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Mulheres que incomodam - Ises de Almeida Abrahamsohn



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Mulheres que incomodam
Ises de Almeida Abrahamsohn



O grito do paramédico:

Emergência! Três facadas no abdômen!

 e o estrondo da maca sendo empurrada pelo corredor fizeram Ângela jogar na pia o copo de café e sair correndo.

Examinou o jovem paciente na maca. Pressão lá embaixo, mas aguentando. O pessoal do SAMU já correra quase um litro de soro. Devia ter sangrado muito para a barriga e agora, por sorte do camarada, estava bloqueado.

A jovem cirurgiã Ângela estava acostumada às emergências desse tipo ali e nos outros pronto-socorros onde dava plantão.

Distribuiu as tarefas em voz alta e clara, sem nervosismo. Era residente de terceiro ano e responsável pela área cirúrgica.

Avisou para a enfermeira que verificava a pressão do paciente:

Vamos usar a sala 3 do centro cirúrgico! Alguém ligue para lá. Material completo abdominal. Uma caixa extra de hemostasia. Confira que chamaram o anestesista. Hoje deve ser o Carlino. Avise que é facada grave.

Júlio, pegue uma amostra para o banco de sangue. Tente a jugular ou a femoral, ordenou ao residente de segundo ano. Você vai entrar comigo. Avise que vamos precisar de sangue e plasma na sala três. Já estou subindo para checar a sala e começar o preparo. Você sobe com o paciente e a maca. Vamos estabilizar a pressão na sala junto com o Carlino.

Meia hora depois, na sala cirúrgica Ângela começava a operar auxiliada por Júlio, mais Ana, a residente de primeiro ano, e o interno que instrumentava, além da enfermeira de sala e, do Carlino. Gostava da equipe e principalmente do Carlino. Era muito competente e tranqüilo, tinha cerca de 50 anos e sempre apoiara a cirurgiã nos primeiros anos. Tinha um leve sotaque italiano, embora já tivesse nascido no Brasil. Angelina, era como a chamava carinhosamente.

Era um caso complicado, mas ela já tinha operado piores. O sujeito tivera razoável sorte. As grandes artérias estavam intactas. Um ramo da mesentérica fora atingido, mas o próprio sangue coagulado e uma alça intestinal tinham bloqueado maior sangramento. As perfurações intestinais podiam ser corrigidas e fariam uma colostomia. Era um jovem e, se não pegasse alguma infecção, escaparia dessa.

Ângela estava suturando alças do intestino delgado quando, aos berros, irrompeu na sala o Mauro, Chefe dos residentes de cirurgia. Começou por acusar Ângela por não o terem chamado para um caso como aquele e em seguida partiu para o ataque pessoal. Que ela não tinha competência para operar tais casos, que a técnica escolhida não era a correta, que ela era relapsa e mais algumas ofensas genéricas contra mulheres na cirurgia e por aí foi.

A médica tentava manter a calma e se concentrar na cirurgia auxiliada pelos residentes mais jovens que bem conheciam os rompantes do Dr. Mauro e sabiam da sua antiga implicância com a competente jovem cirurgiã. O anestesista, porém não se intimidou com o colega insolente e bem mais jovem. Insistiu que o gritão se retirasse porque estava atrapalhando, que a cirurgia estava sendo bem conduzida e calma era necessária para concluir com êxito. Vendo que não tinha apoio de ninguém, Mauro se retirou lançando com voz alterada:

Quando terminar, Dra. Ângela, precisamos ter uma conversinha. Vou esperá-la num dos consultórios.

Falar com o Mauro era o que ela não queria mesmo. Exausta depois das quatro horas de cirurgia, daria apenas uma rápida passada no pronto socorro antes de ir dormir no quarto das médicas. Júlio e Ana dariam conta da rotina de atendimento.

