa de estudos. Ao seu lado me apresenta sua irmã Mary, uma loirinha de lindos olhos azuis, corpo escultural que fez minha cabeça tomada pela neve se derreter com os raios de luz provenientes do seu sorriso gracioso. Passado o estupor do encontro, Steve diz:

Acabamos de chegar de Los Angeles! Viemos te buscar para passarmos o Natal e ano-novo esquiando. É meu presente à Mary que entrou na faculdade. Aluguei um carro lá para retirá-lo aqui. Vamos buscá-lo na locadora e de lá pegamos a autoestrada para as montanhas.

− Certo! Retruco eu. É que os poucos meses que vivo aqui me estão levando a pensar como os alemães que preparam meses para uma viagem como essa. Eles são inimigos do imprevisto, do não planejamento.

Com a cabeça novamente em reboliço −ainda bem que não assumi nenhum compromisso para as festas de fim de ano − amasso umas mudas de roupas das mais quentes na única mala que possuo, tranco porta e janelas e, sob o neviscar incessante, nos dirigimos a agência locadora onde um Ford americano nos esperava. Fico aliviado quando Steve, apesar de cansado, toma a direção do carrão, pois, dirigir em zig-zag na neve, seria para mim uma primeira vez, e poderia terminar mal.

Sentia uma ansiedade pelo “tudo novo” que estava acontecendo: nevasca, viagem às montanhas, esquiar em neve verdadeira e uma “pontinha” de felicidade pela companhia da Mary mesmo sem saber o final. Tomamos a autoestrada decidindo o rumo a tomar: Alpes alemães, franceses, suíços ou os ressortes menos comerciais da Áustria? Optamos pela Áustria dado a menor distância e aos preços mais acessíveis. Explico aos amigos que minha experiência com esqui se restringe a vê-los nas vitrines.

− Aprende-se rápido! Eu te ensino! Interrompe Mary. Minha ansiedade cede lugar a uma gostosa sensação de bem-estar...

Dia seguinte, com céu azul, sol brilhante e frio gelado, deixamos a loja de aluguel de esqui e apetrechos em direção ao ônibus que transporta os esquiadores até o pico da montanha próximo aos três mil metros de altura. Quando miro o pico de destino e o caminho a percorrer, gaguejo se não seria melhor eu ficar em baixo junto com a crianças da escolinha esquiando entre os personagens da Disney, mas Mary me interrompe:

− A neve aqui não está boa, está dura! Lá em cima é melhor! É neve fresca, fofa...

Com essas primeiras “dicas” sobre as condições da neve, subo no ônibus com aquele pensamento próprio para o momento: “Seja o que Deus quiser”!

A subida me pareceu bem pior que as “curvas da estrada de Santos” e, ao chegar, empurrado pra fora pelos afoitos esquiadores a bordo, me vejo no cume da montanha, de esqui no pé − que só consegui calçar com a ajuda do Stevens − mirando o precipício abaixo com inveja dos demais que como flechas se atiravam montanha abaixo desviando de árvores e pedras e em poucos minutos chegavam ao pé da pista. Steve e Mary se prontificaram a me ensinar as regras básicas, mas – vendo a vontade deles de deslizarem morro abaixo, recusei e disse que daria uma de autodidata e os encontraria no restaurante onde marcamos encontro.

De início tentei usar a imaginação dos movimentos vistos em reportagens esportivas ou imitar os esquiadores que por mim passavam, mas mediante tantas curvas e empecilhos – no caminho tinha uma pedra – de tantos tombos e malabarismos para recolocar os esquis que se soltavam e teimavam em escorregar sozinhos, decidi encerrar a aventura na metade do trajeto e carregar o par de esqui nas costas. No restaurante, Mary e Steve me receberam com cerveja para batizar a minha estreia.  Não contei todo o acontecido para não estragar a comemoração, mas enfatizei que dia seguinte, sem falta, faria minha matrícula na escolinha dos principiantes.

− Ah! Interrompe Mary, te farei companhia. Serei pela primeira vez professora de esqui! Depois de amanhã estará apto a retornar conosco ao pico da montanha.

E eu, pensei, serei pela primeira vez um aluno que levará tombos não só pelo enroscar das pernas e braços, mas sobretudo pela falta de atenção toda voltada aos trejeitos rebolantes da professorinha que, apesar do frio, me faz arder o peito.

Sensação que sinto pela primeira vez...

BRAGUINHA - Antonia Marchesin Gonçalves


                       
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BRAGUINHA
Antonia Marchesin Gonçalves


                Quando morei no bairro da Vila Madalena era muito diferente de hoje. Poucos prédios, muitos sobrados, inclusive o meu na Rua Purpurina, os moradores eram antigos na Vila, normalmente portugueses ou descendentes. Antes de casar morei em Pinheiros por muitos anos, meus pais tinham amigos na Vila e íamos a pé visitá-los, passávamos pelas grandes casas do Alto dos Pinheiros, em seguida a Vila Madalena. Os três bairros eram ligados.

