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BANCANDO SHERLOCK - Ledice Pereira





BANCANDO SHERLOCK
Ledice Pereira



A imaginação fértil de Felipa a transportava para caminhos distantes, repletos de mistérios.

Leitora ferrenha, principalmente de livros de suspense, imaginava-se desvendando casos misteriosos com sua lupa e seu boné, a la Sherlock Holmes.

Morava num condomínio entremeado de jardins, onde altas e frondosas árvores encobriam metade das casas.

Munida de seus apetrechos de pesquisa, estava sempre junto de Rogério, vizinho e amigo de infância, leitor contumaz de histórias em quadrinhos, com ênfase em super-heróis.

Estavam ambos com quinze anos. Devoravam séries de suspense, sobre as quais, teciam comentários entusiasmados.

Vinham observando uma família com hábitos estranhos e faziam conjecturas sobre ela.

Pouco se via a mulher que eles, comparando com seus pais,  julgavam ter uns cinquenta anos.

O homem, grisalho e de barba branca, aparentava bem mais idade. Costumava sair cedo, levando uma jovem que não se relacionava com nenhum morador do condomínio. Ela vestia-se com um lenço na cabeça, quase não deixando à mostra o rosto.

Felipa jurava que tinha um rosto triste.

A família tinha um cachorro rottweiller, que não permitia a ninguém aproximar-se do portão. O bicho rosnava e latia ferozmente, ao menor sinal de aproximação.

Aquilo dificultava o trabalho de pesquisa dos dois adolescentes.

Rogério, de posse de seu binóculo, tentava desvendar o que estaria por trás daquelas grades do portão automático.

Naquele período de férias, tinham se comprometido a descobrir o mistério que envolvia aquela família.

Felipa anotava, num caderninho preto, todos os detalhes, como hora de saída, chegada, movimentos externos e os poucos movimentos internos, embora esses fossem quase inexistentes.

Rogério tentava, em vão, usar de um instrumento, por ele construído que, colocado no canto do muro da casa vizinha, transmitia ondas sonoras que talvez pudesse captar sons, que permitisse identificar possíveis diálogos, mantidos naquela  estranha moradia.

Felipa estava muito firme em sua determinação de descobrir o segredo que envolvia aquela habitação.

Durante os dias que se seguiram, ficaram os dois de tocaia. Não perdiam um só movimento feito na tal casa. Quando um tinha que sair o outro ficava ali. Subia numa das árvores de onde podia ter uma visão mais abrangente.

Numa das tardes, Rogério avistou o carro que adentrava ao condomínio fora da hora habitual. O velho vinha sozinho e tinha uma cara carrancuda.

Desceu do veículo, batendo fortemente a porta. Rogério viu quando ele tirou a cinta. O rottweiller abaixou a cabeça e o rabo docilmente. Parecia pressentir uma tragédia.

Rogério aguçou os ouvidos. A porta entreaberta permitiu que escutasse os gritos misturados a um choro feminino. Teve vontade de chamar a polícia. Mas ficou imóvel no alto daquele galho de Jacarandá-Rosa.

Felipa chegou naquele momento, acompanhada da mãe. Rogério fez sinal de silêncio. Ela despistou a mãe e subiu para junto de Rogério sem fazer o menor ruído. Estava craque em subir no seu ponto de vigia.

Dali ela viu. O homem arrastava para o carro a mulher que, relutante, trazia nos braços com dificuldade o que parecia um corpo envolvido em lençol. Zarparam deixando para trás o portão aberto.

Os jovens, a princípio, ficaram imóveis. Mas depois acharam por bem falar com os pais, convencendo-os a chamarem a polícia.

Ao ouvirem o que contaram os dois jovens, os policiais arrombaram a porta da casa suspeita. O cachorro, que se encontrava preso num tipo de canil, começou a latir vigorosamente.

A desordem encontrada confirmava a provável briga, com luta corporal, ouvida por Rogério.

Um alçapão aberto revelava uma escada que levava a um cômodo fétido, sem janelas, onde uma cama desfeita indicava ter sido a pouco utilizada por alguém. Não havia banheiro. Apenas um recipiente sujo.

Aguardaram no escuro da sala o retorno dos proprietários. Estes custaram a chegar. Traziam um rapazinho maltrapilho, magro, aleijado e com os dentes podres. Devia ter uns treze para catorze anos.

A mulher, com marcas roxas nos braços, pescoço e pernas, tinha os olhos inchados de tanto chorar.

O rapaz, sem falar, olhava assustado para aqueles homens fardados.

O velho, com olhar raivoso, perguntava o que eles estavam fazendo ali. Como tinham entrado em sua propriedade?

O delegado, logo constatou tratar-se de cárcere privado, agravado por agressão à pobre mulher. Algemou-o, levando-o preso preventivamente para a delegacia e alertando-o de que por esse crime deveria ser condenado a uns cinco anos de prisão ou mais.

Felipa, que a tudo assistia sem perder qualquer detalhe, viu quando a jovem de lenço na cabeça chegou sorrateiramente, dirigindo-se em direção ao garoto que, abraçado à tal senhora, chorava e tremia sem nada falar.

Acercou-se dela com cuidado, perguntando-lhe carinhosamente o que vinha acontecendo ali.

A moça carente e desnorteada, ao ver aquela jovem garota com quem o pai a proibia de falar, mas que estava ali, tratando-a com tanta atenção, respondeu:

─ É meu irmão. Por ter nascido excepcional, meu pai o manteve isolado e nos proibiu de comentar com qualquer pessoa.

─ Minha mãe e eu sofremos muito todos esses anos, mas tínhamos medo de contrariá-lo porque ele nos ameaçou de morte, caso o desobedecêssemos.

Felipa e Rogério mal podiam acreditar que, com sua perspicácia e determinação, haviam ajudado a desvendar o mistério que encobria aquela família, libertando-a das garras de um verdadeiro monstro.



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