Foi até a copa comer alguma coisa. Enquanto tomava o lanche, lembrou-se de outros desaforos do Mauro. O cara se achava o rei do pedaço. Além de pensar e anunciar, sempre que possível, que era o melhor cirurgião da equipe, também se achava conquistador irresistível. Vivia amolando as enfermeiras e estudantes e anunciando que mulheres não são feitas para cirurgia.

Não sou a única que ele chateia, mas parece que ele mais encarna é comigo. Por que será?

No primeiro ano Mauro já deu sinais de intolerância quando se dirigiu para Ângela de modo inconveniente.

Como foi mesmo, sim, que com a minha pele morena e o meu cabelo eu nunca teria chance na profissão.

Ela não se deixou abater. Sou mulata mesmo.

Ela manteve-se altiva e rebateu que foi com muito orgulho com muito esforço que tinha conseguido se formar. O que fez ele parar foi ela dizer que nenhum chefe cheio de preconceito iria lhe barrar. Quando ouviu a palavra preconceito ficou com medo e foi embora. Eu devia tê-lo denunciado.

Na verdade, ela ainda estava no primeiro ano e não queria criar caso. Das outras vezes ele nunca mais falou da sua cor, mas sempre pegava na alegada falta de capacidade. Eu sei que sou boa, as pessoas reconhecem...chega estou morta são quatro e vinte vou subir. Quatro e vinte, que loucura, vou dormir.

Ângela estava esperando o elevador quando Mauro apareceu.

Estava esperando nos consultórios. Por que não foi? Temos que ter uma conversinha.

A médica respondeu-lhe que estava exausta e que poderiam conversar no dia seguinte, mas o médico não se deu por achado.

É urgente. Não pode esperar. Além disso, é uma notícia boa. Você ficará contente.

A médica olhou-o desconfiada. Notícia boa? Dele? Não acreditava. Repetiu que queria subir ao quarto para dormir, mas Mauro insistiu. Venha comigo.

A contragosto, Ângela o seguiu até os consultórios. Ele indicou a última sala do corredor e fechou a porta ao entrarem.

Ângela perguntou:

O que afinal você tem a dizer de boa notícia?

Não pode falar mais nada. Mauro tampou-lhe a boca e agarrou-a enquanto tentava freneticamente tirar-lhe a roupa.

Minha mulatinha. É essa a boa notícia. Sou louco por você! Maior tesão! Não vá dizer que não percebeu! Vamos lá, uma rapidinha aqui! Ninguém vai ver, nem saber!

Ângela aterrorizada conseguiu abrir a porta e escapar pelo corredor. Tremendo pegou o elevador e entrou no quarto das médicas.

Dessa vez o assediador não ficaria impune! Amanhã registraria queixa.

No dia seguinte, Ângela foi procurar o médico chefe da cirurgia levando consigo a denúncia por assédio e racismo e a descrição detalhada do que acontecera desde a sala de cirurgia até o ataque sofrido. O chefe a ouviu com razoável simpatia, mas a fez desistir da denúncia na delegacia e insistiu para que retirasse a acusação de racismo. Não queria o escândalo de o Mauro ser preso. Seria ruim para o hospital e para o serviço de cirurgia, argumentou. Por fim, Ângela aceitou que fosse realizada apenas sindicância interna.

O resultado final da sindicância, ouvidas também outras mulheres assediadas foi claro: a expulsão de Mauro do hospital. O assediador ainda tentou convencer os membros da comissão de que os episódios eram apenas brincadeiras. E de fato foi expulso! Mas mudou de Estado e continuou trabalhando normalmente.

Anos mais tarde, Ângela encontrou num congresso algumas colegas cirurgiãs daquele Estado. Por acaso o assunto numa conversa ao jantar foi assédio por colegas. E uma das médicas contou uma história de um médico que foi expulso do hospital universitário por ter assediado uma residente. Era o mesmo Mauro atacando de novo. Porém dessa vez a queixa chegou à delegacia e ao CRM.

Esses caras não aprendem, pensou Ângela. Só cassando o registro!


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