                Casada e já com dois filhos, costumava fazer compras pela Vila sempre a pé, no pequeno comércio que lá existia. Certa vez à tarde, passeando pela Rua Wisard com minha filha Renata, na época com três aninhos, passei em frente a um bar, quando ouvi uma cantoria que vinha lá de dentro. Nesse momento saiu do bar um senhor que aparentava seus 45 anos, segurou meu braço e disse: Posso falar com a senhora? Surpresa, logo respondi que não. Mas, ele insistiu me convidando, entre e venha cantar junto.

                Obrigada,  respondi, estou com minha filha e sou casada. Ele novamente insistiu, quero te conhecer, sou o Braguinha. Desculpe, preciso ir. E, segui meu caminho. A minha ignorância sobre a música brasileira na época era grande, não tinha noção de quem se tratava. Meses depois, quando já havia esquecido aquele assunto, reconheci aquele senhor que havia me abordado, ele estava em um programa musical na televisão, cantava ele junto com outros sambistas.

                Imaginei o que teria mudado em minha vida se eu estivesse sem minha filha e aceitado o convite. Será que eu iria morar no Rio de Janeiro? Viraria boêmia ou talvez compositora? Ritmo para dançar, sempre tive, mas compor seria bem diferente. Talvez, fosse mais uma conquista de um caso eventual para um compositor boêmio.


Destino cruzado - Paulo A Abrahamsohn





Destino cruzado
Paulo A Abrahamsohn




Maria das Graças morava em uma pequena e tranquila cidade, com muitos jardins floridos e habitada por gente amável. Tinha um bom emprego na residência de D. Eulália. Sua casa era pequena, mas confortável, tinha um jardim na frente. Além de fogão e geladeira sua cozinha tinha um liquidificador e um micro-ondas, os quais sempre tinham sido seus grandes objetos de desejo.

Mas, por causa de um súbito sacolejo Maria das Graças acordou assustada. Que pena! Foi apenas um sonho. Ainda esfregando os olhos, espiou pela janela do ônibus e percebeu que o veículo estava percorrendo uma avenida de duas pistas, plantada no centro por coqueiros. Entre os coqueiros havia pequenos arbustos carregados com flores de diferentes cores. Maria das Graças sentiu-se muito confusa, não reconheceu o lugar. Viu as casas ao longo da avenida e de tempos em tempos um bar, uma padaria, pequenas lojas e até uma floricultura. Na praça da Igreja o ônibus diminuiu a velocidade e estacionou. O motorista gritou: vinte minutos para o bar e depois continuamos.

Maria das Graças levantou-se da poltrona e desceu do ônibus. Na calçada o motorista se espreguiçava e com o lenço secava o suor do rosto. Maria das Graças perguntou:

- Moço. Já passamos por Cachoeira de Santana? Acho que dormi e perdi meu destino.

- Não moça, disse o motorista. Este ônibus vai para Santo Egídio, não passa por Cachoeira, é outra linha. Não tem nada a ver. O que diz seu bilhete.

- Não sei moço, não sei ler.

- Seu bilhete é de Recife para Santo Egídio. Você comprou a passagem errada.

- Minha nossa! Respondeu Maria das Graças perplexa. Eu ia visitar minha mãezinha que não vejo há dez anos. Que lugar é esse? Como se chama?

- Olhe o que está escrito naquela placa: Seja bem-vindo. Você está em Santo Antônio da Felicidade.

Maria das Graças se lembrou da vida amargurada que levava na cidade grande, trabalhando sem descanso, indo para o serviço espremida em um ônibus quente e cheio de gente suada, sem amigas e sem namorado e pensou: Santo Antônio da Felicidade, por que não ficar aqui?  Vou já pegar minha trouxa que está no ônibus. Depois vou buscar minha mãezinha para morar comigo e vou tomar conta dela. Quem sabe Santo Antônio me arranja um marido. E aí vai ser uma felicidade completa.

Agonia no trânsito - Paulo A Abrahamsohn




Agonia no trânsito
Paulo A Abrahamsohn



Dr. Ângelo Fernandes, poderoso executivo de uma grande empresa multinacional saiu do prédio em que trabalha na Av. Berrini ao fim da tarde de um bonito, mas muito quente dia de verão, foi um dia exaustivo, com infinitas reuniões para definir e encaminhar uma série de problemas que ocorreram na empresa.

Tinha deixado seu automóvel na oficina para revisão e na calçada tomou seu telefone celular de última geração para chamar um táxi. Mas, mas antes que pudesse fazer isto sentiu que alguma coisa ocorria com seu corpo. Começou a suar e a sentir palpitações no peito. É um infarto! Concluiu.

Viu um táxi se aproximar e abanou os braços desesperado, torcendo para que estivesse desocupado. O automóvel parou e Dr. Ângelo entrou rapidamente.

- Para o hospital mais próximo, urgente, estou tendo um infarto.

- É o Hospital São Lucas na Avenida Conceição de Almeida. Já vou para lá.

No entanto, Dr. Ângelo foi ficando cada vez mais aflito.

- Mas, a esta velocidade com certeza irei morrer antes. É uma urgência motorista. Por favor acelere, vamos! Gritou Dr. Ângelo.

- Não puedo. O limite aca é de 40 km.
- Mas, não vê que estou tendo um enfarte. Pode correr, se for multado eu pago.

- Por que o senhor não retira seu paletó e afrouxa su gravata, disse o motorista. Liguei o ar condicionado e coloquei uma música suave no rádio. O senhor já va se sentir melhor.

- Não, nada disto, não vê que estou morrendo, gritou Dr. Ângelo. Por favor dispare seu carro.

- Muita calma, senhor. Já chegaremos ao hospital. Fique mas tranquilo.

- Como posso ficar tranquilo! Posso estar morto em alguns segundos! O senhor é médico para dizer que eu fique tranquilo?

- Sim, soi médico. Vengo de Cuba e trabalhei no Mais Médicos. Perdi o emprego quando terminou o programa. Vejo que seu rosto está bien corado, no demonstra sofrimento intenso y pelo seu tom de voz percebo que no está con dor precordial. O senhor está passando por uma Síndrome de pânico. Reste calmo e tudo isto irá passar lentamente. Não quer que leve o senhor para casa?

- Tem certeza disso? Perguntou Dr. Ângelo.

- Absoluta, senhor.

- Acho que estou me sentindo melhor.

- Para tirar suas dúvidas, quando estiver melhor marque uma consulta com su cardiologista para fazer um eletrocardiograma.

- Então vamos para casa. Eu lhe pagarei a corrida e a consulta.



BRUXA OU FADA - Antonia Marchesin Gonçalves



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BRUXA OU FADA
Antonia Marchesin Gonçalves



                Zanzara minha mãe autêntica inglesa nasceu na cidade de Bath a uma hora de Londres, como meus avós e eu. Minha cidade é famosa pelas águas termais desde sempre, que até com a conquista os romanos e seus imperadores passavam dias em suas águas curadoras e construíram ali colunas típicas de sua arquitetura da época, com mármore de Carrara e piscinas com pequenas cachoeiras existentes até hoje, sendo ponto turístico, eles sabiam aproveitar bem as benesses de suas conquistas. Bath continua sendo visitada até hoje pelos ingleses mais abastados para férias de cura, pois temos um hotel cinco estrelas com uma construção em formato de um semicírculo que chama atenção e um atendimento de primeira.

                Mas estou falando sobre a cidade para entenderem a minha história. Ah, quero falar sobre Stonehenge, também a uma hora e meia de Londres, quem nunca ouviu falar sobre ela, trata-se dos círculos de pedras enormes, construídos para rituais pagãos à mais de dois mil anos atrás e até hoje existem. Quando nasci minha mãe deu-me o nome de Violeta e desde pequena me levava com ela para esses rituais, me lembro das fogueiras com seu calor intenso e muita luz, dos cânticos entoados pelas mulheres, suaves e ritmados, acompanhados de um tipo de tambores e desde bebê acabava dormindo embalada por esses ritmos. Há medida que eu cresci comecei a perguntar sobre esses rituais e porque de mamãe fazer parte, ao que ela me respondia que quando tivesse a idade certa me contaria. Só fui para a escola com seis anos, morávamos em um rancho fora do centro e dizia ela querer me poupar das pessoas malévolas, não entedia direito na época, mas aprendi mais tarde sofrendo na pele. Frequentando a escola tentei fazer amizades com os colegas, mas me olhavam com receio e na minha passagem os grupinhos me mediam e comentavam em voz baixa, isso me deixava brava e isolada.

                Até que um dia uma colega que tinha mais aproximação comigo acabou me contando que na cidade todos sabiam que minha mãe era uma bruxa, não sabendo eu o significado dessa palavra, cheguei em casa e correndo perguntei aflita, que com toda a calma zanzara sentou-me na cadeira e disse: chegou a hora de você saber a nossa história. Contou-me ela que a nossa descendência é do clã dos Druidas e nós mulheres temos o dom da cura, todas elas respeitadas pela sabedoria e o dom de vidência, sendo consultadas por todos, inclusive pelos grandes chefes antes de tomarem algumas decisões importantes. Contou-me também que teve uma época obscura dom mundo, a idade média, que muitas de nós foram queimadas vivas, consideradas pelos nossos dons como bruxaria, condenadas pela ignorância da sociedade da época, tinham medo do nosso poder.

                Muitas sobreviveram escondendo-se em lugares longe da civilização, mas continuando a manter os rituais, escondidas em cavernas.  Violeta, minha filha disse ela, você também herdou esses dons, vendo o meu espanto, me acalmou dizendo: eu ajudarei e ensinarei a lidar com o teu poder, pois eu sou a rainha da nossa crença e você será a herdeira, não tenha medo nunca, o que fazemos é sempre para o bem de toda a humanidade, tentando influenciar com os nossos rituais libertar todas as energias negativas, limpando a atmosfera que nos envolve para um mundo melhor.

                Agora adulta sou formada em medicina com o intuito de ajudar mais a humanidade e uso os dons que aprendi, mantendo os rituais no lugar de minha mãe que se tornou a conselheira mais idosa e me sinto segura com a certeza de estar fazendo sempre o meu melhor para o bem de um mundo melhor.
                Sou Bruxa ou Fada?